Edição 50

Economia para a Vida

Economia para a vida

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A fraternidade e a quaresma

A Campanha da Fraternidade quer ajudar a construir novas relações, apontando
princípios de justiça, denunciando ameaças e violações da dignidade e dos
direitos e abrindo caminhos de solidariedade. A vida em fraternidade é expressão
do evangelho e testemunha a nossa condição de filhos e filhas de Deus. A
fraternidade e a solidariedade suscitam uma sociedade em que todos se sintam
como família, em paz, harmonia e segurança.

Em continuidade com as campanhas anteriores

Nas campanhas da Fraternidade Ecumênica, os temas se
voltam para a valorização da pessoa, o cuidado da natureza
e os grandes direitos dos seres humanos, compreendidos
como filhos preciosos e amados do Criador. A campanha do
ano 2000 se inspirava nas muitas expectativas e reflexões
motivadas pela virada do milênio. Seu tema era Dignidade
humana e paz, e o lema escolhido foi Novo milênio sem exclusões.
Sua proposta foi: “Compromisso com o resgate da
dignidade humana ferida nos porões da vida, à luz do sol e
nos bastidores da política”. É a nossa própria dignidade que
está em jogo quando outras pessoas são humilhadas, seja
por ações diretas contra elas, seja pelas consequências das
estruturas injustas que continuamos sustentando em nossa
sociedade.

Objetivo geral

Colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida,
fundamentada no ideal da cultura da paz, a partir do esforço
conjunto das igrejas cristãs e de pessoas de boa vontade,
para que todos contribuam para a construção do bem comum
em vista de uma sociedade sem exclusão.

Esse objetivo exige que haja justiça social, consciência ambiental,
sustentabilidade, empenho na superação da miséria
e da fome e, de um modo geral, que se considere, com atenção
especial, a dignidade da pessoa e o respeito aos direitos
humanos.

Objetivos específicos

• Sensibilizar a sociedade sobre a importância de valorizar
todas as pessoas que a constituem.

• Buscar a superação do consumismo, que faz com que o ter
seja mais importante do que as pessoas.

• Criar laços entre as pessoas de convivência mais próxima,
em vista do conhecimento mútuo e da superação tanto do
individualismo como das dificuldades pessoais.

• Mostrar a relação entre fé e vida, a partir da prática da justiça
como dimensão constitutiva do anúncio do evangelho.

• Reconhecer as responsabilidades individuais diante dos
problemas decorrentes da vida econômica, em vista da
própria conversão.

Um ideal de justiça econômica que sirva e sustente a vida
só poderá tornar-se realidade pela ampliação do exercício de
democracia e se forem estabelecidas também metas para se
atingir a plena sustentabilidade. Para se atingir os objetivos
da CFE 2010, são adotadas as seguintes estratégias:

• Denunciar a perversidade de todo modelo econômico que
vise, em primeiro lugar, o lucro, sem se importar com a
desigualdade, miséria, fome e morte.

• Educar para a prática de uma economia de solidariedade,
de cuidado com a criação e valorização da vida como o
bem mais precioso.

• Conclamar as igrejas, as religiões e toda a sociedade para
ações sociais e políticas que levem à implantação de um
modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as
pessoas.

Esses objetivos e estratégias devem ser trabalhados em quatro
níveis: social, eclesial, comunitário e pessoal. Desejamos
a preservação da grande casa comum, o planeta Terra,
planeta da vida e morada da família humana, em vista da
sua sustentabilidade. Buscamos mudanças na economia, na
administração dessa casa comum, em fraterna cooperação
entre toda a sociedade: cristãos e não cristãos, seguidores
de diferentes religiões e pessoas de boa vontade.

Planeta Terra, casa de todos

O planeta Terra não passa de um grão de areia na imensidão
do universo. Mas é um grão de areia habitado, onde pulsa
um coração vivo e vibrante. Nele, o ciclo da vida se reproduz
há bilhões de anos. É o único planeta conhecido onde a vida
viceja exuberante. A mulher e o homem são chamados a habitar
essa grande casa, a manter viva a sinfonia da criação,
a cuidar, respeitar e conviver com a variedade e pluralidade
como em um jardim do qual se deve cuidar.

O cuidado é uma maneira de viver diferente das relações de
domínio e de mercado. Pela ganância, multidões adoecem
e sobrevivem na indigência. A grande melodia do universo
vem sendo sistematicamente rompida. Aprofundam-se, a
cada ano, os sinais de destruição. A humanidade, com seu
ritmo de devastação, está consumindo mais do que o planeta
pode oferecer. Isso significa que demos início a um processo
de autodestruição.

O desafio agora é refazer a sinfonia universal. O respeito
para com a criação é respeito ao Criador. Cuidar do planeta
não é um slogan, mas um dever da nossa fé e um dever para
com a vida.

Desafios e esperanças

Vamos examinar as muitas injustiças e o desrespeito à vida
que derivam de uma economia que idolatra o mercado e
não enxerga as pessoas. Hoje, com maiores fontes de informação,
temos mais condições de perceber e denunciar
problemas. Sabemos mais sobre corrupção, devastação planetária,
desrespeito ao direito do cidadão, etc.

Mas também é importante lembrar que crescem iniciativas
a favor da vida e dos mais desamparados. Instituições de
serviço voluntário, dentro e fora das igrejas, atuam na defesa
da vida, em seus múltiplos aspectos. Organizações, entidades
e movimentos sociais vão ajudando a reconstruir esta
casa de todos, que é o planeta Terra. Um movimento amplo
e variado de solidariedade, que privilegie não o movimento,
não a concepção do crescimento a qualquer custo, mas o
desenvolvimento humano sustentável — tanto do ponto de
vista social quanto ecológico —, há de prevalecer.

“Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24)

A economia existe para a pessoa e para o bem comum da
sociedade, não a pessoa para a economia. Tem havido uma
inversão de valores. A economia é, simplesmente, um instrumento
que deve estar a serviço das pessoas, e não o
contrário. O lema desta campanha, a afirmação de Jesus registrada
no Evangelho segundo Mateus: “Vocês não podem
servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24), nos propõe uma escolha
entre os valores do plano de Deus e a rendição diante
do dinheiro, visto como valor absoluto dirigindo a vida. O
problema não é o dinheiro em si, mas o uso que dele se faz.
Ele é útil como instrumento destinado ao serviço e intercâmbio
de bens de uso, mas não pode ser o supremo comandante
dos nossos atos, o critério absoluto das decisões
dos indivíduos e dos governos. Deve ser usado para servir ao
bem comum das pessoas, na partilha e na solidariedade.

Nossa atitude diante do dinheiro revela muito o tipo de
pessoa que somos. Por isso, Jesus diz: “Onde estiver o teu
tesouro, ali também estará o teu coração” (Mt 6, 21). Se o
enriquecimento e a acumulação continuam a ser o sonho
de nossa sociedade, os valores se invertem e colocamos
em segundo plano a pessoa, sua vida, sua dignidade, seu
bem-estar. A relação com Deus e todas as demais aspirações
humanas acabam por ser rebaixadas a valores secundários.
Vemos, assim, que acumular e não repartir tem profundas
consequências espirituais.

Um sistema econômico para todas as pessoas

Uma economia baseada no individualismo e na acumulação
de bens materiais afasta-se radicalmente do projeto de
Deus, expresso na Bíblia. Deus quer o bem de todos — não
se poderia esperar outra coisa de alguém que é Pai, que cria
todas as coisas por amor. Uma economia que ignore esse
fundamento não estará só negando o sentimento religioso
de nosso povo. Será também inaceitável até para as pessoas
de boa vontade, que não pertencem a nenhuma denominação
religiosa, mas que se percebem como membros de
uma grande e única família humana que entende que não
há alternativa: ou vivemos solidariamente como irmãos ou
seremos todos infelizes num mundo trágico.

Uma correta escala de prioridades revela onde, de fato, está
o nosso coração e se manifesta em diferentes campos de
nossa vida. A palavra de Deus nos convida a avaliar o que
fazemos em vários âmbitos:

• No âmbito social, a Bíblia nos mostra profetas acusando
gente poderosa e reis que enriquecem à custa do povo e
não cuidam bem daqueles a quem deveriam servir (Is 3,
13-15; Jr 5, 27-29; Jr 8, 11-12; Ez 34, 2-4; Am 3, 10).

• No âmbito comunitário, a Bíblia tem como proposta para a
vivência, por exemplo, a diária do trabalhador, que deve ser
paga no mesmo dia, pois ele precisa disso para viver (Ex 19,
13), e o socorro ao pobre que estiver por perto (Dt 15, 7-11).

• No âmbito pessoal, cada um é chamado a não praticar corrupção,
a afastar-se da desonestidade e a viver a partilha
no amor fraterno (veja, por exemplo, os conselhos de João
Batista aos que o procuram — Lc 3, 10-14).

• No âmbito eclesial e da prática religiosa, Deus quer primeiro
a justiça e a fraternidade. Só assim ele aceita o culto
que lhe é oferecido no templo (Am 5, 24). A Carta de Tiago
lembra que igreja não é lugar para privilegiar pessoas tendo
como critério sua condição social (Tg 2, 1-10).
A maneira como são atendidos os órfãos, as viúvas e os estrangeiros
é apresentada na Bíblia como “termômetro” da
fidelidade do povo em relação a Deus. Naquela sociedade,
órfãos, viúvas e estrangeiros eram os próprios símbolos de
desamparo. Hoje, além deles, deveríamos incluir os meninos
de rua, os migrantes, os sem-renda e outros tantos. Se
eles não são atendidos, nosso culto a Deus é vazio.

A Bíblia e o bem comum

No contexto de uma sociedade agrícola, a Bíblia regula e
limita a compra e a venda de bens, o cultivo da terra e a
criação de animais, colocando toda atividade econômica
no âmbito das relações de Deus com Israel. Na ocupação
da terra prometida, a terra é repartida de comum acordo
entre as tribos, cada uma recebendo a extensão necessária
para seu bem-estar. Só a tribo de Levi, que será incumbida
do serviço ao Senhor, não recebe terra, mas receberá o sustento
da contribuição das outras tribos, pois estará a serviço
delas diante do que Deus deseja para seu povo na terra
prometida. Mas — como, apesar dessa justiça inicial, com
o passar do tempo, alguns se endividaram, empobreceram,
perderam os bens necessários para a sua sustentação — a lei
bíblica criou o “ano sabático” e o “ano do jubileu”. Assim,
diz o Deuteronômio (15, 1): “Cada sete anos, farás a remissão
das dívidas”. E então todo credor deixará de cobrar o
que lhe foi emprestado e “não haverá pobres em teu meio”
— diz o Senhor. “E, a cada cinquenta anos, quem tiver perdido
sua terra pode retornar à posse do que perdera” (Lv 25,
8-17). Deus não quer nenhum de seus filhos sem meios de
sobreviver com dignidade e de se desenvolver.
Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis
na terra a libertação para todos os habitantes; será
para vós um jubileu; cada um de vós voltará ao seu
patrimônio e cada um de vós voltará ao seu clã. Será
um jubileu para vós o quinquagésimo ano (Lv 25,10-11).

O descanso da Terra

O livro de Gênesis, no relato dos seis dias da criação do mundo,
afirma que o homem e a mulher foram criados à imagem e
semelhança de Deus. Deveriam crescer e multiplicar-se, viver
em fraternidade e cuidar da criação, mas como seres criados à
imagem e semelhança do Criador. À semelhança de Deus, devem
amar o que foi criado, zelar por essa obra, e não a destruir
ou usar de forma irresponsável ou egoísta. O ano sabático e

o jubileu incluem a responsabilidade com a Terra, de onde os
seres humanos colhem os recursos para seu sustento.
A Bíblia quer que se cuide bem da terra: o ano sabático é
também um ano em que não se semeia, para que a terra
se recomponha e continue fértil (Lv 25, 1-6). O destino da
Terra está diretamente ligado ao modo de ser e de agir das
pessoas. A Terra também precisa descansar. As suas riquezas
não são ilimitadas nem tudo que nela existe é renovável.
Estamos numa época em que ocorrem mudanças climáticas
alarmantes, provocadas por ações humanas e opções de política
econômica que levam à devastação da natureza e ao
consumo desenfreado. Milhões de pessoas no mundo já não
têm acesso à água potável, e o futuro se apresenta ameaçador
para toda a humanidade. Aprofunda-se a consciência
de que a defesa dos recursos hídricos e a atenção à mudança
climática são preocupações de grande importância para
toda a família humana, e cresce o nosso compromisso de
trabalhar intensamente em favor de um respeito cada vez
maior pelas maravilhas da criação divina.

O Senhor disse a Moisés no Monte Sinai: “Dize aos israelitas
o seguinte: quando tiverdes entrado na terra
que vos hei de dar, a terra repousará: este será um sábado
em honra do Senhor. Durante seis anos, semearás
a tua terra, durante seis anos podarás a tua vinha e
recolherás os seus frutos. Mas o sétimo ano será um
sábado, um repouso para a terra, um sábado em honra
do Senhor: não semearás o teu campo nem podarás a
tua vinha; não colherás o que nascer dos grãos caídos
de tua ceifa nem as uvas de tua vinha não podada, porque
é um ano de repouso para a terra” (Lv 25, 1-6).

A Bíblia apresenta Deus como senhor e doador dos bens da
criação: “Do Senhor é a terra e suas riquezas, o mundo e seus
habitantes” (SI 24, 1 e 1Cor 10, 26). É Deus quem entrega a
terra aos seres humanos. Nós a recebemos para nela viver
um tempo e passá-Ia às gerações futuras. “Darei em propriedade
perene a ti e à tua descendência depois de ti, a terra das
tuas migrações” — diz Deus a Abraão (Gn 17, 8). A Deus, são
oferecidas as primícias da terra como ato de culto e reconhecimento
de Seu direito como senhor de tudo (Dt 26, 10). A
criação não é propriedade dos seres humanos, mas os seres
humanos pertencem à criação, e a criação é de Deus. Sendo
de Deus, ela deve servir igualmente a todos os seus filhos e
filhas. Que pai ficaria contente vendo um filho se apropriar
de tudo que é da família e deixando os irmãos na miséria?

A Bíblia quer justiça para os pobres

Na história humana, marcada por ambições, explorações,
injustiças e ganância, a Bíblia se volta decididamente para
a defesa dos pobres: “Não falsificarás o direito do pobre no
seu processo” (Ex 23, 6). Contra a acumulação da riqueza,
que deixa os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, Isaías,
como outros profetas, dá seu grito de protesto: “Ai dos que
juntam casa a casa, campo a campo, até ocuparem todo o
lugar e serem os únicos a morar no meio da terra”(Is 5, 8).

O respeito ao direito do pobre, nos textos bíblicos, é uma
exigência básica da fidelidade a Deus. Sem isso, Deus não
aceita nenhum tipo de conversa, oração, louvor: “Aprendei
a fazer o bem, procurai a justiça, chamai à razão o espolia-
dor, fazei justiça ao órfão, tomai a defesa da viúva. Vinde e
discutamos, diz o Senhor” (Is 1, 17-18).

Dentro das possibilidades daquele tempo, o direito do pobre
tem lugar de destaque:

Se houver em teu meio um pobre, um dos teus irmãos,
numa de tuas cidades, na terra que o Senhor te dá, não
endurecerás o teu coração e não fecharás a mão para

o teu irmão pobre; mas tu lhe abrirás largamente a tua
mão e lhe concederás todos os empréstimos a penhor
que vier a necessitar (Dt 15, 7-8).
Quanto aos estrangeiros, desamparados num tempo em que
a única segurança possível era garantida pelo grupo familiar,
a Bíblia se preocupa em defender sua dignidade, lembrando
que Israel não esteve em condição melhor durante muito
tempo: “Não explorarás nem oprimirás o migrante, pois foste
migrante na terra do Egito” (Ex 22, 20). O seu desamparo é
equiparado ao dos órfãos e das viúvas (Dt 24, 19-22).

Iluminados pelos ensinamentos bíblicos, devemos trabalhar as
realidades do nosso tempo: direito ao trabalho, à saúde e educação
públicas de boa qualidade, ao saneamento urbano e a outras
estruturas que hoje podem promover o bem-estar de todos.

O jejum que eu prefiro acaso não é este: desatar os laços
provenientes da maldade, desamarrar as correias do jugo,
dar liberdade aos que estavam curvados, em suma, que
despedaceis todos os jugos? Não é partilhar o pão com o
faminto? E ainda: os pobres sem abrigo, tu os albergarás;
se vires alguém nu, cobri-Io-ás: diante daquele que é a tua
própria carne, não te recusarás. Então a tua luz despontará
como a aurora, e o teu reestabelecimento se realizará
bem depressa. Tua justiça caminhará diante de ti, e a
glória do Senhor será a tua retaguarda […] se cederes ao
faminto o teu próprio bocado e se aliviares a garganta do
humilhado, tua luz se levantará nas trevas, tua escuridão
será como o meio–dia (ls 58, 6-8 e Is 58, 10).

Créditos e juros

Nas sociedades agrícolas, como as descritas na Bíblia, a liberdade
pessoal e a econômica dos pequenos agricultores e
de suas famílias dependiam, em muitas circunstâncias, dos
empréstimos.

Regular o pagamento de empréstimos, a taxa de juros, o
prazo de pagamento ou o perdão da dívida dos pobres eram
questões importantes para fazer prevalecer a justiça social.
Na nossa sociedade, créditos, dívidas, aplicações, juros são
as alegrias e as angústias das pessoas que vivem com fartura
no império das finanças.

Todo um sistema bancário toma conta da circulação do dinheiro
na nossa sociedade, favorecendo os depósitos volumosos,
emprestando com juros altos, próximos à usura, e negando,
aos pequenos empreendedores, o acesso ao crédito.

A atenção da Bíblia se volta, com preocupação, para os pobres
também quando trata do empréstimo, dos juros e penhores.
Não havia, naquele tempo, real alternativa para a
sobrevivência dos pobres. Era necessário que alguém lhes
emprestasse, mas a dívida contraída não devia levar o pobre
a uma dependência que sacrificasse seus direitos (Ex 22, 2426).
O livro do Deuteronômio (23, 20) e o livro do Levítico,
considerando o direito do pobre à vida, insistem sobre não
emprestar com juros: “Se o teu irmão tem dívidas e não tem
com que te pagar, tu o sustentarás, seja ele um migrante ou
um morador, a fim de que ele possa sobreviver a teu lado”
(Lv 25, 35ss). “Dá a quem te pede — dizia Jesus —; a quem
quer pedir-te emprestado, não vires as costas” (Mt 5, 42).

Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao necessitado
que está contigo, não agirás com ele como um agiota,
não lhe cobrarás juros. Se tomares o manto do teu
próximo em penhor, devolvê-Io-ás ao pôr do sol, pois o
manto que lhe protege a pele é o seu único cobertor.
Em que deitaria? E se acontecer de ele clamar a mim,
hei de ouvi-Io, pois eu sou compassivo (Ex 22, 24-26).

Os direitos dos trabalhadores

As relações de trabalho são tratadas com a mesma preocupação
de colocar em primeiro lugar não o lucro do empregador,
mas a vida dos trabalhadores. O profeta Jeremias lança
a condenação de Deus contra quem enriquece explorando

o trabalho: “Ai daquele que constrói seu palácio desprezando
a justiça e amontoa seus andares a despeito do direito;
que obriga os outros a trabalhar de graça, sem lhes pagar o
salário!” (Jr 22, 13). Igualmente o profeta Amós lança sua invectiva
contra o comércio injusto e o enriquecimento, “porque
venderam o justo por dinheiro e o pobre por um par de
sandálias; porque são ávidos para ver o pó da terra sobre a
cabeça dos indigentes e desviam os recursos dos humildes”
(Am 2, 6-7a). A Carta de Tiago, depois de ter zombado da
felicidade dos ricos, exclama: “Vede o salário dos operários
que fizeram a colheita em vossos campos: retido por vós,
ele grita, e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos
do Senhor Sabaot” (Tg 5, 4). No ambiente onde Deus reina,
os trabalhadores não podem ser considerados apenas como
força para a produção, mas têm que ser respeitados em sua
dignidade de seres humanos.

Nos evangelhos, essa atenção à reconstrução da justiça
econômica não é menos clara e incisiva. Desde o início do
Evangelho Segundo Lucas, a Virgem Maria exclama que Deus
“cobriu os famintos de bens, e os ricos, despediu-os de mãos
vazias” (Lc 1, 53). A quem perguntava o que fazer para preparar-
se para acolher o Reino de Deus, João Batista respondia:
“Se alguém tiver duas túnicas, reparta com aquele que não
tem; se alguém tiver o que comer, faça o mesmo” (Lc 3, 10-11).

Jesus, na linha dos profetas, coloca-se ao lado dos pobres; e
os discípulos, para segui-Io, têm que deixar tudo. Sobre essa
escolha, ele os alertava: “As raposas têm tocas; e os pássaros
do céu, ninhos. O Filho do Homem, porém, não tem onde recostar
a cabeça” (Mt 8, 20). Afirmava categoricamente: “Ninguém
pode servir a dois senhores… vocês não podem servir
a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24) e exortava: “Vendei o que
possuis e dai-o de esmola. Fazei para vós bolsas imperecíveis,
um tesouro inalterável nos céus: lá nem ladrão se aproxima
nem traça destrói” (Lc 12, 33).

Na nossa sociedade, privar um homem de emprego ou
meios de vida equivale, psicologicamente, a assassiná
-Io. Porque isso é o mesmo que dizer a esse homem que
ele não tem o direito de existir.

No Reino de Deus, a lei é a solidariedade

O Reinado de Deus, anunciado por Jesus, exige também um
novo olhar no campo da justiça econômica. Na parábola
apresentada em Mateus (20, 1-16), Jesus usa a situação de
operários contratados em momentos diferentes. Na hora do
pagamento, todos recebem a mesma quantia, porque todos
precisam ter suas necessidades básicas atendidas. Hoje, os
que não podem trabalhar também precisam viver, e algo
deve ser feito para lhes garantir esse direito básico.

A solidariedade faz da humanidade uma família em que
todos se protegem mutuamente. Assim, problemas que
pareciam insolúveis podem ter soluções surpreendentes. A
partilha faz milagres. É o que Jesus nos sugere no texto que
narra como 5 mil homens, mais as mulheres e crianças, foram
alimentados com cinco pães e dois peixes (Mc 6, 30-44).

Os milagres de Jesus têm uma função pedagógica: eles nos
convidam a fazer como ele fez, mesmo através de meios
bem naturais. Se soubermos partilhar, certamente vai haver
pão, casa, cura, saúde, educação e inclusão para muito mais
gente. A pregação de Jesus sobre o juízo final mostra bem
que Deus quer ser amado e servido por meio dos pobres:
“Tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes
de beber; eu era estrangeiro, e me acolhestes; estava nu, e
me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a
mim…” (Mt 25, 35-36).

A solidariedade universal é um princípio ético expressamente
contemplado no artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Essa declaração internacional mostra que
há uma percepção da importância do exercício desses direitos
para a humanidade. Nos fundamentos de tudo isso, está
a ideia de fraternidade. Se realmente nos sentirmos irmãos,
parte da mesma família humana, certamente viveremos de
modo mais solidário. “O teste da verdadeira organização de
um país não é o número de milionários que possui, mas a
ausência de fome em sua população” (Ghandi).

A solidariedade quer promover uma nova cultura política
para a construção de uma economia que atenda às necessidades
dos cidadãos em todos os níveis e respeite as exigências
de conservação da natureza. A ação contra a exclusão
está intimamente associada ao objetivo de recriar e
recompor laços sociais, laços de humanidade. É, portanto,
um caminho de contracultura em relação à cultura do enriquecimento
com exploração, da acumulação que provoca
a carência de muitas pessoas e do consumismo egoísta e
materialista que coloca em risco a vida na Terra. A solidariedade
aumenta nossa sensibilidade aos aspectos específicos
da dor e da humilhação de outros seres humanos, alarga o
sentido tipicamente social da vida humana e ensina a privilegiar
o nós em lugar do eu, ensina a ver, em pessoas estranhas,
companheiros de sofrimento e esperança.

Experiências de solidariedade

O povo se empenha em ajudar quando há alguma catástrofe.
Entretanto, são necessárias ações mais profundas, que transformem
o modelo de vida de nossa sociedade. A organização
da sociedade civil, garantida pelo princípio da subsidiariedade,
é complemento indispensável à ação dos governos. Agências
internacionais de cooperação e solidariedade têm criado
redes de apoio ao desenvolvimento de países onde a pobreza
ameaça seriamente a vida das populações. No Brasil, há
as ações da Cáritas Brasileira, da Coordenadoria Ecumênica
de Serviço (Cese), do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor
(Capa), do Serviço Anglicano de Desenvolvimento (SAD),
entre outras. Também a Ação da Cidadania Contra a Miséria
e Pela Vida, as experiências de economia solidária e suas
elaborações teóricas, a economia indígena, as iniciativas de
economia de comunhão, as Campanhas da Fraternidade e as
Semanas Sociais têm contribuído para apontar caminhos de
reformulação do modelo econômico.

O papel do Estado

Sabemos que é fundamental a ação do Estado democrático
na solução dos problemas sociais. O Direito e o Estado não
podem ter unicamente o papel de garantir a possibilidade
de crescimento e de funcionamento do sistema econômico
organizado pelas elites e hoje dominante no País. Os direitos
e a seguridade social não são consequência funcional do
sistema econômico, mas a força que deveria estar na base
de sua organização e de suas limitações. Para que a ação do
Estado e do Direito não exclua os mais fracos, é importante
que os governantes ouçam os diferentes setores da sociedade,
e não só aqueles que costumeiramente têm poder de
pressão. O texto da nossa Constituição Federal de 1988 trata
da seguridade social como algo que deve estar na base da
organização da sociedade brasileira. Alguns projetos do governo
destinam recursos a programas específicos que atendem
partes mais desprotegidas da população. Mas é preciso
estabelecer mecanismos mais permanentes, que não dependam
de decisões momentâneas deste ou daquele governo.
Considera-se a necessidade de atender tanto trabalhadores
rurais como urbanos. Percebe-se a urgência de se ter sistemas
acessíveis, adequados e permanentes de financiamento
para as iniciativas de organizações populares.

Outra necessidade básica é garantir algum tipo de renda
para os que não podem trabalhar, seja por doença, idade
avançada ou falta de oportunidade no mercado de trabalho.
O chamado trabalhador informal também precisa se sentir
seguro se, por algum fator alheio à sua vontade, se vir impedido
de exercer a atividade que o sustentava.

O reconhecimento do direito universal à proteção social ficou
resguardado nos campos da saúde e da assistência social,
mas a Constituição não conseguiu garantir, na prática,
tantos outros direitos. O Estado tende a tomar decisões independentemente
das necessidades de cada cidadão e das
coletividades. Ele trabalha com “contribuintes” que adquirem
direitos legais e deixa de fora uma multidão que faz
parte do chamado trabalho informal. A lógica do governo
visa evitar os riscos de conflitos sociais, permitir o funcionamento
da economia do mercado e o crescimento do capital.

O sistema tributário brasileiro tributa mais os mais pobres

Os 10% mais pobres da população brasileira destinam 32,8% da
sua pouca renda para o pagamento de tributos, enquanto que,
para os 10% mais ricos, o ônus estimado é de 22,7% da renda.

Tabela 01: Brasil – Distribuição da Carga Tributária Bruta segundo faixa de salário-mínimo

Renda Mensal
Familiar
Carga Tributária
Bruta –
2004
Carga Tributária
Bruta –
2008
Dias Destinados
ao Pagamento
de
Tributos
Até 2 SM
48,8
53,9
197
2 a 3
38,0
41,9
153
3 a 5
33,9
37,4
137
5 a 6
32,0
35,3
127
6 a 8
31,7
35,0
128
8 a 10
31,7
35,0
128
10 a 15
30,5
33,7
123
15 a 20
28,4
31,3
115
20 a 30
28,7
31,7
116
mais de 30
SM
26,3
29,0
106

Fonte: CTB, segundo CFP/Dimac 32,8 36,2 132

Os discípulos de Jesus e outra economia

Os discípulos de Jesus propuseram ao mundo uma grande revolução
econômica, talvez a maior testemunhada na Antiguidade.
Nascida do seio das comunidades cristãs como fruto da
convivência fraterna, era introduzida no mundo greco-romano
uma economia diferente. A economia do Império Romano era
resultado de política fiscal, fundava-se sobre os impostos. Sua
destinação era, sobretudo, a manutenção do complexo aparato
burocrático e do amplo sistema militar. A economia cristã se
baseava na distribuição da riqueza e era destinada a socorrer
os segmentos mais vulneráveis da vida civil e social, geralmente
não atendidos pelo Estado. O ideal das primeiras comunidades
cristãs era a partilha solidária dos bens, de modo que não
houvesse ninguém que passasse necessidade. “Todos os que
abraçaram a fé estavam unidos e tudo partilhavam. Vendiam
as suas propriedades e os seus bens para repartir o dinheiro
apurado entre todos, segundo as necessidades de cada um” (At
2, 44-45). O Livro dos Atos dos Apóstolos insiste: “A multidão
daqueles que tinham abraçado a fé tinha um só coração e uma
só alma, e ninguém considerava como propriedade sua algum
bem seu; pelo contrário, punham tudo em comum” (At 4, 32).

As comunidades cristãs, não somente pelo testemunho de mulheres
e homens da igreja das origens, mas também no decorrer
dos séculos, são sempre lembradas pelo amor a Deus e pela solidariedade,
justiça e paz que fluem desse amor. As pessoas de fé
oram a Deus e voltam seu pensamento e sua ação para as condições
dos pobres e desprotegidos, daqueles que são negligenciados
ou maltratados pelos poderes dominantes na sociedade.

Ambrósio, bispo de Milão, revoltado pela crescente concentração
de terras, pregava que a terra pertence a todos, e não
apenas aos ricos. Basílio, bispo de Cesareia, exortando a não
acumular bens supérfluos, concluía: “Quem acumula mais
que o necessário pratica crime” (Basílio, séc. IV. Comentário
a Mateus 25, 31-46).

Nabot não foi o único pobre assassinado. Todo dia um Nabot
cai ao solo; todo dia um Nabot é assassinado… Tu não
estás dando ao pobre o que é teu, mas lhe devolves o que
é dele. Pois o que é comum foi dado a todos, tu o estás
usurpando sozinho. A terra pertence a todos, e não apenas
aos ricos. Infelizmente, são pouquíssimos os que podem
usufruir a terra (Ambrósio, séc. IV. Comentário 1Reis 21)3.

A história cristã é, infelizmente, também marcada por infidelidades,
desculpas e interpretações diversas de como a fé se relaciona
com as decisões econômicas, com a forma de apropriar-
se de terras e de bens, com o exercício do poder, as maneiras de
viver, o bem-estar e a relação com os pobres. Mas, na Bíblia e na
tradição cristã, encontramos um mandamento e as sementes
de uma verdadeira revolução econômica: “A solidariedade com

o pobre é lei de Deus, não mero conselho” (Gregório de Nissa).
E, para quem faz hoje uso da religião para o próprio bem-estar,
Jerônimo também lembrava: “Jesus não nasceu no lugar sagrado
do templo onde o ouro, as pedras preciosas e a prata reluziam;
Ele nasceu numa estrebaria, para reerguer os que jazem
no meio do lixo” (Jerônimo, Homilia sobre o Natal).
Na tradição cristã, não encontramos apenas a caridade de
indivíduos ou a generosa solidariedade de comunidades inteiras.
Também se buscaram, insistentemente, soluções alternativas
às estruturas econômicas injustas: criação de hospitais,
construção de escolas, organização de economia comunitária,
organização de sindicatos e partidos. Hoje, como no passado,
as comunidades cristãs devem se interrogar sobre seu
patrimônio, o uso do seu dinheiro e seu compromisso com a
transformação econômica e social do País.

No contexto da globalização neoliberal, as igrejas são chamadas
a assumir um compromisso explícito e público em palavras de fé
e atos: assumindo um posicionamento de fé quando os poderes
da injustiça e da destruição questionarem a própria integridade
do evangelho; professando sua fé dizendo um não muito claro
aos poderes e principados; solidarizando-se com as pessoas sofredoras
e com a Terra e resistindo aos poderes da injustiça e
destruição; compartilhando o sofrimento e a dor das pessoas e
da Terra na companhia do Espírito, que está gemendo com toda

a Criação (Rm 8, 22-23). Onde formos cúmplices de sistemas de
dominação e injustiça, precisamos arrepender-nos. Nesse sentido,
o papel das igrejas face à globalização neoliberal não é exclusivamente
uma questão de ministério profético e justiça social a
serviço da vida. Na verdade, a tarefa atinge o âmago da vocação
evangélica das próprias igrejas: de intermediar o chamado de
Deus ao arrependimento do pecado e da morte e a abraçar o
reino de Deus e sua justiça e vida para todos.4

1 Luther King. M. O Redentor Negro. São Paulo: Martin Claret. 1996.

2 Zockun et alii. Carga Tributária por faixas de renda, 2004: (2007);
Carga Tributária Bruta 2004 e 2008: CFP/Dimac/Ipea; Carga Tributária
por faixas de renda, 2008 e Dias Destinados ao Pagamento de
Tributos, elaboração própria.

3 http://www.30giornLit/br/articolo.asp?id=21088. Acesso em 22 de
agosto de 2009.

4 CMI, Globalização Alternativa Comprometida com a Humanidade
e o Planeta – Um documento de base, pp. 6-7, Genebra 2005.

Fonte: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
(Conic). Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010: Texto-base.

Brasília: Edições CNBB, 2009.

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