Edição 87

A fala do mestre

Educadores: Removendo Pedras ou Semeando Flores?

Nildo Lage

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Em meio aos colapsos — familiares, sociais, políticos e econômicos — que arremessam a Educação por caminhos conflituosos, o declínio da qualidade desta foi inevitável. Críticas emanam, questionamentos ecoam, excepcionalmente, por parte do educador: O que faço nesse ambiente de violência, desrespeito, duelos de gerações, choques de ideias, confrontos de valores culturais e religiosos? Qual a minha verdadeira função? Remover pedras? Semear flores? Ou tão somente tocar o barco adiante sem me preocupar se o meu aluno irá ou não para o ciclo seguinte e como chegará?

Sem respostas, o professor recua. Sem reconhecimento, perde a motivação… Vou vestir a camisa do time do Tanto Faz! O meu é seguro ao final de cada mês e é o bastante para manter o meu filho numa escola particular. Para comer, faço um bico, dobrando turno em outra escola, pois não confio num sistema de ensino majoritariamente de exclusão, uma bola de pingue-pongue, perseguida pelas raquetes de uma política sórdida, corrupta e desbriada.

Entre subterfúgios e subversões, o bote da Educação é tocado adiante. A desordem se dilata. Advertências e paralisações, o governo emite sinais em meio a discursos engessados, promessas mirabolantes… Dá um sacolejo na equipe para manter as aparências. O despertar. Tão somente um abrir e fechar de olhos. No instante seguinte, pedras não são removidas, tropeços… As consequências… O fracasso. Novos protestos. Tenta de novo. Frustrações e experimentos. Todavia, o governo tem números e consciência de que cultivar flores no jardim da Pátria Educadora exige preparo de solo, capacitação e formação do jardineiro, pois flores não resistem a um terreno lapidoso e árido.

Sem lenço e documento, o educador recorre à fonte unidade escolar, se frustra. Pede socorro ao oceano governo. Esse, revolto pelas polêmicas, sobrepujado pelas tempestades de corrupção, à crise econômica, anuncia na plaqueta: “Não posso fazer grandes coisas!”. No instante seguinte, vira a cara e permanece alheio… À deriva, o educador se desencoraja ao apreciar seus esforços perdidos e o pior: recursos que poderiam ser aplicados em capacitação, adequações, sugados pelas tubulações da Lava Jato.

Asfixiado, grita: “Onde está a família?”. Recebe, como retorno, o eco das próprias palavras, pois esta, alheia ao futuro das crias, centrada para não submergir nas etapas do processo de readaptação ao revolucionário aspecto familiar, nem nota o chamado. Olha de lado, a sociedade se dilacera… Para frente, as barreiras se alçam. Extenuado, permite ser vencido e admite: cumprir a missão de semear conteúdos que transformem comportamentos para agenciar a aprendizagem no estéril terreno educacional é uma missão impossível. Todo o seu trabalho foi perdido, pois não houve avanço.

Faltou presteza da gestão para proporcionar suporte, reconhecimento do Estado para proporcionar condições de trabalho, envolvimento da família com aporte, consciência do sistema para capacitar, gerar um antídoto para refrear as pragas sociais: drogas, abandono social, familiar. E, sem contenção, os fungos domésticos da violência proliferam de tal maneira que o fruto respeito foi abocanhado para alimentar os desprovidos de limites.

O cenário preocupa. A crise é geral. Falta tudo: ferramentas pedagógicas para ajustar condutas, atitudes que educam, exemplos que transformem comportamentos… Pois, em constante processo de degeneração, a família se desagregou da sociedade para se converter numa sociedade anônima e, na obscuridade, consome os próprios princípios… A sociedade rompeu o elo com a escola, declarando a sua falência, e o educador não tem mais ângulo para encarar o aluno como cliente, pelo simples fato de que o relacionamento professor-aluno-escola-família-sociedade-governo-sistema-gestor simplesmente não há.

Essa ausência de relacionamento bloqueia a busca que faz fluírem os conteúdos que ampliam a ótica de mundo, desenvolvem metodologias que proporcionam o entendimento, a construção do conhecimento, e, assim, é difícil esboçar uma plataforma que promova a aprendizagem.

A visão de quem remove pedras e semeia flores

Buscando respostas, sentei na sala dos professores de uma escola de Minas Gerais no intervalo e abordei uma professora de Matemática com 20 anos de estrada: “Como você afere a sua profissão?”. A resposta foi extraordinária:

“Não avalio. Comparo o ofício do educador ao casamento. No namoro, sorrisos, carinhos, declarações de amor, planos para o futuro… Flores… Após o casamento, é declarada a guerra das diferenças. Pedras se movem — para atingir o outro —, planos e juras de amor se vão para dar espaço às discussões, brigas, agressões… O desgaste absorve o amor, e o divórcio é inevitável. Os que insistem em permanecer juntos se imolam pelos filhos.

Com o professor não é dessemelhante. Ao ingressar na faculdade, sonhos, projetos maravilhosos para transformar o mundo por meio da Educação… Ao primeiro passo, a sala de aula. Pesadelos com os filhos — os alunos; conflitos com a sogra — a direção; choque de ideias com os cunhados — colegas e equipe técnica. E, assim, a aprendizagem não acontece, e, se não houver um resgate, a escola pedirá concordata, fechará as portas, e o educador buscará uma nova alternativa de sobrevivência, pois tornar-se-á abstruso remover pedras e semear flores!”.

À medida que escândalos vêm à tona, cobranças se intensificam na cadência das pressões, pedidos de impeachment. A confiança na política se foi, e, em meio ao processo de assentar panos quentes, o grito: “Vou desmoronar tudo e edificar novos preceitos sobre a base curricular nacional!”.

imagem_25A esperança renasce, e, confiante na nova proposta, o jardineiro fiel — o verdadeiro educador —, sempre pronto para entrar em ação, não pensa duas vezes. Arma-se para ir à luta e converter-se-á na peça fundamental, pois age impelido pelo bel-prazer de fazer a diferença. Entra em cena e revira a terra, remove pedras, extrai ervas daninhas, semeia flores… Todavia, esbarra com a pedra de tropeço; sua força não é suficiente para remover: os entraves lançados pela política, que tem plena certeza de que Educação é a conexão de denodos. Para sair do lugar-comum, estabelece ações; divide responsabilidades; promove a aprendizagem — que necessita de nutrientes imprescindíveis, como preceitos e inclusão, para principiar os procedimentos de humanização; estimula atitudes que gerem autonomia e proporcionem o exercício da cidadania para transformar comportamentos, para que informações e formação se adéquem com conformidade para o crescimento humano.

O que ensinar? O que não ensinar? Como ensinar?

É claro que os conteúdos universais de cada ciclo devem ser cobrados, excepcionalmente, nas disciplinas obrigatórias — Ciências, Geografia, Língua Portuguesa, Matemática e História —, e é nesse ponto que a responsabilidade de estados e municípios deve seguir roteiros criteriosos na elaboração do currículo, pois as escalações de conteúdos e metodologias significarão avanços ou retrocessos.

O que ensinar e o que não ensinar constituirão o termômetro que regulará o nível e desnível de aprendizagem, pois, uma vez implantado um processo com conteúdos, metodologias e finalidades deliberadas, requerem uma avaliação justa não somente do educando, mas também do educador. Este terá oportunidades para confrontar periodicamente se o que o aluno deve aprender teve acréscimo ou retrocesso, e, nessa transição, ajustar falhas, desvios, auxiliar nas dificuldades e, se necessário, desenvolver novas técnicas, recorrer a novos materiais didáticos, traçar novos alvos, inclusive com a participação da família, pelo fato de o professor confrontar com barreiras naturais no processo de aprendizagem, como o aluno que descarta determinados conteúdos por questões culturais, familiares ou religiosas.

Foi pensando no que ensinar e o que não ensinar que países que se tornaram referências mundiais em Educação, como a Finlândia, os Estados Unidos, Portugal, a Austrália e até Cuba, obtiveram resultados surpreendentes. O lucro? A mudança de ótica. Todos deixaram de vislumbrar o aluno como um todo e passaram a encarar o educando como ser único com propósitos, ideias e sonhos diferentes, até encontrarem a fórmula: respeito às diferenças. Desse respeito, nasceu a consciência de que formar cidadãos exige o cumprimento do respeito maior: o eu do educando. Esse eu esboçou intentos, determinou conteúdos — em que educadores e famílias discutem periodicamente se o avanço foi satisfatório ou não. A partir desse ponto, delineiam-se desígnios estabelecidos em padrões de ensinar e aprender, até se abordar o propósito qualidade.

Na base, envolvimento é o elo que, após acoplado, não pode ser rompido no processo escolar, pois o educador necessitará de participação para redirecionar situações, ideias, para alargar sua gama de conhecimento; suporte, aporte, autonomia para aprimorar o relacionamento com o aluno, com a família, com a sociedade, com o mundo.

É fato: os envolvidos na formação do indivíduo, excepcionalmente a família e os educadores, podem descrever o que não deu certo, onde avançaram, onde erraram, e o sistema não pode baixar a guarda, entrar no comodismo, fugir do problema para evitar subversões. Não há mudanças sem impactos e perdas. Discussões geram conflitos, todavia ampliam óticas e apresentam novas alternativas.

As alterações são imprescindíveis para as mudanças primordiais na Educação do País, e, quando ambicionamos algo, temos que pagar o preço. Essa dívida deve ser quitada antes que a deficiência na Pátria Educadora se converta em zona. Fugirmos, retardarmos a decisão, passarmos a bola adiante são atalhos que podem nos conduzir a um abismo sem fim. Audácia é o combustível. Se tivermos que enfrentar governo, sistema, ideias contraditórias, enfrentaremos; se for preciso avançarmos na contramão das tendências, avançaremos.

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O que não se pode perpetrar é se desviar do alvo. Se a regra é dividir responsabilidades e compartilhar propósitos, que venham os responsáveis com as suas parcelas. Para tanto, obrigações não podem ser interrompidas, a principiar pelo governo, que deve promover estrutura, fazer do ofício do magistério uma profissão competidora. E os ingredientes dessa receita todos sabemos: formação docente de qualidade; capacitação continuada; remuneração que atraia os melhores para a sala de aula; e a família, que, obrigatoriamente, necessita cumprir o seu papel de fomentadora de valores na formação do indivíduo.
Para atingir os desígnios de formar com qualidade, é primordial descartar as velhas metodologias de aplicar conteúdos. O novo deve focar na qualidade, que só ocorre com o desenvolvimento de competências, estabelece sincronia de ações entre políticos, especialistas, educadores e gestores, pois a base determina um núcleo gerenciador em que metas e conteúdos — por disciplina — sejam discutidos, traçados com cuidado, para somente então existir o passo definitivo, a elaboração do material didático.

A partir desse ponto, o educador tem que estar afinado, pois metodologias vão fazer a diferença na implantação de projetos, nas pesquisas e no desenvolvimento do conteúdo didático, para que, nas atividades em sala, aconteçam os ajustes.

Os educadores que obtiverem nortes para canalizar as turmas por esse caminho obterão resultados surpreendentes, pois edificarão a base com referências, cujo roteiro, delineado com quem ensina e aprende, poderá ser adequado no percurso, pois as mudanças, mesmo não afetando a autonomia do educador, e as regras de políticas públicas não podem ser postergadas, para não se desviar do alvo principal: a igualdade. Esse é o repto maior: aproximar culturas, credos, canalizar olhares para que a aprendizagem sobrevenha subsidiada pela identidade, reduzindo, assim, a distância entre os envolvidos.

Para impedir o colapso, o currículo necessita de dois pontos de equilíbrio: clareza, para impedir choques de ideias por interpretações errôneas; e objetivos definidos, para que a unidade escolar possa focar no mesmo alvo. Não há nada melhor do que consultar aquele que está no dia a dia da sala de aula — o educador — para auxiliar na construção dessa base, pois a experiência pode ser a bússola para se adaptar à nova realidade. A Base Curricular Nacional não é garantia de avanço na Educação se não houver iniciativa coletiva, formação e valorização do trabalho docente. Do contrário, o projeto será apenas mais um com apresentação belíssima, objetivos maravilhosos, que simplesmente adormecerá empoeirado no arquivo morto de escolas Brasil afora.

Outrossim, se não construirmos pontes para facilitarmos o trabalho docente, dificilmente o educador conseguirá remover pedras, tampouco preparar o terreno para semear flores, pois a Pátria Educadora, comprimida entre crises e escândalos, converteu-se num espinho na carne de quem necessita de direção, capacitação, respeito e reconhecimento — o educador.

Todavia, o extraordinário é que o educador, ainda desmotivado, compresso em salas de aulas superlotadas, sonha, e é essa aspiração de edificar um mundo mais justo para as novas gerações que o vincula à sala de aula, o motiva a não desistir, a ir além, para alimentar o desejo do seu aluno de ser alguém e, assim, sempre dar um jeito com os recursos que tem ao seu alcance. Arremetem-se, removendo pedras, semeando flores, regando — muitas vezes à base de abdicações — os planos daqueles que são postos sob a sua regência, pois optou-se por uma profissão em que o sucesso do outro depende do seu agir, da sua entrega.

Esse é o diferencial entre o educador e o professor. O professor desempenha a aplicação de conteúdos, obedece à risca aos assuntos do planejamento e cobra números, ao passo que o educador se posiciona ante os desafios, encara o aluno como uma pedra rústica que pede para ser polida, para realizar o grande sonho: transformar-se numa joia rara. Sem receio, avança, rompendo obstáculos, preparando o terreno, semeando flores, irrigando a semente que chega desprovida de nutrientes e não baixa a guarda. Acompanha a germinação, o crescimento… O florescer… Por isso, não desiste mesmo quando todos os caminhos se cerram à sua frente. Não recua. Põe em prática as habilidades e contorna.

Essa ousadia de ir ininterruptamente adiante, sem contabilizar altos e baixos, tropeços e quedas, abre a janela das oportunidades que só aqueles que tiveram o privilégio de encontrar, pela trajetória escolar, o verdadeiro educador dominam capacidades e competências para maximizar, sem receio de encarar os desafios do mercado de trabalho, o próprio futuro.

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