Edição 57

Matérias Especiais

Entrevista com Hamilton Werneck

Rosa Costa

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O professor Hamilton Werneck é doutorando, pós-graduado em Educação, pedagogo e professor do Ensino Superior reconhecido pelo Conselho Federal de Educação (CFE). Autor de vários livros, publicados no Brasil e na América Latina, e de sete DVDs educativos, Hamilton Werneck já realizou mais de 1.750 conferências em todo o Brasil, envolvendo colégios, secretarias de Educação, sindicatos patronais e de classe e universidades. Com experiência em Educação, desde as classes multisseriadas do interior até a pós-graduação, vem participando ativamente da vida educacional do País através de programas de TV e congressos nacionais e internacionais de Educação. Foi conselheiro de conselhos municipais e do Conselho Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Ex-secretário de Educação do município de Nova Friburgo (RJ), escreve para revistas e jornais especializados.

A formação do professor requer uma postura nas questões ética, política e pedagógica. A cada semestre, as academias lançam no mercado de trabalho grande quantidade de professores, porém poucos são educadores. Diante desse contexto, em que medida se pode definir o perfil do professor para o século XXI?

Observando os currículos das faculdades que formam professores, encontramos uma enorme quantidade de tarefas que incluem debates sobre textos de muitos autores consagrados em Educação. Fixam-se, essas unidades de Ensino Superior, nos aspectos teóricos do curso de Pedagogia. O que falta, na verdade, é a prática do ensino, a experiência docente e o conhecimento das disciplinas que lecionarão. O que desejamos é que cada um desses profissionais seja competente, mas o que vem a ser competência? Competência é saber lidar com situações complexas. Portanto, com base nas teorias estudadas, deveriam ser capazes de lidar com a complexidade inerente às suas tarefas de professor. Edgar Morin, entrevistado por Djénane Tager, cita Hegel e Heráclito justamente naquilo que representa uma situação complexa:

Hegel procura uma síntese que ultrapassa as contradições; em Heráclito, a contradição é indispensável, fundamental; veja a fórmula: viver de morte, morrer de vida. Pode parecer esotérica, no entanto é límpida com o que se sabe hoje. O nosso organismo vive, na verdade, da morte de nossas células, substituídas por células jovens numa regeneração permanente. Nos ecossistemas, os animais vivem da morte das plantas ou dos animais que comem; o ciclo da morte é, ao mesmo tempo, ciclo da vida.

Quero dizer que nossos recém-formados em Pedagogia, por exemplo, devem conhecer a complexidade moriniana, porque o ato de conhecer é um pilar da competência. No entanto, não devem esquecer que a habilidade é outro pilar, assim como a linguagem através da qual ensinarão às crianças. Portanto, devemos esperar que esse profissional do século XXI seja uma pessoa competente e com seus respectivos pilares muito bem estruturados.

Devemos estar conscientes do que queremos, do que buscamos enquanto educadores comprometidos com a proposta de cidadania. Acreditando nesse discurso, como inserir uma prática educativa conivente com a escola de hoje?

Concordo em responder mudando um pouco essa pergunta para “inserir uma prática educativa correspondente às exigências da escola de hoje”. Vale dizer que não concordo com a palavra conivente exatamente porque nem todas as escolas apresentam projetos político-pedagógicos com os quais se possa ser conivente.

As práticas educativas deverão contar com educadores formados para tal, conhecedores do perfil dos alunos para os quais lecionarão, portanto com formação em Psicologia do Desenvolvimento; educadores que dominem os conteúdos das disciplinas a serem lecionadas, adicionando-se a isso a capacidade de preparar as aulas para que os alunos as compreendam e, depois, organizar exercícios para que fixem o que aprenderam na memória de curta duração. Esses profissionais precisam saber distinguir exercícios de problemas. Enquanto um é rápido, repetitivo, serve para fixar um conteúdo na memória de curta duração, o outro, o problema, pode levar muito tempo para ser compreendido; os alunos, em geral, precisam de ajuda, e alguns sequer compreenderão qual é o problema. Dessa forma, o professor deverá fazer uma divisão entre exercício e problema. Deixe o exercício como dever de casa e os problemas para a sala de aula, onde o professor, presente, poderá ser a grande ajuda de que o aluno necessita. Além disso, o professor não pode mais esperar desenvolver práticas pedagógicas para as escolas das certezas, e sim das incertezas; portanto, relembrando Morin, na mesma entrevista citada e compilada pelo Instituto Piaget sob o título de Meu Caminho, quando repete Heráclito: “Se não procuras o inesperado, não o encontrarás”. Esse professor, na minha visão moriniana, será sempre um homem ou uma mulher tentando ligar o conhecimento das partes ao todo e do todo às partes, segundo a fórmula de Pascal:

Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas mantendo-se por um laço natural e insensível que liga as mais distantes e as mais diversas… (MORIN, 2008).

A busca do sonho, da esperança e da paixão de formar é tema de grande valia no desabrochar daquele educador que acredita em uma educação de qualidade. Que sugestões daria a esse educador para concretizar seus sonhos de uma educação de qualidade?

Os grandes inventores primeiro sonharam e, somente depois, puseram em prática os sonhos. Assim ocorreu com Isaac Newton, Pascal e Einstein. O professor que não se dá o direito de sonhar será um professor superado desde o primeiro dia de aula. Portanto, seja um sonhador e ponha em prática o seu sonho; que surja o dia em que você saia pela rua gritando sobre a sua descoberta, como um novo Arquimedes. Não roube o sonho de seus alunos e não aborte os gênios escondidos em sala de aula. A qualidade, “essa que está escondida na greta das coisas”, segundo Jürgen Habermas, da Escola de Frankfurt, precisa ser incrementada, e o maior fator dessa qualidade é seu aspecto humano. “Só o ser humano produz qualidade”, segundo Pedro Demo. Todas essas qualidades apresentadas na pergunta desembocam no compromisso, porque, sem ele, não haverá educação; quando muito, uma informação mecânica capaz de ser aprimorada por qualquer bom computador. Isso seria muito mais “treinar monstro que formar pessoas” (WERNECK, 2009).

O que fazer para resgatar esse educador que está ainda adormecido dentro de cada um de nós, que sofre com a falta da valorização, do respeito e da dignidade daquele que é também responsável pela educação deste país?

Por incrível que pareça, as grandes linhas de conduta, nesse caso, estão traçadas pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96). Uma educação pública, gratuita e de qualidade está prevista na Constituição Federal. Quando a União tentou um mínimo para o magistério, apesar de aumentar o piso e, junto com ele, o tempo de serviço, cinco governadores de estado, alguns deles da base política de sustentação do Governo Federal, entraram com questionamento na Suprema Corte. Ou não querem pagar ou não têm verbas para pagar. Não creio que esse educador esteja “adormecido” dentro de cada um de nós. Ele está acordado e, ao mesmo tempo, desiludido. Uma das mudanças necessárias está na formação do próprio professor: o curso de Pedagogia enfrenta uma das piores desmoralizações, sobretudo em relação à quantidade de anos de estudo, representando um grito de alerta às autoridades pela conivência com um curso de menor tamanho em relação aos que existem no Ensino Superior. Pensa-se, atualmente, na exigência de uma hora-aula de sessenta minutos, obrigando, portanto, os gestores locais das várias IES a adequarem-se às 3.200 horas dos cursos de Pedagogia. É difícil se fazerem cálculos quando se devem ajustar 3.200 horas totais, de sessenta minutos cada, em calendário e horários programados para aulas de quarenta minutos. Assim, aceitando-se tacitamente um curso de per si desmoralizado, é muito difícil que ele recobre dignidade no mundo acadêmico. Ou seja: o que o Conselho Nacional de Educação vem aprovando em relação ao curso de Pedagogia — iniciando-se pelo Parecer nº 05/2005, reexaminado pelo Parecer nº 03/2006 e aprovado em 21 de fevereiro de 2006 — fez do curso, após o cancelamento do Normal Superior, outro tipo de Normal Superior, agora com o nome de Licenciatura em Pedagogia.

Enquanto não enfrentarmos a origem desses problemas, a procura pelos cursos de Pedagogia continuará baixando, e o interesse pelas licenciaturas continuará em queda vertiginosa. Assim, o futuro próximo da educação brasileira, que já está comprometido, não apresenta transformação clara para os anos vindouros.

A globalização, as novas tecnologias, a inclusão digital e o desenvolvimento sustentável cobram do educador questões de grande complexidade. Como trazer à tona as discussões pertinentes aos temas, garantindo total adesão do público interessado?

Como já explicitei em respostas anteriores, o sistema está sendo encarregado de mover-se no sentido da produção da desilusão. Essa adesão não será possível com a formação exigida ou permitida pelos órgãos de educação, não será atingida enquanto o pensamento acadêmico continuar cartesiano-positivista, descartando a visão da complexidade. O desenvolvimento sustentável — mesmo aquele preconizado pela Escola Possibilista de Henry La Blache, contrapondo-se à Escola Determinista alemã de Frederick Ratzel — somente será compreensível mediante um olhar complexo. Redá Benkirane, no prefácio de seu livro de entrevistas com Morin, inclusive, sobre as vertigens e promessas da complexidade, retoma Paul Valéry ao abordar a complexidade como uma fronteira entre o caos e a ordem, esse momento delicioso entre a ordem e a desordem. É, portanto, nessa zona frágil e efêmera que uma totalidade poderia adotar um comportamento qualitativo novo.

Infelizmente, não temos uma vivência de zona frágil. Queremos reviver a escola da ordem e das certezas e, enquanto tentamos voltar ao passado, somos atropelados por jovens hackers que, sem completar o Ensino Médio tradicional, mostram que adotaram um comportamento qualitativo novo, com variados perigos legais.

Em relação à diversidade de cursos de formação de professores, qual a sua opinião sobre os cursos a distância, e em que momento a qualidade do ensino perpassa tais determinações?

Lembro-me de que, no passado, o Ministério da Educação chegou a ser chamado, oficialmente, de Ministério da Educação, dos Correios e dos Telégrafos, justamente por causa do ensino por correspondência. Esse tipo de ensino data do século XIX. Muitos países hoje desenvolvidos usaram e usam esses sistemas de ensino. Mais ainda se considerarmos os recursos existentes para a comunicação a distância. Interessante que as últimas avaliações do MEC sobre os cursos presenciais e a distância indicam melhor desempenho para o segundo. Em grande parte porque os que fazem cursos a distância assim agem por causa do trabalho que já desenvolvem. Portanto, aliam a experiência às teorias do curso. Tanto nos cursos a distância quanto nos presenciais, a qualidade é feita por quatro mãos: duas dos gestores do curso e as outras duas do acadêmico, se estiver motivado. Nós precisamos mudar nossas concepções em relação aos cursos a distância e saber selecioná-los, porque podem ser tão bons ou tão ruins quanto os presenciais.

Quanto à “formação continuada” (formação permanente), parafraseando Paulo Freire quando afirma que o professor é um ser inacabado, o que fazer para conscientizar alguns professores da importância de ser um eterno aprendiz?

Enquanto os acadêmicos das licenciaturas assistirem a aulas que são voltadas para a defesa das escolas das certezas, e não das incertezas, não será possível incutir-lhes a necessidade da formação continuada. Pergunto, em minhas conferências para professores, quantas máquinas fotográficas já foram usadas pelo fotógrafo oficial, ali presente, e quantas mesas de som já foram manipuladas pelo técnico. Geralmente, cada um deles troca de ferramenta em menos de um ano. Um ou outro atinge os dois anos. Certa vez, numa conversa com Alvin Tofler, ele dizia-me que uma profissão de alta-tecnologia deveria ter um prazo de validade de dois anos. É o que vemos entre os nossos técnicos. Entre educadores, deveríamos encontrar comportamento semelhante; no entanto, assim não ocorre porque o saudosismo não deixa. Ano passado, uma professora afirmou-me que não conseguia adaptar-se aos computadores porque havia “uma relação histórica entre ela e o mimeógrafo a álcool”. É bem provável que o saudosismo e a mentalidade atrasada de alguns educadores levem à burla dessa mesma formação para acrescentar algum ganho, nesse tempo, através de aulas em outros sistemas de ensino. Quem pratica ou quem é conivente presta um péssimo serviço à nação brasileira.

Diante das questões vinculadas ao Enem, qual o processo avaliativo mais coerente com relação às ações governamentais do sistema educacional e a toda a especificidade do seu processo avaliativo?

O erro de origem do Enem é usar um instrumento para avaliar o Ensino Médio e transformá-lo em exame de seleção para o Ensino Superior. O grande benefício do Enem, embora mitigado nesses dois últimos, foi tentar, e em parte conseguir, a construção de um instrumento de avaliação de caráter abrangente, menos cartesiano e mais voltado para a interdisciplinaridade, que é mais complexa. Assim, combatido pelos que desejam a segmentação — e há muito tempo detestam Giuseppe Vico e Pascal —, o Enem sofre pressões dos que adoram ver o mundo aos pedaços, onde há uma divisão brutal entre a escola e a realidade. O Enem, assim pressionado, é instado a elaborar um instrumento que não seja capaz de ler o mundo. Apesar de todos os problemas que possam ser criados, com erros de origem e com o sofrimento de pressões por todas as partes, seja pelos aspectos interdisciplinares ou pela complexidade que ele apresenta, a educação brasileira conseguiu melhorar bastante e forçar os sistemas que preparam para as universidades a agir de modo mais abrangente, verificando que o mundo apresenta um tecido e um modelo muito superior à simples descrição de fatos e de datas. Aprimore-se o Enem. Os mais argutos compreenderão sua nobre missão e terão inteligência para se adequar a novas formas e novos instrumentos que contribuam para a avaliação de nossa Educação Média.

De acordo com o sonhar, o imaginar, atrelado ao seu discurso no livro A Nota Prende, a Sabedoria Liberta, qual será o modelo de escola que vai garantir o desenvolvimento da consciência da cidadania?

Um autor anônimo dizia: “Quem não pensa é pensado por alguém ou por alguma estrutura”. Escola é uma palavra traduzida ao pé do som do grego scolé. Quando imaginamos uma escola, vemos carteiras, lousas interativas, bibliotecas, alunos e professores. Na concepção grega, era diferente: scolé significava lugar do sonho, lugar da criatividade. Isso, exatamente, nós perdemos ao longo do tempo. Hoje, um criador de jogos eletrônicos trabalha com puro sonho. Os poetas e artistas sonham, os arquitetos vêm revolucionando no ar as suas construções de toneladas superleves aos olhos de quem as contempla. Todos os que promoveram mudanças sonharam e, depois, colocaram as ideias em prática. Chegou o momento de deixar a criança escrever a história do cavalo verde e da galinha que punha ovos azuis, e não, como na história infantil, exigir da criança que escreva outra história em que os ovos são brancos. Genial a criança que, perguntada sobre o significado de rio pardo, pensou e respondeu tratar-se de um rio animal, porque, se temos leopardo, por que não um rio pardo? Fenômeno de fazer ranger os ossos de Piaget foi a resposta à minha pergunta feita a uma aluna de 10 anos da cidade de Paripiranga, na Bahia: “Minha querida, qual o resultado da soma de três mulheres e quatro abacaxis?”. Ela foi imediata: “Professor, um piquenique”. Tive, então, que passar um e-mail para meu amigo Vasco Moretto, autor dessa pergunta em livro e conferências para seus arquivos. E a resposta foi interessante e dentro do grande sonho das crianças. Dizia-me Moretto que, diante de uma pergunta malfeita, “o Oceano Atlântico banha a costa brasileira desde ………. até ……..”, a criança inteligente e de mente complexa, unindo geografia e história, respondeu: “Desde muitos anos antes de Cristo até os nossos dias”.

Neste final, deixo a minha reverência a Albert Einstein: “A imaginação é mais importante que o conhecimento”.

Prof. Hamilton Werneck é pedagogo, escritor e conferencista.
www.hamiltonwerneck.com.br
www.hamiltonwerneck.blogspot.com
E-mail: hamilton@netflash.com.br

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