Edição 29

Matérias Especiais

Entrevista com o professor Roberto Benjamim

Revista Construir Notícias – Como surgiu a idéia do livro?
Roberto Benjamim – Há muitos anos, a gente vem pesquisando as manifestações do folclore, focalizando, sobretudo a partir de Pernambuco e da Paraíba, as manifestações de origem africana. Temos trabalhos sobre os reis negros de Pombal, na Paraíba, a festa dos reis negros no interior de Pernambuco e, especificamente, alguns estudos sobre maracatu. Inclusive, o primeiro estudo monográfico sobre o maracatu rural é de minha autoria, com foco etnográfico, porque, na época, havia apenas a informação de Catarina Real de que os negros do maracatu rural estavam vindo para o Recife por conta da migração porque eles eram da Zona da Mata, e ela, como estrangeira, não tinha como penetrar no interior do Estado para apurar o seu trabalho.

CN – E depois desse trabalho?
RB – Continuei a trabalhar com maracatus. Meu trabalho mais recente é sobre os cortejos dos maracatus, publicado pela Fundação de Cultura do Recife.

CN – Como foi o caminho da Antropologia para a Educação?
RB – Na verdade, eu sempre tive uma preocupação muito grande com a Educação. Comecei como professor, ainda no Ensino Secundário, no Colégio Marista. Lá, abrimos uma escola para adultos. No governo de Roberto Magalhães, dirigi a área cultural da Secretaria de Educação de Pernambuco. Então, essa ligação entre Cultura e Educação, para mim, é parte da minha atividade desde o começo.

CN – Qual a relação entre Cultura e Educação?
RB – É uma relação permanente. A Educação só se realiza através da transmissão da Cultura.

CN – A Cultura é apaixonante? Por quê?
RB – A paixão pela Cultura vem da minha formação, da minha família. Depois, quando concluí minha graduação em Comunicação Social, eu segui a linha de trabalho de Aluísio Beltrão, que era o estudo da manifestação de comunicação na cultura popular, chamada folk comunicação. E boa parte do meu trabalho segue essa linha de pesquisa etnográfica aberta por Aluísio Beltrão. Trabalhei inicialmente com folguedos populares e, depois, tive a oportunidade de observar que as nossas tradições afro-brasileiras eram pouco estudadas porque o pessoal de Antropologia estava muito preocupado apenas com religião, e a minha preocupação estava mais voltada para outros aspectos.

CN – Quais são esses outros aspectos?
RB – Os aspectos lúdicos e o viés da comunicação nessas manifestações.

CN – Nos últimos anos, especialmente no Recife, estão surgindo muitos grupos de maracatu ou de percussão. O senhor acha que, diante desse movimento, a cultura afro-brasileira está sendo resgatada?
RB – Eu vejo um interesse crescente, especialmente da classe média, mas é um interesse por causa da moda. Eu não classificaria esses grupos novos como maracatus nem como bandas de maracatus, uma vez que a preocupação deles é exclusivamente a percussão.

CN – Como podemos definir o que é maracatu?
RB – O maracatu é um folguedo que tem origem na festa dos reis negros, na qual há um cortejo com a caracterização dos personagens, que “encarnam” personalidades. O folguedo é o teatro do povo. Mesmo quando já não há um texto verbalizado, como é o caso do maracatu, ele não perde a característica de ser teatro do povo porque, quando uma senhora que é dona de casa, no cotidiano, se apresenta como rainha do maracatu, ela encarna a personagem e passa a viver numa outra dimensão, assim como todos os outros personagens.

CN – Qual a grande herança dos negros?entrevista
RB – É muito difícil falarmos em “a” grande herança, pois a presença da cultura africana na nossa cultura é quase universal. Inclusive, muita coisa que a gente não considera uma certa africanidade é uma herança cultural, não apenas ideológica, mas que está presente em todos os sentidos da vida brasileira. Por exemplo, a gente pega a literatura, os contos populares e, muitas vezes, não se dá conta de que esse conto veio da África. Várias histórias em que se mata o dragão para libertar a princesa são recorrentes na África. E, na verdade, esses personagens são representações metafóricas: o dragão é o inimigo, o guerreiro vem e desmancha o poderio desse inimigo e liberta a princesa, que é a comunidade. Essa história está presente em vários pontos da África e está também aqui no Brasil, em várias narrativas.

CN – Como foi que surgiu a idéia do livro didático para trabalhar a história e a cultura afro-brasileira e africana?
RB – Surgiu da seguinte forma: eu havia escrito para a Editora Grafset, da Paraíba, um capítulo sobre Cultura para uma obra organizada por Manuel Correia de Andrade. Então, nesse momento, entrei em contato com o grupo da editora. E quando foi editada a lei, que eu tive acesso logo nos primeiros dias, pois era uma coisa que esperávamos há muito tempo (uma postura do governo sobre a inserção dessa temática na escola), me comuniquei com o editor dizendo que achava chegada a oportunidade de realizarmos o trabalho.

CN – Como foi captar tantas informações sobre a afro-descendência e condensar em dois livros?
RB – Na verdade, esse material já existia. O que eu precisei fazer foi um estudo muito sério sobre a história da África para selecionar o que seria colocado no livro, que tivesse uma vinculação com o nosso passado: os “pedaços” do nosso passado que estão na África. Então, no meu entender, eu não estava preocupado em resgatar a história da África, como acontece no currículo normal com a história da Europa, do Oriente Médio, do extremo Oriente, mas todo o enfoque sobre a história da África está direcionado para a relação da herança africana no Brasil. Então, algumas pessoas já me questionaram por que tem tão pouco sobre as regiões nas quais há conflitos, e a minha resposta é esta: porque não tem uma relação direta com a nossa realidade. O maior critério foi trabalhar com a história que são as matrizes da nossa herança. Por exemplo, procuramos focar a parte do Egito na África, porque a maioria dos livros de história geral focalizam a parte do Egito localizada no Oriente Médio, no entanto o Egito também é África, tanto do ponto de vista geográfico como no cultural.

CN – O senhor acha que seus livros são uma releitura da história do Brasil?
RB – Acho sim. A história contada de outra forma.

CN – Como foram as discussões para que essa lei entrasse em vigor?
RB – As discussões foram excessivamente demoradas.

CN – Qual a contribuição que essa nova lei vai trazer para a formação dos estudantes?
RB – Eu acho que ela vai refazer o conceito diante da história e da Cultura, na escola. Deve pegar desde os primeiros ciclos até a formação universitária. Nós vamos ter um redimensionamento diante da história e da cultura do Brasil a partir dela. Há núcleos de estudos de história e de Cultura completamente elitistas, porque encaram a nossa herança como herança ibérica, notadamente européia, e há grupos que estão envolvidos com a modernidade, acham que o que importa é a globalização e focam a cultura americana como nossa cultura. Nos dois casos, significa a perda de nossa identidade. Com a lei, acredito que o resgate da nossa própria história e cultura será inevitável. Até para ampliar essa nossa identidade.

CN – Como o senhor acha que será trabalhada a negritude nas escolas, especialmente nas mais elitistas, que entram pouco em contato com as manifestações que vieram da África?
RB – Eu prefiro me referir à afro-descendência, e não a negros. O número de pessoas que são herdeiras diretas dos povos africanos é muito maior do que aqueles que têm as características mais marcadamente de pele e outros aspectos de negritude. E outra coisa é que precisamos contar com o estudo e a compreensão da cultura brasileira como um todo para todas as camadas da população. Meu livro não é um livro escrito para negros, mas é um livro escrito para brasileiros.

CN – Alguns dados estatísticos apontam que pessoas negras ou afro-descendentes não se reconhecem como tal. Por que o senhor acha que isso acontece?
RB – Porque a sociedade não valoriza a afro-descendência. E aí você pode observar, por exemplo, que há uma quantidade muito grande de jovens que estão pintando o cabelo de loiro. É uma coisa que chega a ser chocante, porque reflete o desejo de se tornar branco de qualquer forma, e, na verdade, vejo essa ação como um desejo de inclusão social, e isso é, inclusive, consciente. Considero que seria até uma agressão chegar a qualquer um desses jovens e questionar o porquê dele ter pintado o cabelo, mas acho que a resposta seria exatamente esta: desejo de inclusão social, embora muitos pudessem dizer que é só brincadeira.

CN – O senhor acha que as crianças também estão carregadas de preconceito em relação aos aspectos da afro-descendência?
RB – As crianças também, porque a Cultura começa com o leite materno. E aí me lembra um fato da tradição das religiões populares de dizerem que, quando morre um recém-nascido, ele tem de passar no purgatório para vomitar o leite que morreu. O que é realmente uma deturpação do conhecimento católico. E isso reflete a idéia de que, desde a mais tenra idade, o indivíduo vai assumindo um conhecimento que não é da natureza, que é da cultura do grupo no qual ele vive.

CN – O que o senhor acha sobre as cotas para negros nas universidades brasileiras?
RB – Eu acho que, como uma medida emergencial, ela pode funcionar, mas o que eu acho mais importante é que se tenha a preocupação de melhorar a qualidade do Ensino Fundamental e Médio, porque, impondo as cotas, tem um acesso discriminatório também. Acho que o fundamental é melhorar a escola pública.

CN – Qual o caminho para melhorar a escola pública?
RB – Um dos caminhos é melhorar a seleção de professores e remunerá-los de forma mais digna do que se tem feito atualmente. E, também, dar acesso às novas tecnologias, sem dúvida nenhuma.

CN – O que o senhor acha dos programas que distribuem benefícios, como Bolsa-Escola e ProJovem, para os estudantes da população mais carente, vinculados à freqüência escolar?
RB – Em alguns casos funciona, quando não há desvio, mas o ideal era que houvesse uma mudança mais profunda, para que essas pessoas tivessem uma vida digna. A remuneração, por exemplo, do salário mínimo é realmente mínima. É preciso fazer um esforço para que a maior parte da população brasileira não esteja fora do mínimo, esteja bem acima do mínimo.

CN – Que outros grupos também mereceriam um cuidado no currículo da escola?
RB – Os nossos aborígenes, os indígenas, são apresentados na escola como os índios que assistiram à chegada de Cabral e à primeira missa. Não há um esforço da escola em tratar a história contemporânea dos índios nem da herança cultural nem do contexto social da vida dos índios no Brasil. Acho que seria importante inverter isso. Outro grupo também que, inclusive, me preocupa são os ciganos. Os ciganos são um grupo minoritário, bem minoritário, desorganizado politicamente e altamente oprimido.

entrevista1RB – Acho que merecia reparação, também imediata. Quando eu escrevi o livro África está em nós, eu pensei que ele circularia no Brasil inteiro. Em relação à população indígena, ela é muito mais numerosa e muito mais diversificada. Um livro com a valorização da herança indígena precisaria abordar questões em relação às várias nações que ainda estão entre nós. Em Pernambuco, por exemplo, temos vários grupos, cada um com características culturais muito específicas. E aí precisaríamos ter livros específicos para cada região.

CN – Como foi que o senhor chegou às características já citadas sobre os ciganos?
RB – Já tive oportunidade de “mexer” com isso, quando estava na ativa, pois hoje já estou aposentado. Tomei algumas providências em relação à presença dos ciganos, já que existe um preconceito de que todo cigano é ladrão, é bandido. Atuei em relação à imprensa e aos meus colegas, quando estava em cargo de direção, emitindo circulares advertindo sobre o repúdio ao material que presumia a culpa de pessoa da vida cigana, porque é o que acontece: quando ocorre qualquer crime na região onde há a presença cigana, em geral se coloca a culpa nessas pessoas. Isso também precisa ser revertido.

CN – Como foi que seus colegas de trabalho receberam essa notícia?
RB – Alguns receberam reiterando o preconceito. Houve até uma ocasião em que um jornal local publicou uma matéria caluniosa com relação aos ciganos, e eu reclamei. Fiz um ofício dizendo que aquilo era uma violação dos direitos humanos e que não era possível um órgão da imprensa daquele tipo estar informando as coisas daquela forma. O cidadão publicou a minha carta e embaixo colocou escrito: contudo, os ciganos são bandidos mesmo. Para esse tipo de atitude, não deveria haver espaço.

entrevista2CN – Como podemos identificar hoje um cigano? Existe glamour em torno deles?
RB – Não existe nada disso em relação aos ciganos. Na verdade, isso é uma fantasia do mundo ocidental. Ao contrário, em geral é uma população muito pobre, muito desprezada, mas que tem uma cultura própria. Dessa cultura fazem parte: língua, religião e literatura; além disso, há características específicas, como culinária, vestuário, comportamento social. Inclusive, um dos maiores preconceitos é considerarem as mulheres ciganas como prostitutas. Esse preconceito vem da grande obra literária da cigana espanhola Carmem, que é uma fantasia e que ficou no imaginário social, considerando as mulheres ciganas sensuais e promíscuas. O que é completamente errado, porque eles têm uma moralidade muito fechada.

CN – Como identificar os ciganos brasileiros?
RB – Os ciganos não têm a pele negra como os descendentes africanos, não é?! (risos) Mas, pela própria cultura deles, se identifica. Inclusive, eles se assumem como ciganos apesar de tudo, ao contrário desses afro-descendentes mais claros que querem negar sua origem. O cigano não, o cigano assume a sua condição de cigano sempre. Podemos encontrar comunidades ciganas no sertão do São Francisco, no sertão do Ceará, no sertão da Bahia, em Goiás e em Campinas, São Paulo.

CN – Como trabalhar as diferentes etnias e as relações de gênero, em especial a situação da mulher negra e pobre no Brasil?
RB – A situação de gênero agrava os problemas sociais. No Brasil, temos uma sociedade machista, e o peso da escravidão ainda se apresenta agora. Ainda carregamos um fardo muito grande por causa da escravidão: a desvalorização do trabalho manual e outros aspectos, inclusive no inconsciente. Um exemplo é o trabalho doméstico, não o trabalho em si, mas a relação com as empregadas domésticas ainda mantém traços do trabalho escravo: o horário de trabalho, o repouso não remunerado, a imposição da residência no local de trabalho (residência do patrão), muitas vezes ela se alimenta depois dos patrões ou a alimentação é diferenciada. São aspectos que a gente nunca leva em conta e que, na verdade, são resquícios do trabalho escravo.

CN – Em relação às crianças afro-descendentes, o senhor acha que elas também sofrem na escola?
RB – Isso varia muito.

CN – Como uma escola pode manter uma postura que não priorize o preconceito?
RB – Só através do tratamento igualitário.

CN – O senhor acha que é possível ensinar a não se ter o preconceito?
RB – A gente tem que trabalhar para isso. Precisamos ter uma militância permanente, inclusive, até na auto-censura. De repente, não de forma consciente, nós mesmos passamos o preconceito que temos, seja na linguagem, no comportamento ou em qualquer outro aspecto. Um exemplo é quando chamamos alguém de “aleijadinho”, de “negro”, de “branquelo”, etc., tudo isso reflete uma matriz de preconceito. Devemos é chamar as pessoas pelo nome e considerar todo mundo igual, porque, para tratar todas as pessoas do mesmo jeito, é preciso considerá-las iguais.

CN – Existem algumas camisas com a afirmação 100% negro. O que o senhor acha delas?
RB – É um desejo de reverter o processo, de assumir o que se é.

CN – Seria da mesma forma se alguém usasse uma camisa 100% branco ou 100% índio?
RB – Não acho que esse seja o caminho para a superação.

CN – Qual o caminho para a superação?
RB – Educação.

CN – Como devemos trabalhar a diversidade com as crianças?
RB – É preciso colocar a diversidade acima de qualquer preconceito. É preciso pontuar que todos são iguais, que as crianças de todo o mundo são crianças, simplesmente.

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