Edição 115
Matéria Âncora
Eu tenho palavra
Christianne Galdino
Eu tinha seis anos quando aprendi a ler e escrever: essa foi minha primeira experiência de deslumbramento. Então, antes de falar qualquer coisa sobre esse tema, preciso declarar minha paixão pelas palavras. Com aquela descoberta, o encanto me tomou de tal forma que passava os dias copiando jornais, revistas e todas as palavras que encontrava pelo caminho. Escrever, combinar as palavras, criar com elas era minha brincadeira preferida. Nem rótulos e bulas de remédio escapavam das minhas cópias intermináveis. Cresci sob os efeitos da força das palavras na minha vida. E, com elas, sigo traduzindo e interpretando o mundo.
Recentemente, a crescente busca por ferramentas de autoconhecimento — talvez um dos melhores efeitos desta pandemia — tornou popular o livro de Don Miguel Ruiz, Os quatro compromissos toltecas, no qual ele explica os princípios simples e profundos desses cientistas, artistas e filósofos que viveram no sul do México há milhares de anos. Autodefinido como um guia prático para a liberdade pessoal, o livro apresenta como primeiro compromisso: seja impecável com sua palavra. Para uma confessa amante das palavras como eu, esse enunciado é mais do que um convite, é uma convocação. Então, lá fui eu atender imediatamente ao chamado. Os toltecas falam que as palavras são como sementes, que, se encontram solo fértil, germinam, crescem, proliferam. E que as coisas que falamos e/ou ouvimos podem mudar nossa vida para o bem ou para o mal; então, a reflexão e o cuidado com o que dizemos para nós e para os outros é de uma importância primordial. Como espécie, o ser humano é o único que pode falar; por isso, segundo eles, a palavra é a mais poderosa ferramenta que possuímos. Nem preciso dizer que eu concordo totalmente. “Porém, como uma espada de dois gumes, ela pode criar o sonho mais belo ou destruir tudo ao seu redor. Dependendo de como é usada, ela pode libertá-lo ou escravizá-lo mais do que imagina” — detalha Ruiz.
É comum ouvirmos pessoas dizendo que não vão conseguir tal coisa. Quando ouço essas desistências prévias, costumo reagir dizendo que realmente a pessoa não vai, já que acaba de declarar isso para si mesma. Por outro lado, a experiência também me mostra o exemplo oposto, sujeitos que anunciam feitos que parecem improváveis e que, de tanto repetirem com fervor que vão conseguir, realmente os realizam. Poderia citar inúmeros exemplos, mas acredito que já deu para entender o espírito da coisa. Vamos seguir aqui, então, analisando melhor o princípio. O que será que ele quer dizer com ser impecável? Procurando no dicionário, a gente encontra perfeito, correto, incapaz de errar e outras definições similares como significado da palavra. E, para alcançar esse uso perfeito, os toltecas nos deram dicas preciosas, como: “Ser impecável com sua palavra é não a usar contra você mesmo, é empregar corretamente a sua energia. Usá-la na direção da verdade e do amor”. Na prática — dizem eles —, quando você usa a fala para insultar, culpar, amaldiçoar, destruir o outro, você vai gerar reações e emoções negativas, como revolta, raiva, ódio, ressentimento, que vão se voltar contra você.
Nesse momento, eu paro e penso nas vezes que ouvi coisas que me fizeram sofrer. No instante seguinte, mudo de lugar e revejo as palavras duras que, no auge da fúria, do desespero ou da impaciência, despejamos, muitas vezes exatamente em cima daqueles que mais amamos. Aí penso logo no estrago que nós, pais, mães, professores, líderes, podemos causar na vida de uma criança ou adolescente com o mau uso das palavras. E isso não tem necessariamente a ver com xingamentos ou gritos; afirmações que rotulam, limitam ou subestimam a capacidade dos filhos ou alunos podem prejudicar de uma forma até mais grave e irreversível o desenvolvimento saudável deles. Ainda bem que meu exame de consciência encontrou também os bons exemplos, as referências positivas. Pois é, tem situações que testam nossa paciência; mesmo assim, calar ainda é a melhor escolha; como bem diz um provérbio indiano: “Quando falares, cuida para que tuas palavras sejam melhores que o silêncio”. Quantos problemas, crises e até guerras podiam ter sido evitados com uma simples mudança de palavras?!
Lá nos períodos iniciais do curso de jornalismo, a gente estuda os sistemas de comunicação e aprende a identificar os ruídos que impedem ou prejudicam esse processo. Ultimamente tenho prestado muita atenção aos tais ruídos, em todos os níveis, e noto que eles trazem mesmo muita interferência e desentendimentos. Haja diz-que-me-disse e confusão! Na impecabilidade defendida pelos toltecas, nenhum ruído pode estar no caminho fluido, certeiro e amoroso das palavras. Por isso, antes de lançar as sementes da sua fala, melhor se certificar do que você está plantando, palavra dita não volta atrás. Quantas críticas e quantos julgamentos viram nossa verdade de tanto que os ouvimos, mas também quantas frases ditas por professores queridos se tornam verdadeiros mantras, nos encorajando para enfrentarmos os desafios da vida adulta? Acho que, a essa altura da conversa, ninguém duvida mais do poder das palavras, não é?
Mas ainda tem uma coisa importante para a gente falar: “o solo” onde são plantadas as sementes/palavras. A escuta é o outro lado do processo de comunicação, e cuidar desse terreno também é um pré-requisito para ser impecável com a palavra. E aí o conselho dos toltecas é bem prático: não dê ouvidos. Se vierem fofocar, não ouça; se disserem coisas negativas sobre você ou o julgarem incapaz de grandes feitos e boas atitudes, ignore.
Em uma época como essa, as redes sociais viram palco de extensas polêmicas geradas por comentários negativos publicados nos perfis famosos e anônimos. Para nos defendermos, muitas vezes, fingimos não ligar para a opinião alheia; mas, quando a fala toca em algum trauma ou ferida, fica difícil não se abalar. Isso porque, como diz a pesquisadora e escritora norte-americana Brené Brown, “Somos programados biologicamente para ligar para a opinião alheia. A gente liga para a opinião dos outros, sim. O x da questão é saber escolher as pessoas cujas opiniões importam. Sabe quem são? As pessoas que amam você não apesar das suas imperfeições, mas por causa delas. Não quem concorda com tudo, mas quem diz: ‘É, dessa vez você passou dos limites. Estarei aqui se precisar de mim, mas você errou’”.
Então, as perguntas são: “Que tipo de solo eu sou?”, “Quais são as sementes que germino, que permito que cresçam e floresçam em mim?”. Porque mesmo a palavra mais cruel, se não encontra terreno fértil, sequer consegue brotar. E, para não deixar nenhuma palavra do princípio tolteca sem a devida atenção, precisamos entender ainda o significado de compromisso. Distante da rigidez e do mau humor da palavra obrigação, esse comprometimento combina mais com outra palavra lugar-comum da atualidade, a autorresponsabilidade. Como o próprio nome indica, trata-se de uma ação individual consciente, do sujeito e para o sujeito, um compromisso consigo mesmo. Ser impecável com sua palavra é pensar bem antes de falar; mas é também falar o que realmente sente; expressar sua verdade com nitidez; comunicar com amor, principalmente se o seu interlocutor é uma criança ou um adolescente, que está em formação. E por falar em palavras, ofereço aqui algumas boas que podem ser de grande valia na sua jornada e ainda são fazedoras de rima, porque é sempre bom ter um estoque extra de arte para ajudar a ver beleza: equidade-diversidade-liberdade, empatia-alegria-poesia, amor.