Edição 40
Matérias Especiais
Fenômeno Bullying: Prática pedagógica e violência escolar
Genilson C. Marinho e Vera A. C. Capucho
Estudos sobre o bullying em Pernambuco
Nos últimos tempos, muito se tem dito sobre o fenômeno bullying. Livros foram traduzidos e publicados, dissertações e teses versando sobre o tema já foram defendidas ou estão em curso, há abundância de informação na internet e, com maior freqüência, passamos a ver o tema na mídia. Além disso, projetos de lei vêm sendo aprovados em diversos estados, objetivando a prevenção desse fenômeno. Sem dúvida, o notório caso Columbine (EUA) e o trabalho da professora Cléo Fante à frente do Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar (Cemeobes) colaboraram significativamente para a divulgação da temática, porém temos outras instituições trabalhando seriamente em prol do combate ao problema, dentre elas apontamos a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), que, desde 1998, dispõe de um site bastante instrutivo, com informações acessíveis a pais, professores, vítimas e profissionais de saúde.
Apesar da profusão de informações, a temática ainda está distante da maioria dos profissionais que atuam na área educacional e, quando estes declaram ter alguma informação sobre o assunto, na maioria das vezes ela está ligada a algum relato que presenciou ou ouviu falar, não havendo maior aprofundamento. No que tange a alunos e pais, as informações são mais superficiais ainda, revelando que o fenômeno bullying — apesar de estar presente na grande maioria das escolas brasileiras, das redes pública e particular, e atingir alunos de diferentes níveis de ensino, da Educação Infantil ao Ensino Superior, com conseqüências para o desenvolvimento e a aprendizagem do educando — é um desconhecido da comunidade escolar.
Visando favorecer a discussão sobre o tema, a Ger Vitae – Coletivo de Educadores organizou, no ano de 2007, o primeiro Seminário de Valores Humanos de Pernambuco, tendo como foco de discussão os comportamentos anti-sociais na escola, com ênfase no fenômeno bullying. O evento contou com a presença de aproximadamente 350 profissionais atuantes na área educacional, formal e não formal, o que demonstrou a sensibilidade e urgência de trazer a público discussões sobre a questão.
Como o tema é bastante atual e está entrelaçado com os demais espaços sociais — entre eles, a família —, por meio do Projeto Atos, desenvolvido pela ONG Tortura Nunca Mais, tornou-se possível levar informações sobre bullying para educadores que debatem e atuam na prevenção da violência doméstica. Também foi possível levar informações sobre o tema a professores de colégios atentos às necessidades de sua comunidade — dentre eles citamos, no Recife, o Colégio Damas, o Colégio Sagrada Família, o Colégio Independência; em Olinda, o Colégio de São Bento; e, ainda, no interior do Estado, o Colégio Santa Maria, em Timbaúba, e a Faculdade Falup, em Carpina.
Por meio de palestra interativa, o tema é apresentado a professores, pais e alunos, porém, devido ao grande volume de informações e à necessidade de uma discussão mais verticalizada junto aos profissionais da educação, tornou-se necessária a formação de um grupo de estudo do qual resultou o Curso Introdutório ao Fenômeno Bullying, que vem sendo desenvolvido em parceria com instituições preocupadas com o cenário de violência presente nas escolas pernambucanas e com a qualidade social do ensino.
Diante do cenário encontrado em nossas escolas, da falta de informação e dados e da urgência na formação continuada de professores e demais profissionais da educação, nasceu o projeto O Fenômeno Bullying em Pernambuco: pesquisa e ação, que vem sendo coordenado pela Ger Vitae – Coletivo de Educadores e conta, nesta primeira etapa, com a realização de pesquisa de campo para levantamento de dados sobre o fenômeno em nosso estado e formulação de uma “cartilha” com informações e dicas de prevenção sobre o bullying e o cyberbullying, que é a forma virtual de propagação do fenômeno.
O fenômeno bullying
O poder de sensibilização ao fenômeno bullying está relacionado, entre outros fatores, à sua alta carga emotiva devido ao fato de o ciclo se fechar muitas vezes com manifestação de alto grau de violência e seqüelas profundas — o fenômeno chega a ser denominado por Rubem Alves como forma escolar de tortura —, mas também devido ao fato de relacionar-se à busca de maneiras eficientes de transformar uma sala de aula em que se apresentam condutas desrespeitosas e violentas num espaço de respeito e ensino–aprendizagem efetivo. Ao estudar o fenômeno, alguns autores optam por um reducionismo psicológico; outros ainda o tratam sob uma ótica sociológica, propondo encaminhamentos pedagógicos coerentes com essas escolhas. É exemplo da primeira opção a corrente compreensão de que a solução do bullying está em tratar por meio de terapia individual a vítima e o agressor, sem envolvimento da comunidade escolar. Dessa linha, derivam idéias do tipo “Não vale a pena falar sobre o assunto na escola, pois, desse modo, estaríamos estimulando a ocorrência”, as quais acreditam numa resolução derivada da orientação direta às famílias das vítimas e de medidas socioeducativas aos agressores; ou, ainda, em casos mais graves, a idéia de que os problemas são comuns a certas faixas etárias, esvaecendo com a idade. As pesquisas já demonstraram que essas posições não só não favorecem a resolução dos problemas, como são potencializadoras de novos casos.
Devido à complexidade do problema e ao crescente índice de violência escolar, apontado por Duarte (2006) em pesquisa sobre o efeito da violência no aprendizado nas escolas públicas do Recife, a problemática da violência escolar não deve ser desvinculada dos altos índices de pobreza e desamparo político em que vive grande parte da população brasileira, em especial a recifense. Esse autor nos auxilia a compreender que a perpetuação da situação de exclusão — econômica, cultural, afetiva, etc. — é fruto de uma ordem social que vem passando por um processo de esgarçamento deveras preocupante, intensificado pela competitividade oriunda do capitalismo em sua fase tardia.
Essa abordagem dialoga com a necessidade de compreender o contexto cultural da vida dos indivíduos envolvidos, pois, como apontam Beaudon e Taylor (2006), “os pensamentos dos indivíduos geralmente estão sujeitos a um filtro cultural daquilo que é aceitável num contexto específico”, o que significa dizer que o pensamento está sujeito a bloqueios culturais, os quais provêm da cultura em sentido mais amplo, a saber: patriarcado, capitalismo, individualismo, racismo e adultismo.
Buscando esclarecer os efeitos mais comuns desses bloqueios, as autoras formularam o quadro abaixo:
Bloqueio Cultural | Efeitos | |
Patriarcado | Meninas/mulheres | Meninos/homens |
Concentrar-se nas necessidades dos outros. Sacrifício. Fazer a gentileza de ser delicada. Ter boa aparência a qualquer custo. Ser uma boa cuidadora. Expressar emoções. |
Ser durão/forte. Ser independente. Não demonstrar sentimento/emoção. Sentir-se desconfortável com afeto e proximidade. Concentrar-se na idéia de ser o melhor. Desligar-se dos sentimentos de medo, dor, atenção aos outros, etc. Ter interesse em esportes. Agir como um protetor. |
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Individualismo | Concentrar-se nos direitos e nas necessidades pessoais. Alcançar o sucesso pessoal. Enfatizar a privacidade. Lutar para ter o que deseja. Entender os problemas e os sucessos como individuais. Ter um vínculo mínimo com familiares, parentes e antepassados. |
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Adultismo | Acreditar que os adultos têm direito de gritar, mas as crianças não; as crianças raramente ganham o poder de tomar decisões; raramente dá-se a elas a chance de se expressarem ou pedem-se suas opiniões; os adolescentes rebelam-se e não sabem o que pensar ou o que querer, já que a ordem é sempre escutar. | |
Capitalismo | Concentrar-se no sucesso, definido pela propriedade material ou financeira. Operar em um ambiente de comparação, de competição e de avaliação dos desempenhos. Dicotomizar as pessoas. Dicotomizar as pessoas como vencedoras ou perdedoras. Criar hierarquias (padrões). Permitir a exploração dos recursos, pouco considerando as implicações ao meio ambiente. Enfatizar os ganhos futuros em detrimento dos do atual momento. Dar mais valor ao fazer do que ao ser. |
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Racismo, Homofobia, Sexismo |
Gerar uma falsa idéia de posse e de superioridade de um grupo em relação a outro. Desenvolver uma intolerância em relação às diferenças. Tornar invisíveis os valores e a riqueza da diversidade. Gerar o ódio a si mesmo e a falta de autoconfiança nos grupos oprimidos. Lutar pelo poder, o que pode incluir a violência. Sofrer medo, isolamento, desconfiança. Ter crenças limitadas, estereotipadas. |
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Fonte: Bullying e Desrespeito, p. 27. |
Nessa perspectiva, atuar em prol da prevenção do bullying escolar implica ir além de campanhas pontuais, grupos de auto-ajuda ou terapias individuais, sem acarretar uma maior sobrecarga de atribuições aos professores. É necessário valorizar os trabalhadores da Educação, apoiar a formação continuada, estimular práticas pedagógicas compromissadas com a desestruturação dos bloqueios culturais, a consolidação dos Direitos Humanos e a transformação efetiva da sociedade e, no que tange à comunidade escolar, viabilizar o acesso a informações sobre a temática, estimular o diálogo, o respeito à criança e aos seus direitos.
No caso específico de nosso país, de tradição patriarcal e escravocrata e sob a égide de um capitalismo selvagem, destacamos ser imprescindível a consolidação de práticas pedagógicas contrárias a todo e qualquer tipo de racismo. Com a aprovação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatória a inclusão de História e Cultura Afro-brasileira no currículo escolar, abriu-se uma importante oportunidade para o desenvolvimento de materiais didáticos e práticas pedagógicas voltados para a diversidade e o combate à discriminação.
Contra a invisibilidade da criança negra, da cultura afro e as práticas pedagógicas segregadoras, defendemos que o efetivo cumprimento dessa lei pode ser uma excelente oportunidade para atuar nos bloqueios culturais e, por conseguinte, na prevenção ao bullying. Para tanto, reforçamos a importância da formação continuada dos trabalhadores da Educação à luz do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e da ampliação do acesso a informações sobre o fenômeno bullying.
Finalizando este artigo, apresentamos o caso de Ana — que, em tenra idade, sofreu as amarguras do comportamento agressivo, cruel, intencional e repetitivo, ou seja, o bullying —, objetivando favorecer a reflexão e sensibilização diante desta que é a situação de que muitas de nossas crianças se encontram à mercê.
Ana se lembra, ainda emocionada, da época em que foi vitimizada na escola. Os coleguinhas diariamente caçoavam de sua cor, já que era a única menina negra da classe. Chamavam-na de vários apelidos pejorativos e discriminatórios, excluindo-a das brincadeiras, o que a tornava cada dia mais infeliz. Com tristeza nos olhos, relembra que certo dia, pela manhã, tomou a decisão de entrar numa bacia com água e sabão e esfregar-se com muita força, desejando que a “sujeira” saísse de sua pele, conforme dela caçoavam os seus colegas (in. Fante, 2005:34).
Lei nº 10.639/2003
Art. 1º. A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos arts. 26-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História brasileiras.”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.”
A equipe da Ger Vitae – Coletivo de Educadores pode ser contatada pelo e-mail: gvapoio@yahoo.com.br.
Bibliografia
BEAUDOIN, Marie Nathalie. TAYLOR, Maureen. Bullying e desrespeito: como acabar com essa cultura na escola. Porto Alegre: Artmed, 2006.
DUARTE, Renato. Efeitos da violência sobre o aprendizado nas escolas públicas da cidade do Recife. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006.
FANTE, Cléo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. Campinas: Versus, 2005.
Sites: www.bullying.pro.br; www.abrapia.org.br; nomorebullying.blig.ig.com.br
Genilson C. Marinho é Mestre em Teoria e História da Educação pela UFPE, bacharel licenciado em História e Geografia pela USP, professor de Ensino Superior, formador de professores, palestrante especialista em Temáticas Educacionais Contemporâneas, consultor pedagógico, membro da Ger Vitae – Coletivo de Educadores, coordenador regional da assessoria pedagógica Ibep, gerente de políticas em Direitos Humanos, Diversidade e Cidadania SE/PE, Prêmio Dom Helder Camara de Cultura de Paz – Unesco.
Vera A. C. Capucho é Mestra em Formação de Professores e Prática Pedagógica pela UFPE, bacharel licenciada em História e Geografia pela USP, diretora da rede particular de ensino, professora de Prática de Ensino na UFPE, palestrante especialista em Temáticas Educacionais Contemporâneas, consultora pedagógica, coordenadora da Ger Vitae – Coletivo de Educadores, coordenadora regional da Assessoria Pedagógica Ibep, Prêmio Dom Helder Camara de Cultura de Paz – Unesco.