Edição 105

A fala do mestre

Flores e Espinhos

Nos artigos passados, abordamos conflitos que comumente nos atingem na nossa lida diária nas salas de aula Brasil afora. Nossos apontamentos são sempre gerais e buscam traduzir angústias que perseguem os professores de um extremo a outro do nosso país. Desta vez, no entanto, pedirei licença aos colegas, sobretudo aos mais experientes, para falar de forma mais pessoal. A intenção não é outra senão abordar diretamente o tema central desta edição da nossa Construir Notícias, isto é, refletir sobre a relação que se estabelece entre nós e a escola; mais especificamente, sobre as agonias e alegrias que permeiam nossa profissão.

Não é novidade para nenhum de nós que a docência traz, muitas vezes, profunda alegria e algumas tristezas. Falemos, primeiro, das alegrias. A primeira alegria que me vem à mente é que enfrentar um grupo de 20, 50, 100 pessoas, interagir com elas e orientá-las na busca pelo conhecimento útil é uma das experiências pessoais mais importantes que temos. Vejo essa realização pela ótica do professor que, de fato, abraçou o magistério como compromisso pessoal, entregando-se à profissão com o sentimento de que, entre todas as opções, fez a melhor escolha. Como qualquer ato de fé, essa compreensão do magistério implica entrega, dedicação. Implica ter certeza de que ser professor não é somente ter conhecimento, mas que é fundamental saber conduzir os alunos até ele. Isso envolve, inclusive, capacidade teatral e psicologia. Mais ainda: exige, mais do que nunca, habilidade para conectar os saberes entre si e com a realidade que nos engloba. Na escola do futuro, que já é real para muitos de nós, essa habilidade nada mais é que o percurso entre nosso ponto de partida e nosso ponto de chegada.

As deficiências dos alunos são sempre nosso ponto de partida. O ponto de chegada somos nós que determinamos. Se os alunos leem pouco, esse é nosso ponto de partida. Nenhum professor parte desse ponto simplesmente mandando os alunos lerem. Façamos dessa angústia uma alegria. É preciso estimulá-los à leitura, seduzi-los pela curiosidade. Podemos trabalhar Clara dos Anjos no 9º ano. Mas, antes, precisamos levar para a aula o colega de História, para despertar, pelo diálogo, a curiosidade sobre pontos fundamentais da obra de Lima Barreto, que a concluiu em 1922, apenas 34 anos depois da Lei Áurea. Existe racismo no Brasil? As mulheres são discriminadas? Que preconceitos afligiam as mulheres negras no início do século 20? Precisamos falar de misoginia para crianças e jovens de uma sociedade em que um terço dos adultos acreditam que a culpa do estupro é da mulher. Fazer as perguntas certas é ter consciência de que a diferença entre o remédio e o veneno é apenas a dose.

Em outras palavras, precisamos dar menos importância para a memória e mais atenção para a reflexão. As respostas já estão prontas, engessadas nos livros ou fluidificadas na Internet. Para ter alegria, uma das missões do professor é provocar na medida certa. Por que um copo com gelo e água até a borda não transborda quando o gelo derrete? Como era fazer fogo utilizando gravetos? Por que a água fervente amolece a batata e endurece o ovo? Por que a chuva cai em gotas, e não de uma vez, como uma cachoeira?

A alegria, portanto, passa necessariamente pela satisfação de ensinar, mesmo que em condições desfavoráveis. Render-se à adversidade significa fracasso. Impossível exercer o magistério, tal como deve ser, em rendição. É entregar-se à desilusão. Logicamente, a docência implica agonias: corrigir provas, elaborar questões no tempo livre, trabalhar três turnos, fazer chamada, perder a voz. Mas isso tudo faz parte, são dissabores da profissão. É preciso ter muito claro que plantamos carvalho, não eucalipto, como diria nosso querido Rubem Alves. Isso significa que nosso trabalho exige um tempo muito grande para dar resultado.

Os colegas, mesmo aqueles que estão em condições de trabalho completamente desfavoráveis, sabem que, no fundo, quanto mais desalento, mais difícil colaborar para fazer a diferença na vida de uma alma que seja. Digo sempre que quem ensina com amor faz caridade para si e marca de alegria e esperança o coração e a memória dos outros.

Lembro-me do primeiro dia em que entrei em uma sala de professores não como aluno, mas como professor. Não tive uma recepção calorosa, com boas-vindas, simpatia. Fui recebido com a mais sincera indiferença fúnebre. O esquife era a própria escola, que, apesar do faustoso passado, estava em queda vertiginosa para a falência. Fiquei assombrado com a adversidade. Era muito jovem, estava ainda na faculdade de Letras. Alguns dias depois, o professor a quem eu deveria ajudar nas aulas de produção de texto me orientou, em tom fraternal, a mudar de profissão. Culpando as deficiências dos alunos, disse que não sabiam escrever e que, por isso, só dava aula de Gramática. Ele estava rendido e, na melhor das intenções, acredito, queria me render.

Costumo dizer que é inútil comparar a nossa realidade com o que acontece nos países desenvolvidos. Na defesa da BNCC do Ensino Médio, por exemplo, o MEC buscou inúmeras referências ao currículo implementado em países como a Noruega, a Dinamarca, a Coreia do Sul. No entanto, ignora-se que, em 1960, quando estava arruinada e possuía os mesmos indicadores sociais que o Brasil, a Coreia decidiu que deveria investir 50% do PIB na educação. Em 20 anos era uma nação do Primeiro Mundo. Não há país que cresça sem educação. Enquanto tateamos no campo político quanto à validade dessa máxima, resta-nos ir para o front e fazer a nossa parte.

Em um singelo livrinho de bolso, cujo título é o mesmo deste artigo, um grande amigo espiritualista escreveu que o caminho para o bem possui flores e espinhos. Com sabedoria, alerta ao leitor que o caminho é florido e espinhoso, mas quem só olha os espinhos não consegue contemplar as flores. Assim é a nossa sala de aula.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental.
E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

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