Edição 89

Ambiente-se

Formar leitores: possibilidade de vencer a barbárie

Sandra Bozza

O berço da desigualdade está na desigualdade do berço
Cristovam Buarque

Sempre que observava meus alunos do 8º ano produzindo textos, lendo ou elaborando cartazes e convites (com vontade, independência e responsabilidade), constatava que, de fato, o impossível simplesmente são coisas que demandam mais tempo, mais paciência e maior esforço para serem realizadas.

Leiturizar crianças e adolescentes de classes sociais economicamente pouco favorecidas não é tarefa fácil!

Faz-se necessária uma vontade férrea, uma flexibilidade artística e uma determinação jesuítica!

Ainda assim, estaremos sempre à mercê do insucesso, pois o número de variáveis externas que interceptarão esse processo é infinito. Seria inútil tentar levantar as mais graves ou as mais evidentes, pois todas corroboram para o mesmo fim: distanciar o aprendiz da aquisição da linguagem escrita, seja nas práticas de leitura, de produção ou da reflexão sobre os conteúdos de Língua Portuguesa.

Todavia, algumas circunstâncias são recorrentes e previsíveis nesta já conhecida faina e devem ser amplamente refletidas, pois disso talvez decorram possibilidades para a superação de uma situação que se está caracterizando como insustentável: o insucesso frequente no ensino da leitura e da escrita em nosso país.

Correndo o risco de parecer ingênua, rasa ou utópica no que vou defender, ouso afirmar que não julgo difícil achar a solução para tão problemática questão. Minha experiência de 33 anos de magistério, desempenhados em todos os níveis de ensino (da Educação Infantil à Pós-graduação), municiou-me de algumas provas que gostaria de socializar neste espaço.

Para um primeiro passo a ser dado nessa direção, que fique claro que acredito que ninguém dá o que não tem: para bem ensinar a ler é preciso saber ler bem. Assim, antes de propor estratégias e dividir algumas experiências que lograram êxito nas aulas de leitura, é necessário chamar a atenção para um aspecto fundamental da concepção de aprendizagem que embasa as práticas que serão propostas. Urge que os educadores (pais, responsáveis e professores) adquiram a consciência de que, se a palavra convence, o exemplo arrasta.

É pelo exemplo que se ensina qualquer ação humana, inclusive a leitura.

É na gesta social que o sujeito apreende e aprende!

É imerso no caldo cultural de determinado grupo social que o ser humano apreende ações e valores vivenciados e valorizados por aquela comunidade.

É interagindo com parceiros mais experientes e sendo aguçados em suas necessidades que surge o desejo de os mais novos participarem mais ativamente da vida societária e, com isso, aprenderem a realizar ações que são mediadas, intencionalmente ou não, por aquelas pessoas que, a rigor, são responsáveis pela sua educação.
Cito, para poder reafirmar, Rousseau: o Homem é produto de seu meio.

Assim, uma família que valorize demasiadamente o consumo, a televisão, os jogos eletrônicos ou a comida e não demonstre, em nenhum momento, que ler é algo que pode dar prazer, proporcionar informações e possibilitar conhecimentos (enfim, também liberar endorfina) dificilmente terá crianças se interessando por livros, revistas e jornais. A satisfação dessas crianças será sempre suprida por algo que possa ser comprado conforme os ditames da mídia escrita ou falada.

Propositalmente, inicio esta reflexão sobre a influência da família na formação do leitor (segundo a Câmara Brasileira do Livro, é de 37%) usando como exemplo a classe econômica de melhor poder aquisitivo, pois não raro são levantadas, entre os professores, algumas justificativas para a dificuldade de se desenvolver o gosto pela leitura, e uma delas é a falta de condições econômicas que professores e alunos têm para adquirir livros. O que já denota a pouca prática desses educadores em relação à dinâmica de acesso aos livros, seja por meio de empréstimos em bibliotecas públicas, seja junto a pessoas que praticam com a maior veemência a partilha de suas obras.

Não se pode ignorar que uma família com menor capital cultural e ínfimo poder aquisitivo dará prioridade ao suprimento de necessidades básicas, não se preocupando, evidentemente, com aquilo que não percebem como fundamental para a formação de sua prole. Isso, obviamente, dificulta a tarefa da escola, que terá uma responsabilidade ainda maior com relação à leiturização: além de ensinar a ler, terá que desvelar a necessidade e a importância da leitura para uma sociedade letrada, como a nossa, que é organizada a partir da língua escrita.

Da mesma forma, constata-se que a tarefa da escola não é facilitada, mesmo com alunos oriundos de famílias que possuem condições financeiras privilegiadas, pois algumas dessas não veem na leitura uma possibilidade de aquisição de novos conhecimentos ou mesmo de lazer. Preferem, como nas famílias mais modestas, os programas de TV, os DVDs, os jogos eletrônicos.

Todavia, o que foi possível observar, ao longo dos anos, em contato direto com a prática pedagógica, é que a própria escola afasta, de maneira muito competente, o aluno do prazer da leitura. Ou, no mínimo, não o conquista com competência para essa forma tão elaborada de produção humana.

Não precisamos fazer muito esforço para essa constatação. Basta analisarmos com cuidado o que é comumente proposto no quadro de giz ou nos livros didáticos, quer para o trabalho com textos informativos, narrativos e poéticos, quer para as atividades literárias. As atividades relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, enfatizando o estudo da gramática normativa, a memorização e classificação de palavras e de orações e os exercícios de fixação sem relação alguma com a escrita produzida socialmente, também produzem uma espécie de aversão a tudo o que se refere à leitura e à escrita.

Quando não, a prática recorrente de algumas escolas determinarem a leitura de livros paradidáticos bimestrais ou mensais e a forma como são avaliadas essas leituras respaldam a afirmação sobre a responsabilidade da escola na formação de sujeitos não leitores.

Porém, o que mais eficazmente demonstra a fragilidade das práticas pedagógicas relacionadas à leitura é como muitas escolas iniciam o processo de alfabetização.

Talvez aí resida a linha tênue e invisível que separa sucesso e fracasso no processo de aquisição da linguagem escrita, pois determinantes são as ações pedagógicas desenvolvidas nesse período de vida da criança como determinante será a relação desta com a leitura para o resto de sua vida.
Até os cinco ou seis anos de idade, as crianças estão absolutamente entregues à magia das narrativas, à sonoridade de seu próprio tatibitate, ao ritmo do cantar ou reproduzir quadrinhas e parlendas, ao enlevamento com as melopeias (repetição agradável de determinados sons), ao desafio das adivinhas e, principalmente, estão completamente abertas ao som da voz do outro!

Toda essa predisposição é ignorada e desautorizada pelo ensino oficial quando, nas primeiras aproximações com a linguagem escrita, apresentam-se unidades tão pequenas e incoerentes que não fazem sentido nenhum para aqueles pequenos falantes: letras, sílabas, palavras e frases escritas apenas com as sílabas já aprendidas, como um exemplo curioso encontrado em uma cartilha: “O leão Poli papa papoulas”.

Paradigmas já superados pela Psicologia do Desenvolvimento Humano e pela Linguística continuam sendo utilizados para respaldar práticas que já se mostraram ineficientes há mais de vinte anos e só interessam àqueles que não estão preocupados, de fato, com o letramento da população brasileira.

Por isso, pouco se avança em direção ao que precisa ser feito: iniciar o processo de leiturização evidenciando para os alunos o que é a língua escrita, para que a sociedade a utiliza e como se organiza para representar o que pensamos ou falamos. Para tanto, não há melhor caminho do que ler para os alunos, pelos alunos e com os alunos, ainda que estes ainda não saibam ler.

Quantas vezes por semana educadores infantis e das séries iniciais preparam magicamente o ambiente escolar para que os alunos ouçam, encantados, a leitura de um conto clássico?

Quando são chamados para as escolas pais e mães, avôs e avós, tias e tios para contar um caso de assombração que lhes fazia tremer de medo quando criança?

Quem é apresentado para os alunos como autor de livros, narrando seu processo criativo e editorial?

Que tipo de peça teatral ou filme é assistido e discutido com o intuito de estabelecer relações com os textos já lidos ou com os contos clássicos?

Onde estão adivinhas, charadas, lenga-lengas, músicas e contos cumulativos do nosso tão rico folclore?

Todo esse material, se bem selecionado e preparado didaticamente, pode se transformar na “pré-história” da leitura e da escrita.

É um processo que pode ser iniciado muito cedo, pois é leve, lúdico, muito dinâmico e prazeroso e, se bem encaminhado, certamente representará um bom lastro para trabalhos mais específicos com as unidades menores da língua, pois, com práticas de leitura-prazer e a mediação adequada dos fatos linguísticos contidos nos textos trabalhados, o estabelecimento de relações entre a oralidade e a escrita vão se consolidando com autonomia e abrangência.

A seguir, esperando contribuir para práticas que visem à formação inicial de leitores, sugiro diferentes encaminhamentos para atividades de leitura: possibilidades de trabalho com a escrita, o desenho e a oralidade, no início da escolarização; a atuação da família para a sensibilização da importância da leitura; o trabalho com texto literário em sala de aula; e, por fim, práticas imprescindíveis para a leiturização de crianças nas etapas finais do Ensino Fundamental.

a) NO INÍCIO DA ESCOLARIZAÇÃO

Para esse período, toda ação pedagógica relacionada à leitura e à escrita deverá ser planejada de forma que as habilidades de ouvir, falar, ler e escrever sejam tratadas com o mesmo nível de importância, para que, com o exercício dessas habilidades, algumas capacidades superiores do cérebro (a memória, a atenção voluntária e a inferência) sejam constantemente requisitadas e, consequentemente, ampliadas.

Assim sendo, cabe a quem dirige o processo de ensino perceber que a própria rotina diária propicia que sejam exercitadas de forma eficaz as reflexões sobre a relação entre os fatos vivenciados pelos alunos, a discussão dos mesmos e seu registro, por meio do desenho e da escrita.

No caso da Educação Infantil e das séries iniciais, esses registros escritos ficam a cargo do professor que, encaminhando diária e adequadamente a produção coletiva, possibilita a construção de conceitos básicos sobre os fatos linguísticos e a consolidação de alguns conteúdos de Língua Portuguesa, como: se escreve com apenas as 26 letras do alfabeto, se escreve da esquerda para a direita e de cima para baixo, tudo o que se fala ou se pensa pode ser escrito, etc.

É comum que se utilizem certas músicas para os momentos de alimentação ou higiene ou, ainda, que a classe tenha criado alguns códigos (representações) para a hora do silêncio, de ir ao banheiro ou de pedir a palavra para se posicionar perante alguma questão. São ótimas oportunidades se aproveitarem todos esses aspectos organizacionais significativos (pois foram criados pelo grupo) e, depois de discuti-los, registrá-los das duas formas (desenho e escrita), retomando-os para a leitura sempre que houver necessidade.

Também é possível solicitar que a própria turma dite para o professor escrever em um cartaz a música que eles mais cantam, a que está fazendo mais sucesso na mídia, o tema de algum desenho ou o filme a que eles tiveram acesso.

Tudo isso já vem sendo praticado e tem surtido bons resultados no que diz respeito à compreensão da organização da linguagem escrita, pois, através do registro de suas ideias/falas, as crianças vão percebendo a necessidade de espaço entre as palavras, a repetição das letras e seus sons quando combinadas de diferentes formas, a necessidade de outros sinais (acentuação e pontuação) no momento de escrever uma ideia.

Outra possibilidade de desenvolvimento das habilidades citadas no início deste item é a maneira de preparar a turma para a hora de ouvir histórias. É imprescindível que as crianças, no momento da leitura, sintam-se calmas e atentas para o que vai acontecer. Isso pode ser garantido mesmo em locais cujas condições não sejam aquelas divulgadas em revistas educacionais, onde aparecem tapetes macios e coloridos, tatames, almofadões, poltronas altas de veludo vermelho para o contador de história, etc. Basta que o professor retire os alunos do ambiente onde realizam as outras atividades de leitura e de escrita. Pode levá-los para fora ou para um canto da sala, sentados em círculo ou sobre as escadas, na sombra. O importante é que eles se preparem emocionalmente para viver emoções que terão como únicos meios de representação o falar, o ouvir e a imaginação de cada um.

Uma música, cantada em tom cada vez mais baixo, pode auxiliar a concentração, como a que sugiro a seguir.

É A HORA DA HISTÓRIA
(pode ser cantada com a melodia de Teresinha de Jesus)

Com sapatos de veludo,
neste espaço vou andar.
É a hora da história.
Nós gostamos de escutar.

Todos, todos sentadinhos,
numa roda, sem falar.
Ficaremos bem quietinhos
para a história começar.

Depois da leitura com timbre, entonação e ritmo adequados, é imprescindível que se abra espaço para que os ouvintes expressem suas emoções e verbalizem o que foi possível apreender do que foi lido. É nesse momento que efetiva a mediação de leitura em dois níveis: primeiramente os alunos trocam entre si e têm como parceiros mais experientes uns aos outros. Depois, com o encaminhamento dos comentários do professor, perguntando e elucidando, na medida do possível, o que não foi percebido ou limpando algum equívoco mais grave de entendimento, faz-se a segunda etapa da reflexão, em que a história passa a ser melhor apreendida e, muitas vezes, quando é necessário ser recontada para a alegria da turma.

Ao voltar para mesas e carteiras, é possível, então, preencher coletivamente o passaporte do leitor.

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Se a história causou muito impacto, nada mais divertido do que produzir, coletivamente, um grande bilhete (papel em metro) para outra turma, contando sobre o autor e sugerindo que eles também leiam a obra. O professor registra as ideias dos alunos e todos assinam da forma que souberem.

Em outros momentos, a leitura pode ser mais curta e dinâmica, feita de forma apontada, em coro e individualmente, mas sempre possibilitando a representação das respostas ou das ideias por meio de desenhos e da escrita.

COMPLETE AS QUADRINHAS COM AS RESPOSTAS DAS ADIVINHAS.

Ando bem devagarinho.
Sempre me escondo do sol.
A casa levo juntinho.
Eu me chamo ……………..

Faço shows, faço piadas.
Graça de montão, eu faço.
Vivo de cara pintada.
Dos circos, sou o …………………..

Tenho asas e não sou ave.
Tenho motor e não sou caminhão.
Voo alto, vou pra longe,
Eu me chamo ………………..

Dizem que tenho boa memória
e que não sou muito elegante.
Minha tromba é minha mão.
Eu me chamo…………………..

Ou ainda, depois de bem compreendidas e respondidas adequadamente as adivinhas abaixo, pode-se propor para a turma uma reescrita das mesmas, flexionando as pessoas verbais da seguinte maneira:

a) Agora que já sabemos as respostas das adivinhas, como elas deveriam ser escritas se a pergunta-título fosse QUEM SOMOS?

QUEM SOU?

Pelas ruas, vou e volto.
Nas avenidas, sempre a andar.
Muita gente levo e solto.
De ponto em ponto, estou a parar.

Sou feita de papel fino.
Tenho cabresto e rabo.
A meninada me empina,
mas quando chove, me acabo!

b) E estas, como ficariam se a pergunta-título fosse QUEM SÃO?

QUEM É?

Quem é aquela
que muito bem nos faz?
Molha toda a plantação,
mas não pode ser demais?

Sobe morro, desce morro,
sempre nos trilhos a andar.
Leva carga, leva gente
e está sempre a apitar.

b) FORA DA ESCOLA

“As crianças de hoje só querem saber de jogos eletrônicos!”

“A TV é a responsável pela falta de vontade do jovem de ler!”

“Meus filhos só leem se obrigados!”

Queixas como essas são recorrentes e de antemão é bom que se registre: são salutares, pois denotam a óbvia consciência de que ler é preciso. Grave é a situação de pais e educadores que nem ao menos se preocupam com tal aspecto ou, o que é pior, não julgam grave o fato de crianças e adolescentes não se interessarem pela leitura porque eles próprios não leem. Ou ainda, nem se darem conta de que há uma grande parcela da população brasileira que não reconhece na leitura fonte básica e imprescindível para a formação do ser humano.

Formar leitores é uma estratégia concreta de luta contra a barbárie! Ler é sinônimo de informação e formação. Não ler é codinome para alienação. Não ler é estar à mercê da voz de outrem. É tomar para si os valores que outros construíram. É reproduzir uma lógica social que poderia ser diferente se houvesse poder de análise mais profunda da realidade.

Mas qual a maneira mais adequada e prática de formar leitores em casa e na escola?

Como demonstrar para filhos e alunos a importância e o prazer da leitura?

A resposta poderia ser simples: lendo para eles, por eles e com eles. Todavia, afirmar isso pouco auxilia nessa batalha, pois, para ensinar, é preciso saber, ou seja, quem quer encantar e convencer precisa estar convencido.

A julgar pelas estatísticas (que demonstram que 39% de brasileiros não leem, segundo a Câmara Brasileira do Livro), aos que hoje cabe o papel de educar também são vítimas de privação cultural relativa à leitura. Assim, há que se pensar em estratégias que deem conta das duas pontas do processo. Em outras palavras: aqueles que deveriam ensinar a necessidade da leitura também não dominam tal conhecimento. Por isso, são indispensáveis mecanismos que garantam que os responsáveis pela formação do leitor mirim se formem, simultaneamente, enquanto atuam. Pois, como quer Duba (1978, p.122), “Trabalhar não é exclusivamente transformar um objeto ou uma situação numa outra coisa, é também transformar a si mesmo no e pelo trabalho”.

É necessário que se clarifique que ensinar o prazer da leitura, como ensinar qualquer outro conhecimento humano, passa necessariamente pela relação de afeto entre “ensinantes e aprendentes”. Dessa forma, é na relação do dia a dia que se desenvolve o gosto de ler, e isso aperta cada vez mais os laços familiares e consolida valores tão almejados na educação atual.
Sandra Bozza é socióloga, cientista da Educação e linguista e especialista em Letramento.

 

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