Edição 110

Professor Construir

Fraternidade e vida: dom e compromisso

Nildo Lage

Em tempos de mutações de valores humanos, familiares e sociais; desmoronamentos de edifícios, que soterram famílias inteiras; rompimentos de barragens, que devastam cidades, que ficam como Sodoma e Gomorra… Em tempos de devastação de reservas ambientais, poluição de rios e mares… Impeliu-se o planeta a redirecionar o olhar, focar no novo e içar a velocidade para acompanhar as pegadas do progresso e acatar as aspirações de uma humanidade que não consegue se mover em off… Tem que estar online, interligada ao mundo e, por se conservar acoplada às parafernálias das coisas conectadas, não volve os olhos para analisar os extermínios incitados pelos avanços.

Fraternidade? Para quê? Não sou Papai Noel para difundir abraços, arremessar presentes pelas chaminés! Vida? Quem quer vegetar? Alguns momentos de zoação, celebridade e… fui! Dom? Isso sim, o dom de querer acumular cada vez mais riqueza!… Compromisso? Também, com as aspirações do conveniente eu

22O fato é que a deficiência de Fraternidade para reconhecer a Vida como dádiva divina por meio do Dom de amar o próximo e do Compromisso com a vida no ambiente familiar despertou a impassibilidade, e esta ordena que viver é romper barreiras, desrespeitar limites. E, quando rompemos o limite do outro, arrombamos as argileiras que ostentam o frágil fio da esperança. Com o corte dessa linha, sonhos se despedaçam, sentimentos desabam no vazio e vidas são imoladas para que outras alardeiem para agradar um amor-próprio sôfrego.

O individual nunca foi tão extraordinário como na contemporaneidade. Alastrou-se de tal modo que se converteu em regra imposta por um eu que se blinda para não se sensibilizar ante o problema, a dor, a vida do outro. Outro? Ah! O outro! Havia olvidado! O outro?!? Apenas um fulano sentado à beira do caminho com a mão estendida! O que eu tenho a ver com a sua vida ruim? Nada! Desconheço-o como irmão, como próximo… Como cidadão!

É admirável como a queda do outro proporciona tamanho prazer àqueles que o rodeiam. Esse instante de amadorismo proporcionado pela dor do próximo impacta no íntimo como um tranquilizante. “Finalmente chegou a sua hora, a sua vez de se estertorar sob os meus pés!”

O afã é de uma proporção que a maioria prefere pagar o preço para ter o mundo, pessoas sob os pés. Fama, poder, status… e se conservar imerso num oceano de infelicidade por não abrir mão da altivez de ser hiper. Ser hiper para não remover os obstáculos da trajetória, por acreditar que retém forças — físicas e monetárias — para manusear ferramentas que os destruam, mesmo que para isso tenha que investir, perder tempo para deixar o caminho desobstruído, caso tenha que regressar para contemplar a queda de mais um.

Assim, para que perder tempo questionando: “Quanto vale uma vida, exclusivamente se essa vida for um empecilho aos meus propósitos?”, “Se não fixar no meu umbigo, quem se preocupará comigo?”, “Quem conseguirá conter a banalização da vida?”, “O feminicídio se tornou rotina, a violência urbana e doméstica se converteu em desafios à sobrevivência… o que pode ser feito além de sentar e esperar o fim?”? Só cego não vê a degradação do gênero humano consumir o que ainda resta de caráter, personalidade, amor e fé!

Todavia, vida, esse mimoso sopro preso ao inexistente, por mais que seja sofrido, infeliz, é o perfeito “dom” de Deus que habita em nós. Banalizá-lo a ponto de arremessá-lo como restolho é permitir que a maior ambição do humano — a felicidade — esvaneça por deficiência de amor, pois essa perda é o reflexo da renúncia do que há de mais valioso em nós — o amor-próprio. E, quando não nos amamos, dificilmente amaremos o outro. Quando não nos amamos, é difícil respeitar o eu do outro… E, quando desistimos de amar, perdemos a idoneidade para contabilizar o valor da própria vida humana.

Sempre foi assim. Assim, desde a criação do Homem. Eva se incumbiu do primeiro crime atraindo o pecado ao Éden, sentenciando o Homem a morrer. Caim pôs em prática a lei da iniquidade, trucidando o irmão Abel… Desde então, o Homem passou a migrar, convertendo-se num incansável caçador de dotes para justificar a existência da trajetória nascer-crescer-envelhecer-morrer… Só que progrediu em direção ao desconhecido sem refletir no tempo. Não refletiu no tempo do outro, no tempo da vida… No tempo de Deus… E, de tal modo, investiu… Simplesmente, investiu… E, por nada, desviou do foco. O alvo é consecutivamente ir além, mesmo que esse além o aloque no ponto de partida.

De tão audacioso para saciar a sede de ser hiper, o Homem geriu a vida pelas trilhas de um desenvolvimento que pulveriza, decompõe… A pertinácia foi tamanha que se abeirou do produto cobiçado: converter a vida em mercadoria. A cotação subiu de tal maneira que a mercadorização foi imprescindível para atender às novas demandas de um mercado de “coisas” que respiram, pensam, falam… Às vezes, refletem… Todavia, não elucubram nas implicações do próprio agir.

Para atender a esse mercado, atravessadores e mercenários remercantilizam vidas que são rematadas para a prostituição, o trabalho escravo, exportadas ou ceifadas por uma bala perdida, numa discussão banal no trânsito… Nos desentendimentos entre esposo e esposa, pais e filhos… Por quê? A resposta está encravada na tabuleta: o dom de amar foi arrebatado, e a essência humana exalou do humano. Assim, o compromisso de amar o próximo como a si mesmo perdeu a validade, deixou de ser o mandamento maior, pois impera o personalismo, cujas flamas consomem emoções, expelindo, pela mesma chaminé, amor, valores familiares, denodos religiosos, sociais… A própria liberdade do outro para decidir entre viver, ser feliz ou chegar ao fim da vida tentando construir o seu espaço ao sol.

Uma simples análise, o saldo: a banalização da vida chegou ao extremo de a violência granjear grandeza; ser alvo é um momento inevitável. Basta um passo em direção ao outro — em casa ou nas ruas — que latrocínio, homicídio, feminicídio agem como colhedeiras que arremessam, no celeiro “pó”, crianças, jovens, adultos, idosos… Delineando em curvas sinuosas as Escrituras que descrevem a trajetória do Homem: “Porque você é pó e ao pó voltará”. Todavia, tem que ser pela autodestruição ou assolado pelo próximo?

O surreal é que não aprendemos com os desacertos, as atribulações, os próprios fracassos, tampouco refletimos antes de posicionarmos o próximo num horizonte que para nós é infernal. Sem pensar em efeitos, arremessamos o semelhante ao abismo e, no instante seguinte, corremos para praticar um ato de caridade, como se essa ação fosse um corretivo que suprimisse o fluxo de atrocidades… Os nossos governantes adotam essa teoria como cartilha, pois roubam a educação, extorquem a saúde, desfalcam o social, engessam a segurança e apresentam um plano que inunda os olhos do cidadão para atenuar, dissolver o descontentamento… E o mais surpreendente: permitimo-nos ser usados como tapete — pois os elegemos eleição após eleição — e ser expostos à bestialidade, como ovelhas que são impelidas a invadir o território dos lobos para caçá-los.

“permitimo-nos ser usados como tapete — pois os elegemos eleição após eleição — e ser expostos à bestialidade, como ovelhas que são impelidas a invadir o território dos lobos para caçá-los.”

Quanto vale uma vida humana?

 

No campo de batalha cognominado família, a vida abrolha e esvaece como personagens em jogos eletrônicos, e o maior desafio é resgatar a vida por meio do adicionamento do dom de respeitar, amar, perdoar, construir o próprio universo sem ruir o mundo do outro.

23O lance é que o contrapeso que equilibra a vida — o amor — evanesceu. O coração perdeu o contato com a mente por esta se encontrar aprisionada nos emaranhados das tramas tecidas por um eu que não tem apreço a nada além dos próprios interesses. O maior questionamento ecoa a cada tirocínio: “quanto vale uma vida humana?”.

O eco retrocede prenunciando que a resposta, ou melhor, a suavização do clima, está no descarrilamento do trem da violência para, assim, enfraquecer o vilão que ameaça a própria existência. Do contrário, não edificaremos uma sociedade coesa. Pois a infestação é tamanha que a fraternidade disputa, na arena do querer e do existir, espaço para defender a vida, incapaz de agenciar a cultura da paz, e temos ciência de que, sem a paz, vidas prosseguirão assolando vidas, negociando vidas, traficando vidas, expatriando a própria vida, cujo balcão desponta a cada clique: #comercializovidas!

Os cifrões estão agregados à demanda, e o mercado de transação de vidas, de tão atrativo, tem agentes espargidos estrategicamente para fisgar a cada canto: narcotráfico que alicia jovens, crianças… Vidas que se atrofiam sob o poder das drogas, para, no instante seguinte, serem aniquiladas e lançadas como lixo.

Como o merchandising não pode ser descontinuado, a mercantilização dilatou suas atividades apresentando a exportação de vidas para a exploração sexual. A aceitação da mercadoria no mercado negro foi tão alta que energizou a prática da escravidão contemporânea e um ramo promissor que se alastra pelo planeta, inflacionando a cotação da vida no mercado sombrio: o islamismo. Os novos agentes convencionam vidas, cuja competência estabelecida é permitir se autodestruir ou devastar o próximo, impelido pela promessa de paraíso.

Nesse universo de explosões, decapitações, sequestros, execuções coletivas, ninguém perde tempo para examinar a etiqueta, averiguar se o descrito no código de barras é o preço justo. Esse é o valor…. Encara? Os etiquetados não pensam duas vezes, tampouco refletem se o preço cobrado pela vida vale tamanho sacrifício ou se é necessário ultrapassar tudo e todos para contemplar o fim do outro, impelido por uma religião abraâmica monoteísta pronunciada pelo Alcorão, que descarta os membros de outras religiões como resquícios da raça humana.

Se ousarmos prosseguir para apreciar as indústrias que ceifam vidas como matérias-primas, opções despontam a cada passo, como acidentes no trabalho, que extinguem milhares por ano, e acidentes de trânsito, que matam mais do que as guerras.

Como veem… Não temos como fugir do laser dos leitores de código de barras. O negócio é da China, e as transações movimentam bilhões. Todavia, é imprescindível refreá-lo em nome da própria vida. Se não restringirmos a velocidade, no hipermercado do futuro vidas prosseguirão sendo comercializadas por bagatelas, ampliando a distância dos propósitos das Escrituras: “Viu, sentiu compaixão e cuidou”. Pois olhar para o próximo, compadecer, estender a mão, amparar, cuidar é se curvar a ponto de se humilhar… “Sou melhor, muito superior… Não içarei entraves que podem ocasionar perdas para o meu negócio.”

Afinal, a mercantilização da vida acende lucros exorbitantes, exclusivamente por imperar a superficialidade e o pragmatismo no seio de uma sociedade gerida pelo excesso e administrada por um individualismo que estabelece que ser hiper é pensar unicamente em si mesmo. Olhar para o próximo, cuidar do próximo, isso restringe espaço para crescer. Assim, não se pode ter compaixão, pois esse sentimento — mesmo nobre — impede muitos de chegarem ao ponto almejado.

Quem ousa pegar a lupa para desvendar onde é o ninho do vilão?

 

a cova das parafernálias tecnológicas, o futuro que desfecha os seus raios cintilantes como luz ao fim do túnel é um covarde, pois não exibe a cara. Não ousa, por ser nada além do aprimoramento de um passado, cujas ferramentas evolucionaram, granjearam modernidade, e foi exatamente ela — a modernidade — que dilatou os olhos da humanidade para vislumbrar, nas transações obscuras, fontes inesgotáveis de ganhos.

Temos que admitir que esse futuro proporcionou bem-estar, aliou-se à ciência, que saltou adiante e prenunciou uma modernidade que pode tudo — inclusive curar os males do passado — e que é cada vez mais avançada tecnologicamente. As veredas do planeta foram se dilatando para transitarem as inovações, e, como ir adiante é meta, tais ferramentas ceifam, dia após dia, reminiscência e fé.

Tais absorções salientam que o céu não é mais o limite. Aonde eu quero chegar é o ponto de partida, não importa a altitude, a profundidade, o planeta… Nessa transição — entre a cobiça de partir, o permanecer e o regressar —, o próximo pode ser ponte e, no capítulo seguinte, tapete… Ou, simplesmente, nada… A geração da globalização liberal e da pós-tecnologia genética se autorrotulou como liberta: “Não me segura, pois não sou de ninguém!”. #SouHIPER — hiperterrorismo, hiperpotência, hipercapitalismo, hipersocialismo, hiper-radicalismo, hipermercado, hiperindividualismo… E o mais extraordinário: hipermoderno, hiperfrio, hiperesperto… hiper-rico… Como sou hipertudo, asseguro com veemência que ninguém é dono de si, pois todos têm um preço, e, se você é meu objeto de desejo, eu pago o preço para satisfazer meus caprichos… Pois a geração #hiperpodetudo permite a cada um se autoprojetar até o ponto em que ambiciona ser, estar, comprar o outro, inclusive como hiperpotência hipersuperlativa.

Exagero? Claro que não! Se meu eu permite ser o que quero, faço o que quero — inclusive com o outro. Não é excesso, é liberdade… Liberdade para expressar, liberdade para sentir, liberdade para ter, liberdade para fazer… Liberdade para viver e, por que não?, liberdade para comprar, dominar, matar. Esta vida é minha… Comprei e peguei!

Compungir-se? Jamais! O orgulho é meu advogado fiel. E, mesmo se a pusilanimidade açoitar o íntimo no intuito de provocar desequilíbrio, amordaço-a e trancafio-a no presídio de segurança máxima denominado ego. Golpeio a mim mesmo, devasto o próximo, mas o meu ego é intocável.

Dom e compromisso sobrepujados pelo hiper

No hiper(mercado) do mundo, dom e compromisso são arremessados para o entulho, como mercadorias vencidas, cuja legitimidade não permite permanecer. Não permite por não atender a uma prole que estabelece a deficiência de amor para superar o outro. Tão somente aspiração para acionar o dispositivo e devastar escrúpulos, valores… Pois, na era das transações eletrônicas, a vida humana perde o dom de respeitar o eu, o outro; na era das transações eletrônicas, compromisso e honestidade restringem os ganhos; na era das transações eletrônicas, cada ser tem o seu peso, sua medida e seu valor estampado numa etiqueta, cuja leitura ótica é lida a cada ponto de pedágio… Ostentar-se de pé ou cair está atrelado à concorrência da zona em que transita.

Na zona brasileira, por exemplo, o aquecimento do mercado de vidas inflacionou o produto. Tanto que há vidas se expondo em vitrines, nas calçadas, pelas veredas de uma sociedade vítima da decomposição de seus princípios… Na “Bolsa de Valores” do Congresso Nacional, a influência para aprovar ou reprovar estabelece alta ou baixa. A lista de benefícios é extensa: mensalinho, mensalão, ministério, presidência de estatal, secretaria…

O desenvolvimento é tamanho que o governo foi impelido a criar políticas monetárias, desenvolver cifras para encher os olhos dos tabelados que anunciam sarcasticamente que estão à venda… O preço? É leilão… Quem pagar mais!

Tais transações movimentam milhões, bilhões… E, em casos atípicos, a própria vida, numa queima de arquivo. Quem não desejar oscilar ou perder ações não precisa, necessariamente, ter uma agência reguladora, pois a equação é resolvida num cálculo simples: cem para mim, um para tu, mil para mim, uma migalha para eles e, assim, a contabilidade fecha na exatidão do interesse, da necessidade e, até mesmo, na urgência de levantar um valor para comprar ou assolar uma vida considerada pelos mercadores como competidora.

Fraternidade e vida: dom e compromisso…Onde? Quando?

Cada vez mais, o aborto — de tão banal — se tornou procedimento corriqueiro nas chamadas gravidezes indesejadas. É surpreendente como as preliminares do princípio da vida humana é um procedimento tão prazeroso, como o deleite é um instante que nunca se contemporiza. A concepção, em muitos casos, converte-se num entrave para uns, em pesadelo para outros; e, na ânsia de se livrar de um “problema”, não se reflete no fim de uma vida que se inicia.

E, como se arrebata um sapato que provoca desconforto, um aborto sobrevém. Sobrevém sem remorsos, inclusive escoltado pela apologia: “É melhor morrer antes de experimentar a vida que padecer no mundo!”. É exatamente assim que princípios e o próprio direito à vida se agregam à vontade daqueles que acreditam que, para viver a própria vida, é preciso interromper outras ainda em formação.

Vidas que são ceifadas pela deficiência de amor, pela inexistência de escrúpulos daqueles que deveriam ostentá-la, protegê-las e ensinar-lhes o caminho em que devem trilhar — os pais. Pois o aborto, esse processo cruel e desumano, é uma via dolorosa para descartar vidas que são concebidas pela geração do prazer e que se converteu em fonte de renda para muitos que se especializaram no artifício de descontinuar vidas.

De tal forma, dom e compromisso transitam pelos labirintos de famílias que seguem na contramão dos princípios bíblicos, é sem o mínimo de compunção dos que se permitem o aborto num dissimulado “Não!”, a exemplo da descriminalização do aborto de anencéfalos.

É repugnante. Vidas que geram vidas ceifam a existência de outras vidas… O processo é consequência do aniquilamento do sentimento maior: o amor; e, excepcionalmente, quando não se amam, não se protegem, não se respeitam, não se preservam vidas que são crucificadas ainda no ventre. Porque assim decretam os Pilatos da contemporaneidade: arranca, arremessa no lixo, pois seu existir pode ser um empecilho para outras vidas — as reprodutoras.

É surpreendente como o amor foi asfixiado pela frieza, insensibilidade, descriminação no próprio universo de famílias consideradas tradicionais, que trucidam e interrompem a formação da vida.

O afã de ser um explorador de pessoas para satisfazer os praz25eres da carne é de uma grandeza que a rejeição é inevitável. Rejeitar a vida gerada em si mesma. Essa rejeição atingiu um nível tão assustador que a vida que concebemos é sugada brutalmente e arremessada num monturo como rejeito, cumprindo-se a Palavra encontrada em Mateus 24:12: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos”.

Se o dom de amar, perdoar, respeitar… Se o compromisso com a vida e a fraternidade não for reimplantado e cultivado no seio familiar, não reconheceremos o outro como semelhante. Pois a plataforma que configura o indivíduo — a família, não encontrou, no baú-lar, os ingredientes do amor, carinho, perdão… Respeito… E, como as relações estão cada vez mais frígidas desde o berço, a apatia vem se tornando convite para o afastamento entre irmãos, pais e filhos, a ponto de se tornarem banais o abandono de incapazes e filhos que ignoram pais como genitores.

Se ambicionarmos uma guinada, é indispensável uma força-tarefa para resgatar amor, perdão, fraternidade… Pois sabemos que viver vai além do nascer, crescer, existir — com ou sem idealismo. Muitas vezes, é preciso eliminar um leão a cada passo. Todavia, podemos romper esses desafios e viver. Viver uma vida sem tantas complicações. Viver uma vida de paz com o outro, com nós mesmos… E aprender com os erros, com os desacertos, com os desafios superados. Aprender que crescer estabelece saberes intrínsecos ao fortalecimento do eu. Aprender que o respeito à vida — do outro — se inicia com o despertar do amor pelo outro. Amar o outro como a nós mesmos é o primeiro preceito para a construção da plataforma em que assenta a paz, o viver em fraternidade, e para facilitar o aprender maior: aprender que um troféu conquistado, muitas vezes, não nos posiciona como melhores, nem na linha de chegada, todavia postos na largada para enfrentarmos novos duelos.

A desordem é um convite para refletirmos sobre o proveito do útil e do inútil. Quem ousar buscar retornos tem, de antemão, que varrer o ele para ruir as próprias barreiras e questionar: “O que é inútil para a minha vida e não devo descartar?”, “O que é útil e não tomo posse para me fazer crescer como humano, como profissional?”. Essa cadência de “o quê” é o “Q” que conclui, preenche as reticências… E, por ser de extremo proveito, não abro mão… De tão útil, o próximo se converte em nada… Entretanto, se acionarmos a mola mestra que impulsiona os prudentes numa trajetória sem tropeços — a sabedoria —, visualizaremos esse nada num ponto inatingível, e essa distância certifica que o nosso eu, de tão nada, é inútil para ele.

Assim, o princípio de útil ou inútil parte do valor que isso ou aquilo tem para cada um… Por que que valorizamos o inútil a ponto de declararmos guerra contra o outro, vasculharmos o mundo à sua procura, tão somente para satisfazer o ego?

É certo que a valorização contrabalanceia as necessidades do eu, e esse eu é um ser — e não um altere naufragado em cada um de nós — que pode definir um gesto banal como útil e uma ação majestosa como inútil… De tão inútil, se reproduzida, pode se transformar em atitudes que irritam.

Assim, o inútil para o eu pode ser o sonho de consumo do outro… Pois, assim como a vida é vivida com intensidade pela grande maioria, há os que creem que viver é um marasmo, uma inutilidade, e se autodestroem para assolar o que tinham de inútil — a vida… Esses olhares bifurcados convergem para vários pontos de questionamento… Contudo, um redireciona todos os olhares… Nasci humano… todavia, o que me faz feliz?

cubos