Edição 91

Gestão Escolar

Gestão escolar: atuação e possibilidades de democratização

Liliane Martins Nunes da Silva

Historicamente falando, o gestor carrega um estigma de controle, de inspeção e seletividade arraigados pelo poder tácito que trazem na sua função intrínseca de poder, a qual, por si só, já reprime e cala.

Repensar essas práticas no contexto educacional se fez imprescindível para lançar um novo olhar nas práticas exercidas no interior das escolas. Visto que cada uma dessas ações e suas ressignificações são essenciais para uma educação de qualidade, efetivamente formativa.

Percebemos, ao longo do estudo, que a ação do gestor escolar e seu significado sofreram alterações com o tempo e com as necessidades exigidas pelas especificidades educativas, permanecendo, durante muito tempo, circunscrita a ações estruturais, técnicas e meramente burocráticas.

Dentro dessa concepção, surgiram novos paradigmas que levaram à ação do gestor público uma práxis mais significativa, uma liderança e coordenação coletiva, uma participação mais conjunta com o corpo escolar para tomadas de decisões sobre os aspectos significativos da prática educativa, bem como sua execução construtiva, consciente e organizacional.

Torna-se essencial conceber esse ato como uma construção social, englobando todos os sentidos e valores que o termo carrega, sejam eles políticos, filosóficos ou éticos. O que, no entanto, não quer dizer que possamos deixar de lado os aspectos formais, que dão consistência e promovem a eficácia e qualidade, indicadores fundamentais do desenvolvimento. Luck (2006, p. 41) pontua que ”A gestão democrática ocorre à medida que as práticas escolares sejam orientadas por filosofias, valores, princípios e ideias consistentes, presentes na mente e no coração das pessoas, determinando o seu modo de ser e de fazer”.

21É nesse viés que se deve constituir a prática de uma gestão democrática, passando a desafiar a cada dia uma prática coletiva, pois, para que exista educação, é preciso que haja construção e participação. E somente uma gestão democrática é capaz de promover o sujeito histórico, crítico e criativo. Efetivando, assim, uma sociedade democrática, capaz de dinamizar a construção da autonomia.

O desenvolvimento do indivíduo deve ser olhado de modo prospectivo, acreditando e intervindo sempre sobre ele e para ele. Apontando para a importância do percurso, e não somente para aquilo que está pronto.

Ainda de acordo com esses pressupostos, pensar este assunto é pensar a realidade e ver como os fatos se dão no mundo e chegam até o nosso entendimento.

Sendo assim, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais planetários tornam-se os problemas, mais impensáveis eles se tornam (MORIN, 2004, p.14-15).

Podemos relacionar a citação de Morin com a competência de se obter um pensamento crítico, que é um tema profundo e complexo, devido à sua relação intrínseca com a formação de homem consciente e com a escola — que vem se atrofiando e minimizando as possibilidades de pensar e refletir, por sua vez, a prática de se trabalhar para pensar, o que assegura cada vez mais a legitimação da hierarquia de poder da esfera dominante.

É nessa perspectiva e nesse contexto que o papel do gestor educacional tem sido posto em questão, por isso precisamos analisar seu papel político-social e relacioná-lo com mais duas dimensões fundamentais: humanas e técnicas, e tudo mais que elas implicam, articulando de maneira crítica e fortificando, assim, uma percepção global que nos permita repensar os estigmas que criamos e carregamos ao longo da nossa existência e as vivências com que em dado momento nos deparamos desse profissional. Vale também questionar nossas certezas e duvidar de nossas próprias dúvidas, para começarmos uma existência destituída de preconceitos, estigmas, fracassos e exclusões.

Este artigo tem como meta fazer uma reflexão das práticas educativas e da sua visão de mundo, que estão baseadas para poder perceber que tipo de “leitura de mundo” se pretende que os sujeitos façam.

Tornando essa questão mais propedêutica, é importante estarmos cientes de que tipos de sujeito se quer formar: meros reprodutores, seres alienados, ou formar cidadãos em sua plenitude, em prol de uma sociedade mais justa e democrática?

Somos seres heterogêneos e nos distinguimos uns dos outros nas nossas diferenças, no nosso modo de agir, pensar e intervir na realidade, construindo e reconstruindo respostas e lógicas de acordo com o que nos convier e com o que os nossos pensamentos prévios e ideológicos nos conduzirem.

É diante do discurso e da prática de liderança exercidos pela gestão escolar que podemos perceber o quanto ainda temos que percorrer para alcançar substancialmente práticas democráticas.

Não podemos assumir uma postura dupla: a de emancipação do sujeito e a de compensação, compensando de modo superficial as faltas que anos de práticas educativas nos proporcionaram. Ou se projeta pelo indivíduo ou para o indivíduo.

É imprescindível que haja uma coerência lógica do nosso pensamento e da nossa forma de agir, exigindo um trabalho profundo na zona invisível dos paradigmas. Toda relação transformadora deve levar isso em consideração. A implicação de uma lógica ocasiona a negação de outras, a lógica da emancipação inibe a da submissão, atribuindo e validando a lógica que se elege.

É imprescindível que haja uma coerência lógica do nosso pensamento e da nossa forma de agir, exigindo um trabalho profundo na zona invisível dos paradigmas

Portanto, o paradigma efetua a seleção e a determinação da conceptualização e das operações lógicas. Designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles (MORIN, 2005, p. 25).

A verdadeira dimensão ética está no âmbito de se estabelecer uma relação coerente entre o que se pensa, o que se diz e o que se faz; entre os objetivos propostos e as verdadeiras finalidades estabelecidas para se alcançar substancialmente seus pressupostos.

22O que nos cabe aqui é ressaltar a prática democrática como elo de formação e mudança.

Pois como pontua Ferreira (2000, p. 170): “O ideal democrático supõe cidadãos atentos à evolução da coisa pública, informados dos acontecimentos políticos, dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas alternativas apresentadas pelas forças e fortemente interessados em formas diretas ou indiretas de participação”.

O que se espera é que essas reflexões auxiliem a “plantar uma semente”, ou seja, que fique ao menos dentro de nós a dúvida, o questionamento de um fazer democrático nas escolas, pois, diante de tantos fazeres alienantes e alienados, algumas pessoas podem acreditar que uma nova prática e postura sejam utopia e impossível de se realizarem.

Para estes, torna-se preciso lembrar que:

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, interligam-se, interferindo na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. […] No mundo da história da política, constato não para me adaptar, mas para mudar […] Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela (FREIRE, 1996: p. 85-86).

Liliane Martins Nunes da Silva é autora, com Josele Teixeira, dos livros Avaliação escolar: da teoria à prática e Alfabetização – compartilhando teorias e práticas (Wak). Pedagoga, especialista em Administração e Supervisão Escolar. Supervisora do projeto Escolas em Foco, que atua na melhoria do desempenho de 400 escolas do município do Rio de Janeiro.

Referências

FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Gestão democrática da educação para uma formação humana: conceitos e possibilidades. Brasilia: Liber, 2000.

FERREIRA, Naura Syria Carapeto (Org.). Políticas públicas e gestão da educação – polêmicas, fundamentos e análises. Brasília: Liber, 2006.

FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saber necessário à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo: Artmed, 2000.

GIANCATARINO, Roberto. Supervisão escolar e gestão democrática: um elo para o sucesso escolar. Rio de Janeiro: Wak, 2010.

LIBÂNIO, José Carlos. Democratização da escola pública. São Paulo: Loyola, 2003.

LUCK, Heloisa. Concepções e processos democráticos de gestão educacional. Petrópolis: Vozes, 2006.

MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita – repensar a reforma/reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

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