Edição 99

Lendo e aprendendo

Internauta compulsivo

Alfredo J. Gonçalves

10Conhecemos bem o internauta compulsivo. Navega todo o tempo e em todo lugar: no ônibus, no metrô, nas ruas, na padaria, numa reunião, no restaurante, no supermercado… Não é difícil tropeçar nele, aparentemente falando sozinho pela calçada. Também não é difícil encontrá-lo atravessando o farol na faixa de pedestres com o celular colado no ouvido. Se convidado para um jantar, pode substituir a companhia dos comensais pelo rumor mecânico do WhatsApp. Até mesmo na igreja é incapaz de se desconectar. O pequeno aparelho e a chegada de uma mensagem “inesperada” o tornam, a um só tempo, atento e evasivo.

A conexão compulsiva, porém, comporta riscos. O primeiro deles recai sobre as relações com outras pessoas, sejam tais relações virtuais ou presenciais e em distintos graus de intimidade. Uma vez que se mantém o tempo todo conectado, sua presença ou suas palavras perdem o caráter de novidade. Não se dá conta de que a novidade é o segredo de uma boa amizade, de um bom namoro, de um matrimônio, de uma saudável vida em comum.

Quando o contato adquire uma natureza ininterrupta, desgasta-se por si mesmo. Um corte breve ou até mesmo prolongado na relação só faz aumentar a vontade, a novidade, o fascínio e o sabor do reencontro. Muitas vezes o tempero do encontro cresce com a expectativa em torno dele. Se não há espaço para a privacidade de cada polo da relação, tampouco haverá coisas novas a descobrir e a intercambiar. Os laços interpessoais ou intercomunitários entram, então, numa rotina invasiva, nociva e corrosiva.

Escravo da telinha

Quando a pessoa não tem espaço e tempo para respirar e destilar suas experiências e emoções, seus sentimentos e pensamentos, tende a se tornar pesada, repetitiva e até supérflua. A tarefa de construir a própria individualidade anda pari passu com a construção de qualquer tipo de relação. Uma depende e se nutre da outra. Ou seja, à medida que o indivíduo aprofunda o conhecimento sobre seu próprio ser, alarga o espaço de sua tenda para a acolhida de outros viajantes. E estes, por sua vez, expandem, com novos conhecimentos, novos costumes e novos valores, a interioridade do primeiro. Ambas — a individualidade e a relação — interagem: interpelam-se e se enriquecem reciprocamente. Resulta que, se uma pessoa se esquece de reservar tempo para si mesmo, nada de novo terá a dizer. Não haverá verdadeiro reencontro, mas uma conexão ininterrupta e asfixiante. Manter-se sempre conectado é uma forma de banalizar o encontro e a comunicação interpessoal. Quando tudo ou qualquer ninharia se converte em notícia “urgente e necessária”, não há mais o que noticiar. Em outras palavras, quando o “inesperado” se transforma em algo perfeitamente “esperado”, não há mais novidade.

Quem sabe quantos rompimentos ocorrem justamente pela obsessão de manter uma conexão “24 horas por dia”? Repete-se aqui o mesmo que na amizade ou no namoro possessivos. Se quiser conquistar uma pessoa, deixe-a livre para escolher; se quiser perdê-la, basta mantê-la prisioneira. Além de escravo da telinha, o internauta corre o perigo de ser escravo de outro internauta ou de uma determinada rede social.

Se quiser conquistar uma pessoa, deixe-a livre para escolher; se quiser perdê-la, basta mantê-la prisioneira.

Sem um real encontro

Outros riscos derivados são a perda do encontro consigo mesmo e com o transcendente. A compulsividade da conexão toma todos os minutos e todos os passos. Outras portas se mantêm fechadas. Não há mais “espelho” para o silêncio e o confronto, para a pergunta e as dúvidas, para a inquietude e a interpelação. A Internet virou uma espécie de latifúndio que tudo abarca e tudo submete, na maioria das vezes com escassa produtividade. E o telefone celular, uma espécie de controle remoto que, em vão, tenta acompanhar, a distância, a vida dos “amigos” e os “acontecimentos”, como se fossem marionetes. O problema é que, na tentativa de acompanhá-los no cotidiano e a partir do exterior — compulsivamente —, não deixa lugar para um real encontro: consigo mesmo, com o outro e com o totalmente Outro.

O internauta navega, a essa altura, nas ondas aparentes e visíveis dos fatos, das pessoas e da sagrada existência humana. Navega de forma tão obsessiva e ininterrupta que perde a oportunidade de um encontro mais profundo com a própria experiência de vida, a própria vocação e a meta a ser alcançada. Numa palavra, perde o sentido último da vida.

Como reencontrá-lo? Evidentemente não há necessidade de renunciar à Internet ou ao celular. O importante é se dar conta daquilo que verdadeiramente são: instrumentos de comunicação. Em vez de serem submetidos a uma manipulação compulsiva, tais instrumentos podem ser usados para uma reaproximação das pessoas concretas, com nome, rosto e história. Nada substitui a relação eu-tu, olho no olho, cara a cara! O desafio é se deixar interpelar e confrontar pelo relacionamento mútuo — na verdade, o diálogo — e, com isso, se abrir ao crescimento. Na era da revolução das comunicações, corremos o sério risco de nos isolar. Resta o empenho para superar o isolamento, em busca de uma comunicação em que minha identidade se forja diante do outro, especialmente do totalmente Outro.

Alfredo J. Gonçalves, cs Sacerdote da Congregação dos Missionários de São Carlos, Scalabrinianos, formado em Filosofia e Teologia. Atualmente, em Roma (Itália), exerce o cargo de vigário-geral da congregação.

Extraído de: Revista Diálogo, Religião e Cultura. São Paulo: Paulinas, outubro/dezembro 2017. Ano XXII – N°88.

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