Edição 09
Matérias Especiais
Loucos por gente
Nós, professores, temos um grande vício: somos apaixonados e todo apaixonado é meio insano, faz alguma coisa que nem sempre devia, se dedica mais do que pode, às vezes, esquece de si mesmo, ou, então, não se lembra de que nós exercemos uma profissão, que precisamos receber nosso salário de forma adequada, que nós temos de lutar na estrutura sindical e organizar nossas reivindicações no público e no privado. Às vezes, até disso a gente esquece. Não deveria, mas esquece, porque somos apaixonados.
Todo professor íntegro leciona por paixão. Paixão pelo quê? Por ganhar pouco, correr o dia inteiro, ficar para lá e para cá? Não, claro que não. Temos paixão por aquela idéia de que gente foi feita para ser feliz. Como diria Shakespeare, “paixão é uma coisa cheia de som e fúria”. Nós somos furiosos, brigamos muito.
Imagine uma reunião de professores no final do ano: um colega quase pula no pescoço do outro por causa de um aluno. Nós fazemos barulho e somos tão ruidosos porque somos apaixonados. Aliás, professor adora se encontrar, adora reunião – se for paga, então, a gente gosta mais ainda. Reunião de professor dura, mais ou menos, uma hora e meia, sempre dividida da seguinte maneira: na primeira meia hora a gente fica, às vezes, falando mal de quem não veio, dizendo: “Nós estamos aqui, é um absurdo!”; na segunda meia hora a gente fica falando bem de quem veio: “Mas nós viemos, nós vamos levar isso à luta porque isso é importante.”; e na terceira meia hora a gente fica tentando conseguir horário para marcar outra reunião. E acontece tudo de novo.
Professor adora o período de férias, quando os alunos desaparecem da escola. Ele agüenta um dia, dois, de repente, começa a sentir falta. A escola fica triste e em silêncio, não tem aquele barulho. Tem professor que fica louco para as aulas começarem e, quando elas começam, depois de uma semana, ele não agüenta mais, quer que tudo pare. É mais ou menos como a mãe que diz para os filhos: “Eu não agüento vocês!”, “Eu vou me matar!”, “Um dia eu vou sumir e vocês vão ver!”.
A gente também fala demais. Mas temos uma coisa inacreditável, que é uma amorosidade muito grande. Só isso explica porque uma pessoa dá aula por 20, 30 anos, se aposenta e depois volta a lecionar. Por que tem professores que não agüentam ficar fora de uma sala de aula? Ora, não tem gente que é louca por pizza? Então, também existe quem seja louco por gente. Que, em vez de cuidar só da própria vida, resolve ajudar outras vidas também.
Essa característica não é exclusiva dos professores, claro! Isso tem a ver com a amorosidade que, por vez, tem a ver com amor, que é uma palavra que anda meio ausente na educação e não deveria. Quem ama não desiste. Quando a gente começa a desistir um pouco da nossa atividade, dos nossos alunos, a gente começa a perder um pouco o gosto e, se você está deixando de amar, aí é melhor deixar de ensinar porque educação pressupõe uma capacidade amorosa imensa, não é inesgotável porque nada é, mas ela deve ser imensa. E, por ser amorosa, essa atividade precisa de condições de trabalho, de estrutura salarial, de organização pedagógica, de jornadas adequadas – senão não é possível exercer essa amorosidade de forma concreta. Vamos lembrar sempre: insistir, repartir e não desistir.
CORTELLA, Mário Sérgio. Loucos por gente. In: Educação. Janeiro, 1997.
Professor de pós-graduação em educação (Currículo) da PUC-SP.