Edição 12
Livro da vez
Nem tudo é brincadeira de criança
O livro Serafina e a criança que trabalha é, na verdade, um documentário sobre o trabalho infantil. A obra, que fala do assunto às crianças de maneira sutil, foi elaborada com o trabalho de três autoras: Iolanda Huzak, repórter fotográfica há mais de 30 anos; Cristina Porto, que é escritora de livros infantis (sua coleção mais conhecida é a das Serafinas: Serafina sem rotina, O dicionário de Serafina, etc.); e Jô Azevedo, jornalista há quase trinta anos, que já trabalhou em rádio, revista, jornal e televisão.
Pudemos bater um papo apenas com Jô Azevedo e Cristina Porto, pois Iolanda estava viajando por causa de um trabalho e não pôde estar conosco.
Construir Notícias – Como surgiu a idéia de fazer um livro sobre o trabalho infantil?
Jô Azevedo – Conheci Iolanda em 1992, quando nós duas colaborávamos para um jornalzinho de uma fundação de empresários. Era um jornal sobre criança e, um dia, fomos fazer uma matéria sobre trabalho infantil. Entrevistamos uma socióloga que preparava parcerias para o Programa Internacional de Eliminação do Trabalho Infantil, da Organização Internacional do Trabalho. Propusemos, por meio da Fundação Abrinq, a realização de uma série de reportagens sobre trabalho infantil, para dar visibilidade a essas ações. Daí, surgiu o livro Crianças de fibra, editado pela Paz e Terra em 1994. A editora Ática ficou interessada e nos pediu um texto de ficção para crianças, nos aproximando de Cristina. Ela trouxe a Serafina para esse mundo. Em 1996, ganhamos o prêmio de Melhor Livro Informativo da Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, com o Serafina e a criança que trabalha.
Cristina Porto – A editora me entregou o texto de Jô para passá-lo para uma linguagem mais adequada às crianças. Pensei em devolver, pois os fatos em si eram pesados demais. Não sabia como transformar aquele bloco numa coisa leve. Foi então que veio a idéia de usar a personagem Serafina, uma criança “normal”, comparando o seu cotidiano ao das crianças que trabalhavam.
CN – Como foi a pesquisa e a coleta de materiais para o livro? Como conseguiram identificar e entrar em contato com as crianças?
CP – Eu não participei dessa fase do livro.
JA – Iolanda e eu fizemos essa grande reportagem para o Crianças de fibra em 1993. Demorou nove meses de campo e mais três de edição. A pauta foi feita com a ajuda dos parceiros da OIT na campanha e depois foi garimpagem jornalística mesmo. A gente chegava em muitos locais com algumas situações já definidas, como o caso das carvoarias, que nos demandou muita estrada de pedregulho e poeira, para registrar as crianças. Em outros, chegávamos com a agenda, mas acabávamos encontrando mais situações, e às vezes não, era o contrário. Foi muito trabalhoso.
CN – Percebe-se que é um livro com a narração de histórias reais. Como foi se deparar com essa realidade?
CP – Terrível! Eu sentia que era preciso achar uma forma de falar do sofrimento com uma dose de ternura. Se não fosse a colaboração de Serafina…
JA – Ver centenas (são milhares, né?!) de crianças perdendo sua infância no trabalho, por conta do empobrecimento familiar, não é fácil. Em muitas situações, a gente ficava pensando: se essa criança estivesse brincando, na escola, vivendo a infância bem vivida, não seria muito melhor? Isso porque o trabalho infantil é terrível por causa da limitação que ele impõe a esses jovens, futuros adultos: começam cedo a trabalhar e repetem o círculo vicioso da pobreza dos pais por causa disso. A educação é uma das chaves contra a pobreza.
CN – Serafina e a criança que trabalha trata dos direitos das crianças, entretanto, não aborda os deveres delas. Por quê?
JA – Você não acha que a infância é uma época vulnerável do ser humano? Uma época a ser protegida pelos adultos? Assim as convenções internacionais sobre a infância encaram essa época. É uma fase com muito mais direitos do que deveres. Você não acha que os deveres são uma prerrogativa dos adultos? Criança tem o dever de brincar, ir à escola, participar das atividades familiares, começar a aprender sobre os relacionamentos, enfim…
CP – Na verdade, a maioria de nossas crianças não pode exercer seus direitos básicos. Falar de dever quando existe falta total de direitos não teria sentido.
CN – O livro fala sobre a proibição de trabalho para crianças menores de 12 anos, entretanto, muitas precisam, inevitavelmente, ajudar no sustento da casa, mas não conseguem emprego, inclusive por causa dessa proibição legal, e terminam indo para o mundo do crime, o que provoca um aumento considerável da violência, chegando até a existir casos em que elas matam. Que fazer? Permitir o trabalho ou restringi-lo? Qual a opinião de vocês em relação a este fato?
JA – Essa discussão é antiga. O trabalho infantil tem valor de política pública para socializar apenas as crianças filhas de trabalhadores. Por que não se pergunta a mesma coisa para os filhos da classe média? Eles não trabalham e vão vadiar nas ruas? Não vão porque freqüentam cursos de inglês, informática, praticam esportes, vão ao cinema, ao teatro, participam de grupos de música, enfim. É preciso ampliar esses direitos de poucos para a imensa maioria, como propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente. Se a questão perpassa pela renda familiar, então é preciso achar uma outra solução que não seja o trabalho infantil para ela: políticas compensatórias, programas sociais de amparo às famílias, escola pública de boa qualidade, política de emprego, enfim… Caso contrário, continuaremos a reproduzir o fosso social brasileiro, com poucos com muito e muitos com nada. Se essas crianças não saírem do trabalho para a escola, e de boa qualidade, como vão ter acesso a um mercado de trabalho cada vez mais competitivo?
CP – Pois é… Acredito que o ponto crucial é proporcionar às famílias condições normais de sobrevivência, para que as crianças tenham uma infância normal. Sabemos de alguns programas desenvolvidos pelo governo nesse sentido, mas são medidas paliativas, não chegam à causa do problema. Tudo bem que a criança ajude em casa, que cuide de suas coisas, é até positivo, desde que isso não prejudique seus estudos, suas brincadeiras, sua saúde. Isto é um problema político, sim, mas nós, sociedade civil, também temos o dever de fazer alguma coisa. Não adianta fechar os olhos e achar que só o governo é que deve procurar uma solução, pois o problema nos atinge diretamente.
CN – Quais as características e o panorama do trabalho infantil hoje no mundo?
CP – Sei que ainda existem mais de 5 milhões de crianças e jovens trabalhando no Brasil, mas não posso precisar as cifras. A Jô está mais por dentro dos números.
JA – Segundo a OIT, são 250 milhões de crianças trabalhadoras no mundo, a grande maioria na Ásia (61%), seguida da África (32%), da América Latina e do Caribe (7%) e da Oceania (sem Austrália e Nova Zelândia – 0,2%). Os dados apontam também um ressurgimento do trabalho infantil em países desenvolvidos. Na Europa, com as mudanças econômicas ocorridas no Leste, em razão da dissolução do bloco soviético, houve um empobrecimento das populações, por exemplo. Existem relatos de trabalho infantil nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Holanda.
CN – Quais os limites e as possibilidades mais viáveis para acabar com o trabalho infantil atualmente?
CP – Dar condições básicas para a família sobreviver e mandar seus filhos para a escola, ter vagas para todas as crianças que estejam em idade escolar, adequar o método de ensino à realidade da região, proporcionar cursos de reciclagem para os professores… Isso sem falar na atenção especial que deve ser dada às regiões da seca, onde os problemas são agravados pela fome, pelo desemprego, pela miséria absoluta, enfim.
JA – O trabalho infantil pode acabar se a política econômica privilegiar o emprego, a renda e a redistribuição de terras. Essas são as questões estruturais atrás do trabalho infantil. Enquanto isso não acontece, é necessário ter políticas compensatórias com programas sociais. A bolsa-escola é uma medida paliativa que demonstrou bons resultados. Desde que não seja irrisória como é agora, chegue às mãos da família pontualmente, esteja inserida num conjunto de medidas socioeducativas para promover essas famílias, enfim. Mas, note: ela é uma medida de caráter emergencial, não pode ser panacéia para encobrir as reais causas do trabalho infantil.
CN – Em um depoimento, o jornalista Caco Barcellos, autor de Abusado, que retrata a realidade de um dos morros mais conhecidos do Rio de Janeiro, o Dona Marta, disse que os moradores que mais pediram para serem fotografados foram as crianças que estavam envolvidas com o tráfico. Sabemos que, muitas vezes, as crianças conhecem seus “direitos” e ficam impunes por causa da legislação em vigor. Que fazer diante de uma situação dessas?
CP – Não tocamos no tema das drogas porque, como tratávamos de trabalho infantil, poderia se tornar um incentivo. Além do que, estávamos nos dirigindo às crianças entre 7 e 9 anos, mais ou menos. O que fazer? Juntar todos os esforços para mudar essa realidade terrível, pressionando as autoridades, buscando e sugerindo alternativas que consigam atrair essas crianças para uma vida saudável, como as atividades esportivas, por exemplo.
JA – A situação de violência a que chegamos, principalmente nas grandes cidades brasileiras, é resultado direto de três décadas de absoluto descaso com as políticas sociais. Populações inteiras ficaram alijadas de formas complementares de renda, como atendimento à saúde, habitação subsidiada, escola de qualidade, previdência que garanta os imprevistos da vida e uma velhice digna, transporte público de boa qualidade, enfim. Os sucessivos governos privilegiaram os ajustes econômicos em função de nossa dívida externa, enxugando os serviços públicos já tão precários, provocando um desemprego nunca antes visto (aqui em SP, está na casa dos 20% da população economicamente ativa) e a precariedade das relações de trabalho, com o encolhimento salarial expressivo. Eu pergunto: um pai ou uma mãe de família que ganha salário mínimo pode cuidar da família? Nem mesmo com os serviços públicos – forma indireta de renda –, ele conta. Assim, os filhos, em contato com o crime organizado já em nível internacional, não possuem horizonte de futuro. Nossa sociedade, pautada pelo consumo, não lhes oferece nada, a não ser desejos não realizáveis. As atividades marginais são uma grande tentação para essa moçada: em vez de R$ 300,00 suados por um mês inteiro de trabalho, a passada de um pacote de droga pode render três vezes esse valor em apenas uma semana.
CN – Existe algum caso que não foi relatado no livro (já que é para crianças) e que chamou a atenção de vocês, como, por exemplo, caso de crianças que se prostituem?
JA – Sim, presenciamos situações envolvendo jovens prostitutas em Fortaleza, ligadas ao turismo sexual, e no interior da Bahia. São casos muito difíceis e trágicos.
CP – Conheci, em uma zona portuária, meninas entre 9 e 11 anos de idade que já estavam começando a se prostituir. Também não tocamos nesse ponto, por causa da faixa etária à qual estávamos nos dirigindo. Mas o tema entrou no segundo livro sobre o mesmo assunto, que foi lançado em maio deste ano, voltado para leitores entre 12 e 14 anos, que já conseguem ter um discernimento melhor em relação a esse tipo de situação. No título do livro – Trabalho Infantil, o difícil sonho de ser criança, quisemos chamar a atenção sobre esse problema tristíssimo que a falta de perspectivas, de alegria, de brincadeiras provoca: a ausência do sonho. Chego a pensar que “o direito de sonhar” deveria fazer parte do Estatuto da Criança e do Adolescente…
CN – O que as pessoas devem fazer se souberem do caso de crianças trabalhadoras?
CP – Denunciar ao Conselho Tutelar, entidade formada por membros eleitos dentro de sua comunidade, responsável por encaminhar os casos para uma solução. Costumam funcionar junto às prefeituras, aos fóruns… Até a Lista Telefônica pode ajudar numa hora dessas.
JA – Mas o trabalho infantil não é caso de denúncia imediata, como as situações de violência. A denúncia pode ser feita ao Conselho Tutelar do local, mas é importante debater esse assunto onde ele está ocorrendo. Quais as causas que estão provocando essas situações? Existe mobilização social para dar conta da denúncia e de seus efeitos? Porque não se pode apenas denunciar e retirar a criança do trabalho – é penalizar a família duas vezes. É preciso alguma política compensatória até aquela situação mudar. Por isso, é importante debater e encaminhar propostas nesse sentido e localmente. Conheço um promotor público aqui em SP que diz que a luta contra o trabalho infantil é semelhante à dos abolicionistas contra a escravidão, é demorada e difícil de se empreender.