Edição 110

Matéria Âncora

O anjo bom do Brasil

Viviani Moura

Conhecida pelas obras de caridade e assistência aos desamparados, Irmã Dulce, a religiosa que conquistou o coração do povo, tornou-se a primeira santa brasileira.

No dia 26 de maio de 1914, nascia, em Salvador (BA), Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, que mais tarde passaria a ser reconhecida por Irmã Dulce, O Anjo Bom da Bahia. Seus pais, o cirurgião-dentista Dr. Augusto Lopes Pontes e Dulce de Souza Brito Lopes Pontes, nem sequer imaginavam que sua primogênita seria a primeira santa nascida no Brasil.

Quando completou 7 anos de idade, ela e seus irmãos ficaram órfãos de mãe. Foram cuidados pelas tias e pelo pai amoroso e presente. O pai casou-se, e ela ganhou mais duas irmãs: Terezinha e Ana Maria, a única viva, entre todos os irmãos. Quando pequena, gostava dos banhos de mar, passeios no lombo de mula, subidas em árvores e jogos de futebol.

Na adolescência, ficou sensibilizada com o drama da miséria e sentiu o chamado para ser freira. Seu pai orientou para que ela terminasse os estudos. Aos treze anos, já acolhia os doentes e pessoas em situação de rua no portão de sua casa, no bairro Nazaré.

Em 1933, com o diploma de professora na mão, ingressa na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, em São Cristóvão, a antiga capital do Estado de Sergipe. Em 1934, no dia 15 de agosto, data que se celebra a Assunção de Nossa Senhora, emite os votos religiosos e recebe o nome de Irmã Dulce, em homenagem à sua mãe.

Retorna para Salvador (BA) e trabalha como porteira e sacristã. Em seguida, a superiora a designa para fazer um curso de enfermagem. Seus dons naturais logo a encaminharam para exercer a função de enfermeira e responsável pelo setor de radiologia do Hospital Espanhol.

Preferência pelos pobres – Pouco tempo depois, foi enviada para ser professora no Colégio Santa Bernadete, mas as superioras perceberam que a alegria de Irmã Dulce estava em trabalhar com os mais necessitados. Em 1935, dá início a um trabalho de auxílio às comunidades carentes, sobretudo no bairro Alagados, onde existia um conjunto de palafitas. Em 1937, fundou, junto com o frei Hildebrando Kruthaup, o Círculo Operário da Bahia (COB), uma obra social que oferecia assistência médica, cursos profissionalizantes, lazer e educação para os trabalhadores das fábricas e suas famílias.

A religiosa chegou a se apropriar de casas desocupadas para colocar os enfermos recolhidos das ruas de Salvador, de onde foi expulsa, tendo de levá-los para o convento. Em 1949, com a autorização da superiora, Irmã Dulce ocupa o galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio e abriga os primeiros setenta doentes. Ali nasce a tradição difundida de que o maior hospital da Bahia, um dos maiores complexos de saúde com atendimento 100% pelo SUS do Brasil, surgiu a partir de um simples galinheiro. Já em 1959, é instalada oficialmente no local a Associação Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), uma obra filantrópica que atua nas áreas de saúde, educação, assistência social, ensino em saúde e pesquisa científica, que completa neste ano sessenta anos de existência.15

O atual líder dos recursos humanos (RH) da OSID, Raimundo José Araújo, viveu a experiência de ser acolhido por Irmã Dulce. Com dez anos, ficou órfão de mãe e foi encaminhado para o Centro Educacional Santo Antônio (Cesa). Viveu a infância, até os dezoito anos, no local e afirma que Irmã Dulce os tratava como filhos. “Ela dizia: ‘Meus filhos, estudem, o saber é o único bem que não podem tirar da gente’. Tinha uma preocupação muito grande de que aprendêssemos algum ofício, de que nos preparássemos para a vida”, conta.

Para Raimundo, Irmã Dulce foi mãe, religiosa e gestora. Depois de completar dezoito anos, a religiosa o convidou para trabalhar com ela nas Obras Sociais, trabalho esse que assume até hoje como um legado deixado por quem o ajudou. “Irmã Dulce fez justiça social na minha vida, ela me deu o que eu não teria com os meus pais… Me deu educação, emprego, uma boa situação na sociedade. Ela conseguiu me fazer um homem digno e me proporcionou todas estas condições, e, se sou o que sou hoje, agradeço a Deus por tê-la colocado em minha vida”, diz Raimundo.

Além dos pobres, Irmã Dulce possuía um grande amor pelos seus familiares. Sua irmã Dulcinha teve um sério problema de saúde, e a religiosa fez a promessa de que, caso ela sobrevivesse, passaria o resto da vida dormindo em uma cadeira, e assim o fez. A sobrinha Maria Rita Pontes fala de outros sacríficos da religiosa: “Ela usou um cilício de corda, com nós, até o início da década de 1980. Só dormia 4 horas por dia e se alimentava o mínimo necessário para sobreviver. Ela dizia que o nosso alimento era a oração, a comunhão com Deus”, conta a sobrinha.

A sobrinha Maria Rita leva o mesmo nome da tia e atualmente é a superintendente da OSID. Para ela, é um grande orgulho ter o mesmo nome da tia, mas, ao mesmo tempo, isso a faz ter consciência da grande responsabilidade de dar continuidade à sua obra. “Convivi com ela desde o meu nascimento até o último dia de vida dela, ou seja, ao longo de 35 anos. Minha mãe e ela eram muito unidas. Irmã Dulce dizia: ‘Somos dois corpos, em uma alma só’. Eu nasci no Rio de Janeiro, mas estávamos sempre em Salvador, ajudando Irmã Dulce no seu trabalho para com os mais necessitados. Ela nos ensinava a acolher a todos com amor, a ter compaixão, a respeitar as diferenças, a saber ouvir e acreditar na Providência Divina e a não perder a fé”, fala a sobrinha.

O arcebispo de Salvador (BA), dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, afirmou que Irmã Dulce poderia ter vivido o seu carisma de maneira tranquila, mas não conseguiu ficar indiferente diante de tantos pobres que encontrava a cada passo. “Enfrentou mil dificuldades, mas nada a detinha. Quando deu por si, estava dirigindo um hospital, pois tinha a consciência de que os pobres mereciam o melhor e que não poderiam ser mandados de volta para casa sem receber atenção e cuidado”, disse.

O baiano Sabino Oliveira Carvalho, voluntário há dezesseis anos da OSID, já recebeu duas graças por intercessão de Irmã Dulce: a cura de um câncer e de um problema sério nos olhos: “Esses milagres que aconteceram em minha vida só fizeram aumentar a minha devoção à minha agora Santa Irmã Dulce. Ela é a minha protetora, abaixo de Deus”, relatou Sabino.

Perseverança e convicção – Dom Murilo destacou, ainda, que Irmã Dulce tornou-se uma “pedinte”, pois pedia ajuda às pessoas que encontrava para conseguir dinheiro e alimento. “Nada a perturbava, pois o dinheiro não era para ela, mas para seus pobres — ou melhor, para Jesus, que via nesses pobres. Vale lembrar o pedido que fez a um dono de barraca na feira São Joaquim, em Salvador. Só Deus sabe quantas vezes Irmã Dulce já o havia ‘incomodado’ com seus pedidos. O certo é que ele cuspiu na mão que se estendeu em sua direção. Ela limpou a mão no hábito e, com toda simplicidade, lhe disse: ‘Isso foi para mim! E o que o senhor tem para os meus pobres?’. Venceu a resistência do feirante e saiu com uma doação”, destacou Dom Murilo. Esse feirante tornou-se um colaborador da Obra de Irmã Dulce.

A missão é de Deus – A sobrinha lembra algumas características da tia. “Ela era uma pessoa alegre, obstinada, abnegada e de profunda fé em Deus e na humanidade. Para ela, não existia a palavra impossível quando se tratava das necessidades dos pobres que atendia”, diz Maria Rita.

Em 1984, Irmã Dulce fundou o Instituto das Irmãs Filhas de Maria Servas dos Pobres, para ajudá-la nas tarefas do dia a dia no hospital e no Centro Educacional Santo Antônio (CESA), núcleo de educação da OSID que abrigava meninos resgatados das ruas ou abandonados pela família. Irmã Maria Gorette da Silva, que conviveu com Irmã Dulce e iniciou a missão no instituto com a santa, destaca uma lembrança: “Um conselho que Irmã Dulce me deu, e que nunca esqueço, foi a última fala sua antes da morte. Ela se encontrava no hospital, onde fui visitá-la, então me disse: “Minha filha, você vai passar por muitas dificuldades. Coragem! Não desista da vida consagrada. Vale a pena viver a serviço do Reino de Deus”, destacou a religiosa.

A sobrinha traz uma recordação da tia. “Uma das frases dela, com a qual me apego muito, principalmente nos momentos das grandes dificuldades, é a seguinte: ‘Essa obra não é minha. É de Deus. E o que é de Deus permanece para sempre’. E um dos conselhos que ela sempre me dava, e que trago com muito carinho, era a recomendação de que eu rezasse o terço todas as noites em louvor a Nossa Senhora”, afirma.

Irmã Dulce morreu no dia 13 de março de 1992, aos 77 anos, com fama de santidade, sendo beatificada em 22 de maio de 2011, na cidade de Salvador (BA).

No último dia 13 de maio, o papa Francisco reconheceu o segundo milagre (uma cura de visão) atribuído à intercessão de Irmã Dulce.

O processo de canonização de Irmã Dulce, a primeira santa nascida no Brasil, é o terceiro mais rápido da história. A cerimônia de canonização ocorreu no dia 13 de outubro de 2019, no Vaticano, em Roma. No Brasil, a missa de celebração a16 Santa Dulce dos Pobres aconteceu no dia 20 de outubro, na Arena Fonte Nova, em Salvador.

Legado social

 

De acordo com a OSID, no momento são contabilizados por ano 3,5 milhões de atendimentos ambulatoriais. Deste total, 2,2 milhões se concentram em Salvador, onde também se realizam 11,5 mil atendimentos por mês para tratamento de câncer. Atende-se ali diariamente cerca de 2 mil pessoas, e são realizadas por ano 12 mil cirurgias, além de 18 mil internamentos. Atualmente, mais de 4 mil profissionais trabalham na organização, sendo mais de 2 mil funcionários somente no complexo da capital baiana, local onde atuam ainda 320 médicos e 125 voluntários.

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