Edição 98
Profissionalismo
O cinema Brasileiro chega à sala de aula
Inês Assunção de castro Teixeira
Maria Antonieta Pereira
Maria Jaqueline Grammont
A Lei nº 13.006 torna obrigatória a exibição de filmes e audiovisuais de produção nacional nas escolas de ensino básico por, no mínimo, duas horas mensais. Isso nos faz questionar: que tipo de cinema brasileiro devemos levar à escola para que se possam ampliar os repertórios e as práticas culturais dos alunos? Neste texto, propomos aos educadores uma reflexão sobre essa nova exigência curricular.
As relações entre educação e cinema em pauta no debate público. Isso se deve à Lei nº 13.006, de 27 de junho de 2014, de autoria do senador Cristovam Buarque, que estabelece a obrigatoriedade de exibição mensal de, no mínimo, duas horas de cinema brasileiro nas escolas em todo o País. A inclusão de filmes nos currículos escolares não é uma novidade na história brasileira. Nos primeiros 30 anos do século XX, diversos políticos, educadores, diretores e produtores de cinema promoveram debates sobre as possibilidades de usar os filmes como um recurso pedagógico, de forma a contribuir para os projetos de modernização social no Brasil.
Essa mobilização estava associada ao grupo que, na primeira metade do século XX, participou do movimento de renovação da educação brasileira, denominado Escola Nova, cujo objetivo era formar cidadãos livres e conscientes, capazes de construir uma nação democrática. Grandes figuras públicas, como Fernando Azevedo (RJ), Anísio Teixeira (BA) e Lourenço Filho (SP), produziram e fizeram circular, em diversos documentos, solicitações para que o Estado interviesse em favor do uso de filmes como recurso pedagógico. E, ao se tornarem gestores públicos com maior poder de interferência no âmbito da educação, eles efetivaram ações que fortaleceram o discurso em favor da incorporação do cinema aos currículos escolares.
Em 1928, a Lei da Reforma de Ensino do Distrito Federal continha artigos que estabeleciam que as escolas de ensino primário, normal e profissional, quando funcionassem em prédios próprios, deveriam ter salas com aparelhos de projeção para fins educativos. Determinava, também, que o cinema deveriaser utilizado como recurso educativo auxiliar para o trabalho do professor, sendo aproveitado para a apresentação de conhecimentos em recursos populares e conferências (FRANCO, 2004).
Isso resultou na criação, em 1936, do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), uma organização voltada para o estímulo e a normatização do uso de filmes nas escolas. E, para isso, contava com recursos materiais, quadro de pessoal especializado, além de espaços de exibição garantidos para a produção de filmes considerados educativos. Essa iniciativa governamental atendeu, de certa forma, a interesses do campo cinematográfico, ao favorecer a importância de equipamentos e negativos fílmicos por meio de subsídios públicos (DUARTE, 2014).
O Ince foi criado durante o governo Getúlio Vargas (1930–1945), um período ditatorial em que a censura aos meios de comunicação era feita oficialmente por meio de instituições como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Como ocupava posição estratégica para a manutenção do poder do governante, mantinha uma produção intensa de material favorável ao regime, além de fiscalizar e impedir a divulgação de produtos que estimulassem a contestação ao governo.
Nos anos 1930, o cinema considerado digno de entrar na escola era o documentário feito especialmente para esse fim, segundo normas rígidas definidas por especialistas educacionais que recomendavam o corte nas películas de elementos tidos como não científicos. Segundo as diretrizes da época, era necessário separar explicitamente dos filmes educativos dos filmes comerciais, por estarem em lados opostos em relação aos efeitos causados nos espectadores. Assim, a ficção seria um tipo de filme inadequado para o ambiente escolar, porque não conteria o nível de objetividade necessário ao tratamento científico dos conteúdos a serem estudados. O documentário era considerado o formato ideal para as atividades na escola, principalmente aqueles produzidos pelo Ince, cuja mensagem podia ser inteiramente controlada por seus realizadores.
Hoje, diferentemente daquela época, filmes de ficção e documentários de longa e curta duração, realizados pela indústria cinematográfica brasileira ou por iniciativa independente, são as obras recomendadas para ser difundidas e discutidas nas escolas com o objetivo principal de formação de público para esse objeto cultural.
No entanto, podemos tirar lições de experiências passadas, o que pode contribuir para a reflexão sobre as possibilidades de efetivação da Lei n°13.006. Por exemplo, do ponto de vista educacional, apesar de o Ince ser uma referência histórica importante para as relações entre cinema e educação em nosso país, em termos de política pública não se pode dizer que ajudou a disseminar práticas pedagógicas com filmes na educação escolar pública até a década de 1960, quando encerrou suas atividades. A documentação pesquisada por Carvalhal (2008) e Franco (2004) indica que eram poucas as escolas que possuíam projetores de filmes e que elas estavam concentradas no Rio de Janeiro, antiga capital federal. Além disso, a maior parte dos esforços foi direcionada para a produção de filmes, sem que se pensasse em estratégias eficazes para favorecer o acesso a esse instrumento nas escolas e seu uso. Podemos inferir desse fato que, sem a criação de condições objetivas, tais como espaços adequados para acesso às obras e sua exibição, dificilmente iniciativas como essas levarão aos resultados esperados.
Olhar crítico
Consideramos que um dos propósitos da Lei n°13.006 é o de se contrapor a uma situação de exclusão do produto cinematográfico nacional do repertório cultural dos brasileiros. Isso é provocado pelo monopólio dos filmes americanos nas poucas salas de exibição existentes no País, nas locadoras e na maior parte dos canais de televisão.
Dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine) informam que o País contava, em 2012, com 2.517 salas para uma população de 193,9 milhões, o que corresponde, em média, a 77 mil habitantes por sala de cinema. Mesmo que tenha havido um crescimento em relação a 2009, quando a média era de uma sala para cada 90 mil habitantes, esses números são insuficientes e preocupantes, se consideramos o direito da população de ter acesso a diversos tipos de filme para a ampliação de seu repertório cultural. Esse problema se agrava quando se considera que as salas de exibição estão em cidades com mais de 500 mil habitantes, concentradas em cinco estados brasileiros (SP,RJ,MG,RS,PR), sendo que a metade delas fica nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Há ainda outro problema: 85% do mercado de exibição está ocupado com os filmes de grandes distribuidoras americanas: Columbia, Fox, Universal e Warner. Os 15% restantes estão disponíveis para exibir filmes de distribuidoras de outros países, como as brasileiras.
Ainda assim, há críticas à Lei n°13.006. Uma das mais importantes é a de que a lei foi criada sem a devida participação dos educadores, como, em geral, ocorre em relação à formulação da política educacional brasileira. Os educadores e a comunidade escolar não foram ouvidos, repetindo uma prática autoritária, antidemocrática, que retira dos principais interessados a possibilidade de participarem da elaboração das leis que lhes dizem respeito, devendo apenas cumpri-las.
Outra crítica baseia-se no fato de que não se sabe quais as condições reais, sobretudo as bases materiais, que serão dadas às escolas para exibirem cinema brasileiro com a devida e esperada qualidade de projeção sonora e de visualização das imagens. Embora possamos hoje assistir a filmes pela televisão, pela internet e outros equipamentos de mais fácil acesso, os telões, as salas escuras, um bom equipamento de projeção e de som inexistem na maioria de nossas escolas. São também levantadas as seguintes questões: Que tipo de filme seria mais recomendável e significativo para a formação cultural de nossas crianças e jovens? Como se dará o acesso das escolas a esse material?
Uns criticam a lei pelo seu caráter obrigatório, enquanto outros defendem que a obrigatoriedade deveria ser expandida ao Ensino Superior. Para alguns, a inclusão do cinema brasileiro no currículo deveria ter um caráter não suplementar, como nos termos da lei, e sim basilar. Isso porque o mundo contemporâneo constitui-se sob o signo das imagens, exigindo uma educação visual das novas gerações com o mesmo grau de importância da alfabetização concernente à escrita e à leitura. Saber ler imagens, o “letramento visual”, segundo os formuladores dessa crítica, é algo tão importante quanto o letramento propriamente dito.
A escassez ou a ausência da formação cultural dos professores sobre o cinema brasileiro é outro problema citado para a implementação da lei. Há ainda a opinião dos que consideram que os currículos escolares estão cada vez mais sobrecarregados de conteúdos e obrigações e que a lei contribui para desvirtuar as finalidades primeiras da escola.
Há ainda contestações pelo fato de que a lei se refere somente às escolas. Ficam ao largo outras instituições e espaços públicos nos quais o cinema brasileiro deveria obrigatoriamente estar presente por determinação legal das políticas nacionais para a cultura. Além da obrigatoriedade de exibição com grande frequência e regularidade nas salas de exibição e na programação televisiva, outros espaços deveriam ser utilizados, como as praças, logradouros públicos e aqueles em que a população aguarda atendimento de serviços.
Apesar do que pode e deve ser contestado, entendemos que a Lei n°13.006 é bem-vinda e poderá enriquecer a formação humana, cultural e cidadã dos estudantes.
Tempo para o cinema
Em relação à política educacional e aos professores em especial, temos na atualidade um contexto de intensificação da concepção neoliberal sobre o trabalho docente e da escola. Este é marcado, entre outras práticas, pelo controle e por uma diversidade de avalições externas, nas quais o desempenho dos alunos é o principal elemento de avalição de um sistema complexo. Essas medições, sob a lógica meritocrática, costumam gerar, inclusive, prêmios por produtividade para escolas e professores. De acordo com essa concepção, apenas o docente e sua frágil formação profissional são responsáveis pelos fracassos educacionais e representam um entrave para o ensino dos conteúdos considerados importantes.
Como consequência dessas concepções neoliberais, por um lado, mantêm-se os professores cada vez mais distantes dos espaços de discussão e gestão das políticas públicas. Por outro, fomenta-se a supremacia de conteúdos escolares mensuráveis nas avaliações. Reforça-se, assim, a ênfase na racionalidade técnica, mantendo-se ainda mais distantes do currículo escolar conhecimentos outros e não mensuráveis, como os ligados à sensibilidade, à ética, à estética, entre os quais estão as artes e as expressões culturais. No entanto, como alerta Bourdieu (2007), os conhecimentos socialmente mais valorizados e distintivos, em se tratando da cultura legitimada, são os associados à racionalidade técnica.
O cinema brasileiro chega à sala de aula
O tempo da escola, cada vez mais escasso, pela ampliação do conhecimento e diversificação do que lhe é exigido, tende a se esvair em ações relativas aos conteúdos avaliados. Um tempo para o cinema, nesse contexto, evidencia os processos contraditórios da política e da legislação, o que torna ainda mais complexos os trabalhos da escola e dos professores.
Analisar essas contradições criticamente possibilita enxergar as armadilhas da política, na qual, por um lado, tem-se a criação da Lei n°13.006 sem uma discussão ampla com os sujeitos da escola e sem considerar as necessidades para a sua concretização. De outro lado, abrem-se possibilidades para o exercício de práticas sensíveis e de conteúdos estéticos nas brechas de um sistema educacional politicamente fechado ao prazer, às artes, à sensibilidade, às emoções e a tudo mais que descentre seu caráter ainda pautado em concepções arcaicas de ciência e do humano.
Há uma grande potencialidade nos processos de formação escolar, se o tempo para o cinema for encarado como uma temporalidade humanizadora para todos os sujeitos da escola, e não apenas como mais uma exigência burocrática. Afinal, isso apenas intensifica a desumanização do trabalho do professor e contribui para um falso e aparente enriquecimento curricular.
Ainda no bojo dessa discussão, a obrigatoriedade de, no mínimo, duas horas mensais de cinema pode ser um fator positivo para que o trabalho com o cinema na escola, que já existia antes da lei, possa ir além do lugar de marginalidade vivenciado por alguns professores mais subversivos, no melhor sentido do termo. Uma vez que esteja legalmente presente nos currículos prescritos, a exigência da lei poderá fazer dos trabalhos com cinema algo significativo para a formação humana e cidadã das novas gerações.
Há uma grande potencialidade nos processos de formação escolar, se o tempo para o cinema for encarado como uma temporalidade humanizadora para todos os sujeitos da escola, e não apenas como mais uma exigência burocrática.
Encontro com o cinema brasileiro
A lei pode viabilizar o encontro de professores e educandos com um cinema pouco conhecido e muitas vezes estigmatizado, em favor de produções que são típicas da indústria cultural criticada por Adorno (2002) e do colonialismo cinematográfico hollywoodiano. Esse encontro pode ser também um tempo/ espaço para pensarmos juntos sobre as questões que têm sido abordadas e problematizadas nesses filmes. E, quem sabe, poderá ser ainda uma (re)invenção do Brasil na experiência formativa dos estudantes.
Mas como garantir que esse tempo seja, de fato, um encontro profícuo entre professores e alunos com o cinema brasileiro e com a arte cinematográfica de modo geral? Para que isso ocorra, é preciso, no campo político-legal, uma regulamentação que propicie às escolas boas condições para exibição e realização de atividades com cinema, até mesmo a produção de exercícios fílmicos. Isso significa assegurar, nas escolas, a existência de equipamentos necessários à exibição de filmes e sua manutenção periódica, além de espaços e mobiliários adequados para a projeção com qualidade de imagem e de som.
É também imprescindível a criação de mecanismos que possibilitem o acesso fácil e gratuito das escolas a bons filmes nacionais. Quanto a isso, é preciso lembrar que o diverso público da escola no Brasil é formado por crianças, jovens, adultos e idosos. Há, portanto, demanda por bons filmes nacionais para todas as idades e necessidades de investimento para sua plena acessibilidade.
Considerando aspectos implicados na regulamentação e implementação da lei nas escolas, colocamos as seguintes questões:
Quais filmes ou qual cinema brasileiro levar à escola? Como garantir que a nossa produção de qualidade — dos longas aos filmes de média e curta duração; do cinema independente aos bons filmes das maiores produtoras; dos diretores e roteiristas mais conhecidos e conceituados aos bons diretores pouco conhecidos; da jovem geração de realizadores brasileiros —,sobretudo aquela de mais difícil acesso para a população em geral, esteja presente nas escolas? Como levar às escolas as belas obras que se apresentam nos festivais e mostras de cinema, uma vez que grande parte dessa cinematografia não consegue chegar às salas de cinema, à televisão, às locadoras?
Como ter acesso a bons filmes de forma ágil, direta e segura, de modo que as escolas não se transformem em presas fáceis das distribuidoras?
Como deve ser a preparação do professor para a exibição, de forma a evidenciar o cinema como experiência estético-expressiva, como atividade do pensamento, de inventividade, de fruição e desfrute?
Que atividade desenvolver com o cinema
É preciso refletir sobre os usos pedagógicos do cinema na escola, para que possamos potencializar o trabalho com a arte cinematográfica, ao invés de restringi-la.
Para a mediação do contato dos estudantes com as obras audiovisuais, é urgente a formação cinematográfica dos profissionais da escola por meio de disciplinas de cinema nos currículos; de minicursos; de oficinas; da criação de cineclubes nos Centros de Formação; de sessões de cinema comentado; e de participação em mostras, festivais e ciclos de cinema; entre outras atividades.
Contudo, tudo isso será em vão se nós, os professores, não quisermos transformar a lei em realidade, pois sabemos que o currículo prescrito é apenas uma pequena parte do que se passa na escola. Propostas curriculares nada mais são do que uma parcela da potencialidade da escola, pois o verdadeiro currículo e a escola real são o que deles fazemos no cotidiano da sala de aula e seus espaços. O currículo real, vivo, o currículo em ação é o que fazemos no dia a dia da escola, que, em parte, não se deve a determinações legais. Depende, sim, da nossa ação individual e coletiva, de profissionais da escola, para fazer valer o direito de nossas crianças e jovens à educação e à escola que os dignifiquem e os desenvolvam como novas gerações que aportam à vida social e à história, para reinventá-la conosco, as gerações adultas que os recebem nos territórios escolares.
De modo geral, tendo as autoridades responsáveis feito a sua parte na garantia das condições materiais necessárias para o cumprimento da lei, estamos convencidos e esperançosos de que, pelas mãos dos professores e demais profissionais da escola, sua implementação representará uma real oportunidade para que, não apenas o coletivo da escola, mas a comunidade escolar como um todo, possam realizar um feliz, amoroso e fecundo encontro com o cinema brasileiro. Uma aproximação que poderá representar um (re)encontro com a cultura brasileira, com a “formação e o sentido do Brasil”, nas palavras de Darcy Ribeiro no subtítulo de seu belo livro O povo brasileiro (1995), obra fundamental para pensarmos e compreendermos o Brasil. Do livro foi feita uma série de dez documentários dirigida por Isa Grinspum Ferraz. Essa importante realização do cinema nacional merece ser conhecida por todas as escolas e por todos os brasileiros. Então, mãos à obra, colegas!
Inês Assunção de Castro Teixeira é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Condições e Formação Docente (Prodoc/FaE/ UFMG) e cofundadora da Kino — Rede Latinoamericana de Educação, Cinema e Audiovisual.
Maria Antonieta Pereira é professora aposentada de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora da Associação Cultural Teia de Textos, do projeto Leitura para Todos e do programa Adote um Amigo.
Maria Jaqueline Grammont é professora e pesquisadora da Universidade Federal de São João del-Rei, com participação no Grupo de Pesquisas sobre Condições e Formação Docente (Prodoc) e na Kino — Rede Latinoamericana de Educação, Cinema e Audiovisual.
Extraído de: Revista Presença Pedagógica. Ano 20. N. 122. Belo Horizonte: Dimensão, 2015.