Edição 07

Matérias Especiais

O dia da consciência negra é o dia do Brasil

… Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos.
Dando porradas na nuca de malandros pretos. De ladrões mulatos.
E outros quase brancos trados como pretos.
Só pra mostrar aos outros quase pretos. (E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos.
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados…
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula

(Caetano Veloso/Gilberto Gil, Haiti)

Negros, no Brasil, somos quase todos. Por isso, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é o dia do próprio Brasil, que é mestiço na pele e muito negro de alma.

Celebraremos em 20 de novembro mais um Dia da Consciência Negra. E há duas imagens que podemos servir de motivo para nos posicionar nessa questão da identidade racial.

Imagem 1: O Jornal Folha de S. Paulo notificou em 26 de maio de 2002 na seção Cotidiano, p. Cl, uma forma insidiosa de preconceito racial: nos hospitais e maternidade públicos e particulares, da cidade do Rio de Janeiro, as mulheres grávidas brancas são mais bem acompanhadas no pré-natal e no parto do que as mulheres negras. Alguns médicos, mesmo tendo jurado dedicar-se à saúde humana e à defesa da vida de todas as pessoas, tratam melhor mães brancas que mães negras. E negam realidade quando questionados. Quer dizer, as instâncias públicas de saúde se deixam levar pela insídia índices negativos de qualidade de vida dos negros do Brasil. Mulheres negras grávidas tratadas como menos grávidas, logo merecedoras de menos cuidados, de menos exames, de menos ultra-sons… A pesquisa foi feita no Rio de Janeiro pela Fundação Oswaldo Cruz e pela Prefeitura Municipal, mas certamente se aplica a grande parte do país. Pode-se ficar quieto diante de uma coisa dessas?

Imagem 2: O parque do Ibirapuera em São Paulo recebe periodicamente grandes shows gratuitos. O último grande espetáculo, de Caetano Veloso, reservava uma surpresa: eram muitos os casais inter-raciais no gramado, com uma característica peculiar: mulheres brancas, homens negros. Juntos. Jovens. De meia-idade. Mais uma vez as mulheres dão o exemplo de consciência aberta e de capacidade de enxergar o outro, sem se deixar travar pelo preconceito. É claro que há muitas mulheres preconceituosas, assim como homens preconceituosos, crianças aprendendo com os pais a ser preconceituosas ( porque criança, por si, não tem preconceito algum), padres preconceituosos… Mas no geral, em todo dilema que aponte para a necessidade de quebra de padrões que já se demonstram obsoletos, é a mulher que vai à frente e diz ao homem (seja marido, filho, amigo): “Podemos fazer diferente”.
Podemos fazer um Brasil diferente.
É mentira dizer que somos uma sociedade aberta, livre de preconceitos. O preconceito racial brasileiro é disfarçado, é mesclado de autoritarismo e compadrio, é falsa cordialidade.
Mas podemos fazer um Brasil diferente. Diferente quando as pessoas negras forem respeitadas, incluídas, aceitas. Diferente, fundamentalmente,quando as pessoas negras extirparem de sua entranhas o preconceito bebido com o leite materno. A pior tradução do preconceito é o sentimento negro de inferioridade imposta durante séculos de escravidão e outros tantos séculos de semi-escravidão (trabalho mal-remunerado, interdição de acesso à escola, à saúde, à moradia).

Não há inferiores. Há negros inferiorizados. Faz toda diferença. A inferioridade é imposta, programada, forçada goela adentro.
Deveríamos parar de dizer: “Esse é um preto de alma branca”. Bobagem. Negro que é negro não precisa nem quer branquear a pele, muito menos a alma. Bom mesmo é ter alma negra, retinta.

Bom mesmo é ter consciência de nossas origens e não estagnar na exploração de todas as nossas possibilidades humanas.
Bom mesmo é deixar de associar negro com preguiça, moleza, caráter duvidoso, porque todas essas mazelas humanas independem da cor da pelo. São fruto da falta de educação humana, escolar, profissional. E falta de educação, falta de escolas, falta de oportunidade de trabalho não é destino de nenhuma raça. É resultado do que os governos fazem com seus governados.

Nesse Dia da Consciência Negra, assumamos que somos “quase todos negros”, como diz Caetano, em busca de igualdade com os “muito pouco branco” donos do país. E essa igualdade não virá sem escolarização, porque a educação é o único caminho para o avanço de um povo. Não precisamos de branqueamento, não precisamos imitar o que nunca seremos. Precisamos é de padres negros, brancos e mulatos, bispos negros, brancos e mulatos, médicos negros, brancos e mulatos, professores universitários negros, brancos e mulatos, e assim ao infinito, porque o importa é a competência humana, é a velha lição evangélica de que é pelos frutos que se conhecem as árvores, não pela cor de seu caule ou de suas folhas. Isso é muito válido para as pessoas de toda cor.
A atitude de reconhecer ao outro a plenitude de humanidade, a plenitude dos direitos, fará com que aos poucos possamos eliminar de nossas relações sociais a marca nefanda do preconceito. É quando veremos crianças negras e crianças brancas freqüentarem a mesma escola, preparando-se para construir no futuro um país que aceite mostrar, sem o mínimo medo, a própria cara, para não deixar de citar Cazuza.

Aliás, o campo artístico, mais democrático por natureza, é pródigo em bárbaros talentos negros no mundo todo. A lista seria infindável. Essa natureza democrática das artes precisa urgentemente se ampliar e abarcar todo os campos da vida, para que todas as pessoas possam conquistar o reconhecimento por seus esforços e a recompensa de suas conquistas.

Sem contar que mascarar o preconceito racial e mantê-lo vivo é atitude bem pouco evangélica. Por isso resolvemos trazer este assunto para as páginas de nossa revista, porque sabemos que da boa vontade de nossos corações surgirá a força de um mundo mais igualitário e justo. A luta é de todos nós.

Fonte: Mensageiros do Coração de Jesus
Vol. 108 . Nº 1.205 – Novembro – 2002

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