Edição 08
Espaço pedagógico
O olhar do psicólogo sobre a adaptação: quando crianças de 0 a 6 anos ingressam em instituições infantis
“É na acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidade para com o rosto do outro, que se estabelecem as relações mais primárias do ser humano e se decidem as tendências de dominação ou cooperação.
Cuidar do outro é zelar para que esta dialogação, esta ação de diálogo eu-tu, seja libertadora, sinergética e construtora de aliança perene de paz de moralização.”
(Leonardo Boff – Saber cuidar)
Momento de viver o novo, expectativas que impõem disponibilidade, planejamento e reorganização.
Sim, porque, ao contrário do que se pensa, quando uma criança chega a uma instituição de educação infantil, na verdade, não é somente ela quem está chegando.
Com ela chegam seus familiares – os presentes e os ausentes que, às vezes, interferem nesse processo e se fazem muito mais presentes do que os presentes de fato – e toda uma série de mudanças que são desencadeadas dentro da própria instituição para receber aquela nova criança e a nova família que se inserem num sistema já em funcionamento. É natural que anseios e tensões se façam presentes.
Resultado: todos os envolvidos, direta ou indiretamente nessa chegada, passam a viver um processo de adaptação, de ajustamento a uma nova situação. Uma nova situação que se configura para a criança e sua família, para o educador, para os colegas de turma e, como não poderia deixar de ser, para a própria instituição.
Vivência delicada essa! Tão delicada e mobilizadora que algumas instituições, desconhecendo que também estão em adaptação, optam por não proporcionar essa vivência às crianças, às suas famílias e, é claro, a elas mesmas. Essas são aquelas instituições em que os pais normalmente não podem passar do portão e um brusco corte se produz, de uma hora para outra, sem aviso prévio, na vida da criança que passa a ter que, forçosamente, se acostumar com um ambiente e pessoas que nunca viu. Se para nós, “adultos já criados” como se diz, viver situações novas e inesperadas é mobilizador, imagine para a criança, que nesse momento vive o mundo basicamente através das pessoas com quem estabeleceu laços afetivos e de confiança, ou seja, mãe/pai e algumas poucas que se tornam significativas para ela.
Em outras palavras, esse momento não é propriamente não vivido, mas desvalorizado o suficiente para que toda a equipe lide com esse processo como se fosse um fato comum, rotineiro, que não exigisse preparo e acompanhamento. Afinal, justificam: “crianças não sentem, logo se acostumam! O problema é a ansiedade da mãe…”. Aqui o tempo e ritmo da instituição é que determinarão a duração desse período de adaptação.
Contrariando expectativas, em outros momentos, é a família que se encarrega de tomar a iniciativa e entrega o filho no portão, dizendo que “não tem tempo para fazer a adaptação”, alegando razões ligadas ao trabalho. Aqui é ela quem abre mão de vivenciar um momento precioso, mas que, na verdade, só vê como doloroso. Nesse momento, pais e mães têm que enfrentar conflitos e emoções difíceis, desconfortáveis e desconcertantes para os quais, normalmente, não estão preparados.
Mas reações desse tipo são compreensíveis e têm fundamento. Na verdade, elas denunciam a presença de questões que ainda não foram suficientemente abordadas e clarificadas.
Uma delas refere-se ao ineditismo de uma situação que começou a ser vivenciada apenas há alguns anos pelas famílias (classe média/alta) e por esse tipo de instituição. Nunca antes família e instituições de educação infantil assumiram juntas a responsabilidade pelos cuidados e educação de crianças tão pequenas.
Isto não fazia parte dos hábitos de nossa cultura. Crianças pequenas em instituição era só porque pai e mãe precisavam muito trabalhar e não tinham com quem contar (avós, tias, vizinhas…), ou porque ficava órfã.
Esse contexto, por si só, já traz enorme desconforto e confusão. Hoje, os pais estão partindo para viver uma experiência que, para eles, é totalmente desconhecida e socialmente ainda mal vista.
Dificilmente um pai ou uma mãe, que coloca seu filho em uma instituição de educação infantil (principalmente em período integral), passou, quando criança, por essa experiência, teve esse registro “do que é ser uma criança de creche ou uma criança que fica o dia todo na escola” em idade tão precoce. Os próprios educadores, que lá trabalham, também não. Principalmente em relação aos bebês. Muitos especialistas ainda alertam que devem ser cuidados, mesmo que a mãe trabalhe fora, em casa e não coletivamente.
Na verdade, ainda se questiona se essa é uma experiência positiva, válida para a criança, ou tornou-se uma experiência necessária e imposta em função das mudanças sociais ocorridas.
Além disso, outras apreensões não ditas também estão presentes.
A relação entre pais e filhos fica menos intensa? O que uma instituição de educação infantil de período integral (ou não) deve proporcionar à criança para que tenha garantido a satisfação de suas necessidades? O que se “trabalha” com crianças tão pequenas?
Todas essas inquietações, explicitadas ou não, se fazem presentes e as instituições precisam assumi-las, ter a clareza de que elas existem, mesmo quando não são faladas.
Poder trazê-las à tona e acolhê-las, dando aos familiares informações corretas, consistentes, num clima de receptividade, cuidados, amorosidade e profissionalismo, será fundamental para a consolidação de uma relação de confiança que começa a se estabelecer. O processo de adaptação, na verdade, já começa por ocasião da visita dos pais à instituição. Esse momento será decisivo, não só em relação à escolha da instituição, como também no que se refere ao tipo de relação que será travada entre as partes interessadas.
Bem, em decorrência, não podemos deixar de abordar uma outra questão.
É que, inevitavelmente, adaptação rima com separação. De modo geral, essa é uma vivência bastante mobilizadora para todos nós. Não é à toa que até hoje boa parte de educadores e familiares optam “pelo ir embora sem a criança ver”. Essa atitude deixa clara a associação de separação com coisa ruim, que traz sofrimento, que não deve ser vista ou vivida, ou seja, encarada de frente. Fala também de como os vínculos de confiança com a criança começam a ser construídos em bases distorcidas, que envolvem o mentir e o enganar.
Esse momento pode ainda tornar-se mais agudo porque, principalmente no caso das creches, a separação, em boa parte das vezes, é vivida como abandono (na ainda tão freqüente associação de creche e orfanato…) e não simplesmente como separação.
É comum, nesse momento, escutarmos de algumas mães que se sentem culpadas por estarem abandonando seus filhos na creche. Esse é um engano que deve rapidamente ser desfeito: separar-se do filho por algumas horas não tem nada a ver com abandoná-lo – “ou a senhora não tem a intenção de voltar para buscá-lo?”.
Portanto, para que todos possam sair ganhando ao passar por essa vivência, principalmente as crianças, é importante que todos sejam apoiados, que valorizem esse momento como um momento que demanda atenção e cuidado, pois, como vimos, vivências importantes estão em jogo.
Mas, como fazer?
Essa consciência, esse processo, deve ser desencadeado pela instituição, e seu primeiro passo deve ser dado em direção à sua equipe, com ênfase nos educadores que atuam diretamente com as crianças.
Eles devem ser preparados e apoiados pela equipe técnica (psicólogo/pedagoga) que fará a ponte ente eles, as famílias e as crianças.
Esse momento pede monitora-mento, pois educadores também estão mobilizados, não só pelo contato com o novo – e, portanto, tendo que recorrer a novos recursos internos -, mas também mobilizados por sua maior ou menor capacidade de lidar com separação.
Outra questão importante é que seu desempenho, sua capacidade de acolhimento e de estabelecer vínculos significativos, será o tempo todo testado e decisivo para o sucesso desse processo. As expectativas depositadas em sua figura são muitas.
Aqui é importante observar o desenrolar dos afetos, dos vínculos que vão permeando e se estabelecendo nessa relação educador – família – criança.
Esse é um momento que deve ser progressivo, de troca de informações sobre a rotina da instituição e os hábitos das crianças. Quanto mais pudermos conhecer sobre ela, melhor.
Ela captará um sentimento de familiaridade na forma de ser tratada e isso é fator que favorece seus sentimentos de “estranhamento” e a manutenção de sentimentos de continuidade. Essa é uma necessidade que deve ser garantida.
Em segundo lugar, a equipe técnica deverá preocupar-se com a família, pois agora é ela quem fará a ponte entre seus filhos, os educadores e a instituição.
Principalmente nessa primeira fase de vida, as emoções dos pais ainda refletem diretamente nas reações da criança. Ela ainda é muito dependente de seus olhares.
É impossível satisfazer às necessidades das crianças separadamente das necessidades dos pais.
Portanto, repercussões efetivamente positivas de nosso trabalho, em relação à criança, só teremos se os pais se sentirem cúmplices da escola nesse processo. E isso dependerá, em boa parte, de como a família será acolhida pela instituição.
Imaginar que o sucesso de um processo de adaptação se resume à ausência de choro é banalizar uma situação que não termina em si mesmo. Os sintomas que as crianças apresentam como doenças, regressões de comportamento etc., estão aí para comprovar que elas não falam que as coisas não vão bem somente chorando…
Sair-se bem nesse processo, para a criança, é sinônimo de poder ficar mais forte, mais madura e confiante. É poder ser marcada por um regime bom, que a leve a ter uma maior disponibilidade para entrar em contato com o mundo, vendo-o como um lugar onde vale a pena estar e experimentar, onde se expor para o novo não é doloroso ou comprometedor.
É poder envolver-se com o novo (educador/colegas) experimentando novas formas de ver e sentir, sem que, para isso, o já conhecido (pais/familiares) perca espaço em seus afetos. É poder expandir, mas com acolhimento e confiança sempre presentes, para que haja estabilidade e integração.
Temos que ser especialistas em saber cuidar das crianças de 0 a 6 anos, sabendo que esse processo exige profissionalismo e conhecimento, pois aqui também já temos objetivos pedagógicos a serem atingidos.
Temos como objetivo educar para o novo, educar para o convívio em grupo e para socialização, educar para o cuidado e o respeito às necessidades básicas do ser humano como segurança, sentimento de pertencer, e educar para a autonomia. Não esquecendo que esses objetivos devem ser estendidos também às famílias…
A experiência mostra que, ao contrário do que o senso comum acredita, todos podem estar inteiros nesse processo, assumindo as dificuldades e contradições, expondo seus medos e aflições, bem como alegrias e surpresas, é o que contribui favoravelmente para que esse processo de adaptação se torne mais rápido, fácil e realmente verdadeiro. Portanto, adaptação com ambivalências, com choro ou sem choro, com lamento ou sem lamento, com dengo, com riso, com resistência a deixar crescer…
Que seja como for, mas que seja vivida, elaborada e assumida!
Referências bibliográficas
BOFF, L. Saber cuidar – a ética do humano: a compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 200.
BORGES, M. F. Escola e família: afinal qual é a nossa? Jornal Hífen. Sinep, mar. 1998.
DAVINI, J. (org.) Adaptação – Pais, educadores e crianças enfrentando mudanças. São Paulo: Espaço pedagógico, 1991. Série Seminários.
VITÓRIA, T.; FERREIRA, C. Processos de adaptação na creche. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 86, p. 55-64, ago. 1993.
WINNICOTT, D. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
Fonte: A práxis na formação de educadores infantis.
(org.) Regina Célia de Souza – Maria Fernanda S. Tognozzi Borges / Rio de Janeiro: DP&A, 2002.