Edição 108

Matéria Âncora

O professor encanta pelo seu encanto

Nildo Lage

Antes de ponderarmos o tema O professor encanta pelo seu encanto — para que a escola dos sonhos adquira forma, tom, cor, vida, existência… —, sejamos resistentes para abarcar uma apreciação do ambiente em que a educação sobrevém mirando nas circunstâncias em que o formador de humano — professor — transita numa atmosfera cada vez mais hostilizada.

Não é preciso nomear a escola — de centro, bairro nobre ou periferia — em busca de respostas para compreendermos uma realidade lastimável, excepcionalmente para problemas cuja dissolução afiança vitória ou fracasso.

Ao primeiro passo, podemos averiguar — desde a creche ao Ensino Médio — que a onda “Faço o que me der na telha” é uma regra imposta pela geração “Comanda a onda que eu navego”. Como num parque de diversão, a maioria é frequentadora. Frequentadora, porque passa uma temporada girando nas dependências da escola, brincando, agredindo, divertindo… É surpreendente como adolescentes — a partir do 7º ano — encaram a escola como um ponto de encontro com a galera. Não querem nada com a vida.

A desordem é de tal dimensão que é complexo encontrar os responsáveis — família, professor, gestão, sistema —, e, como a réplica é o que nos movimenta, não podemos nos esquivar de questionamentos. Não os triviais: “Onde erramos?”, “Por que chegamos a esse extremo?”, “De quem é a culpa?”. Porém, os camuflados pelos crivos das dependências de uma escola (de)formadora perguntam: “É possível o professor encantar com seu encanto num espaço tenso e violento, onde o rebentar da guerra das gerações — digitais e analógicas — estabelece ostentar a guarda em alerta máximo para não ser golpeado?”, “É possível encantar em meio ao descaso familiar, ao desrespeito discente, ao abandono do governo… À própria violência que se tornou “banal” com os duelos aluno-aluno-professor-aluno?”, “É possível encantar com alunos desinteressados, pais ausentes e gestão desnorteada?”.

Temos que ser realistas: ser professor num país de deseducação discente e familiar e de gestores desumanos19
e corruptos é assinar um contrato de adoção e se responsabilizar por cada vida arremessada no corredor da escola, que atravessa o portal da sala de aula à espera do nada: nada da família, nada do governo, nada do próprio mundo, pois o seu mundo é um universo de sacrilégios. E, nesse universo onde os “nadas” buscam ser alguém, as ações do professor vão além das estabelecidas pela profissão. Tem que virar, se virar, produzir uma atmosfera de acolhimento para que esse “nada” se sinta alguém, para somente então projetar a aprendizagem como processo de transformação de personalidades disformes, pois, além de ensinar, tem que incrementar uma educação a uma geração sem valores, como o respeito ao direito alheio, excepcionalmente à pessoa do outro, para que, no mínimo, possa resgatar vidas num universo onde influências da própria família impedem a ascensão de vencedores.

Não é fábula nem trailer de programa de sensacionalismo… Em todos os casos de sucesso, houve resgates, muitas vezes cinematográficos, do super-herói professor numa operação “Vem, pai; vem, mãe; vem, avó; vem, tia… Ajudem-me a resgatar suas crias das garras das drogas, da prostituição…”. Superprofessor que, no ímpeto de fazer a diferença, atrai família e comunidade; convoca a direção, o apoio pedagógico, os próprios colegas, para agirem sincronicamente na operação retaguarda.

O caos é real e estabelece coesão. Portanto, vamos arrebatar a máscara para entrever um palmo à frente do nariz… E, assim, vislumbrar os reflexos da desordem. Pois, nós que acompanhamos o dia a dia da escola, escoltando os passos vacilantes de uma educação sem denodos, sem tendência deliberada, que apreciamos a educação se arrastar, transportando um fardo de conteúdos fúteis, na intenção de alcançar uma convergência que atenda a geração do ecrã tátil, sabemos que é necessário mais do que encanto, é preciso uma cartada de mestre para ruir um sistema arrasado pela cadência de fracassos e reestruturar as bases da escola com ferramentas digitais e professor com formação continuada, para depois engatinhar num ensino com valores.

Só quem apreciou e experimentou tudo — situações de violência, preconceito, abandono, abusos, desrespeito, agressões — está na ativa pela sobrevivência — por não ter tempo e recurso para uma nova faculdade. Do contrário, já tinha arremessado diários, planejamentos e a própria carreira para o ar, abdicando de tudo. Pois contemplar vidas se converterem em objetos isolados em salas, pátios e corredores, aspirando conquistar um lugar ao sol, deprime. O único alento como professor é olhar adiante e apreciar uma minoria — dos heróis da resistência — brilhar e iluminar o próprio mundo, por não aceitar o que o mundo educacional e a própria família lhe ofereceram.

AINDA HÁ UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL?

Vamos ser absolutistas — professor, sistema, escola, governo.

A fórmula salta aos olhos, pois, mesmo com o desequilíbrio familiar, o alastramento das drogas e da prostituição e o domínio da violência que contagiou o espaço escolar a ponto de vidas serem ceifadas no interior da instituição pelo tráfico, por um suicida, se interrompermos os passos, olharmos de lado e perguntarmos aos alunos — até mesmo àqueles que gestores, especialistas e professores afiançam que não têm mais jeito —: “Qual a escola dos seus sonhos?”, o retorno da maioria, de tão impactante, silencia vozes. Vozes daqueles que estão ali pagos para fazer e não fazem; envergonham os que difundem em rede nacional que temos uma educação revolucionária, cuja evolução é: “de uma ponta a outra!”.

Eu sonho com uma escola cujo encanto do professor sirva de norte para orientar-me por meio de uma educação fundamentada nas minhas aspirações, que seja o impulso para que eu possa irromper os impedimentos impostos por minhas dificuldades. Professor cuja magia do agir fortaleça as bases da escola, para que o meu crescimento humano sobrevenha por meio do pensamento crítico, pois, na escola que eu sonho, professor não é carrasco — um singelo olhar de lado para consultar o colega é pretexto de um ponto a menos na disciplina, uma ocorrência na Direção —, tampouco maçante — a ponto de acreditar que pode aliviar os seus fracassos pessoais.

Na escola que eu sonho, professor é parceiro, camarada… Um cara descolado… Nem precisa ser um sabe-tudo — porque podemos aprender juntos —, mas que tenha desenvoltura para reinventar a arte de instruir, desenvolver métodos revolucionários de ensinar… A escola que eu sonho é tão fascinante que o aprender se torna ação involuntária… Na escola que eu sonho, provas e testes são arremessados para o arquivo morto num quartinho escuro… Avaliar? O aluno nem percebe que está sendo avaliado, pois cada pesquisa é uma viagem, e, em cada excursão, a aprendizagem advém como semente germinando num terreno fértil, sobrevém como resposta às minhas buscas, em momentos inusitados: nos momentos em que os conteúdos aplicados são expostos em confrontos com os colegas ou até mesmo num bate-papo descontraído no zap da turma… Porque, na escola que eu sonho, professor é verdadeiramente mestre… O seu falar é conhecimento; o seu agir é projeção que arrebata para universos que estimulam novas buscas, novos conhecimentos, pois atiça a curiosidade que se deixa levar pela magia que proporciona conhecimento e crescimento humano.

TRIIIIMMMM… VAMOS CAIR NA REAL PARA DISCUTIR A CRISE…

Resultados, desabafos e sonhos ratificam que o desinteresse discente pela educação escolar se energiza na medida em que as dificuldades do sistema de edificar uma escola sedutora, com conteúdos interessantes e professores satisfeitos e preparados para enfrentar situações no confronto de gerações e contorná-las de forma coerente, se agravam.

Sabemos que esse sonho é possível de se realizar, basta haver investimento, comprometimento, envolvimento… E podemos resgatar a escola, valorizar o professor, atrair a família, seduzir o aluno… Dar um passo adiante e habilitar professores não para vender aulas atraentes, mas para edificar uma identidade e trabalhar respeitando a cor, valorizando a cultura, a crença, o eu e, assim, tornarem-se mestres na arte de ensinar para o futuro.

Se acompanharmos o cotidiano de uma escola, apreciaremos batalhas ininterruptas. É uma verdadeira força-tarefa, o professor de Matemática descomplica: adiciona interesse, diminui diferenças, divide sonhos, multiplica oportunidades, vence o horário… O professor de Língua Portuguesa age com presteza: substitui adjetivos pejorativos, preenche as reticências com substantivos inclusivos, promove a conjugação do verbo ser… Ser cidadão coerente, ser profissional com competências… O sinal dispara, o professor de Geografia posto à porta adentra já delineando os pontos cardeais que devem ser trilhados para o aluno ser um vencedor por meio do conhecimento… Não teve jeito… O professor de História deu o melhor de si, o de Ciências investiu até no combate às enfermidades do eu… No frigir dos ovos, meia dúzia de gatos pingados absorveram os conteúdos, aproveitaram as oportunidades… Derrota dos professores? Não! Faltou a outra parte, o agir do sistema, o agir do Governo e o agir dos outros “seres” fundamentais à formação do humano — os pais.

POR QUE A ESCOLA DOS SONHOS É UM SONHO TÃO DISTANTE?

Vamos sentar, maximizar a janela da sala de aula para contemplar o seu interior: zoações, gritos, brincadeiras agressivas, violência… O professor correndo para lá, para cá, aos gritos pedindo silêncio… É assim todos os dias… Os duzentos dias letivos… E o mais grave: todos os envolvidos no processo educacional têm ciência de que uma educação de qualidade redireciona destinos e a consciência basal: a educação de conteúdos em si não sana problemas familiares, sociais, políticos, religiosos… Todavia, qualidade é um diferencial dantesco. Qualidade muda comportamentos, redireciona caminhos… E não temos qualidade: qualidade profissional, qualidade na estrutura física, qualidade nos conteúdos aplicados, qualidade nas ferramentas pedagógicas, tampouco qualidade no aproveitamento, pois pesquisas revelam que a educação brasileira atravessa uma crise existencial que emoldura um retrocesso histórico.

Não desvie o olhar da janela da sala de aula… Veja, reflita, decida… Educação é a trilha que conduz à vitória… Professor é um mestre no manejo da ferramenta fomentadora de conteúdos que enriquecem vidas e transformam comportamentos. Não é fake, é óbvio: de tão real, encanta com seu encanto gerações e gerações que passam sob sua regência ano após ano… Mas até quando permitirá que professores e alunos prossigam sonhando com a escola dos sonhos?

Quem é professor sabe, sala de aula é uma centrífuga: tritura os nervos, esfacela o emocional, suga a energia, desestrutura o psicológico, mesmo numa unidade de ensino em que a gestão atua a favor da educação e proporciona suporte ao professor, tendo na retaguarda pais presentes, que se envolvem no processo educacional do filho… Imagina ser arremessado num espaço enfadonho sem lenço e sem documento. E o pior: ter que impetrar metas.

O surpreendente é que, mesmo ignorado no fundo da sala, deparamo-nos com aquele aluno que se agarra ao sonho de uma escola que ofereça um saber sistematizado, apontando, com gestos tímidos, que o caminho a ser trilhado é tão somente respeitar o seu tempo, o seu potencial, e ser conduzido por um processo que promova o crescimento gradativo, cujo sistema valorize o professor, tolere seus erros como parte do processo de aprendizagem, analise regras e conteúdos para que o professor saiba o que ensinar e o que não ensinar. Pois, na escola que ele sonha, sabe aonde quer chegar e só necessita de um direcionamento para não se perder entre os atalhos de um mundo cada vez mais armado e sobrepujado pela violência, influenciado pelo alastramento das drogas.

Entre lamentos, murmúrios e gemidos, um grito ecoa: “O PROFESSOR PODE ENCANTAR COM SEU ENCANTO OU, PELO MENOS, APROXIMAR A ESCOLA DA ESCOLA QUE SONHA?”.

20Com tantos desencontros, com tamanha desvalorização, é impossível o encanto pela profissão. Abordamos o extremo, e o motim é o alerta de que o sistema tem que arrebatar a máscara tectônica para acender os olhos de uma educação que avança às cegas, apalpando o inexistente na situação de se agarrar a um fragmento de novo e, assim, incitar o engatinhar de uma educação inclusiva e despertar a consciência dos gestores, pois a ferramenta mais eficaz para restringir as diferenças entre as classes de uma sociedade é uma educação inclusiva.

Só quem experimentou superações, fracassos, bullying e vitórias no planeta sala de aula tem ciência de que ser professor estabelece equilíbrio para desempenhar os ofícios de uma profissão na qual o seu agir significa vitória ou fracasso do outro — o aluno. Todavia, o próprio sistema não blinda esse profissional para arrostar os membros de uma sociedade invasiva, e este, por mais que se comprometa, prepare-se, dedique-se, granjeie conhecimentos intrínsecos à formação do seu cliente, na maioria das vezes fracassa… Desalentado, olha para trás e contempla o resultado do seu trabalho: nada!

Esse nada é o retorno de que ensinar não foi o suficiente; teria que adquirir competências para formar um indivíduo sem propósito… Mas como? Deu o melhor de si, explorou seu potencial cognitivo. Não foi o suficiente para inserir motivação num indivíduo sem ideais. Não desistiu, acionou suas competências e habilidades — inclusive socioemocionais — e não rompeu as barreiras elevadas por um ser que não tem presente nem planos para o futuro. Esses entraves levam muitos a compreender — ainda no princípio da jornada — que o caminho a ser trilhado deve ser desobstruído pelos responsáveis pela formação do humano — a família —, que não colaboraram no processo de desenvolvimento do aluno, para arquitetar uma estrutura mínima e facilitar seu acesso num espaço que estabelece o cumprimento de regras e o respeito aos limites do outro.

Assim, aprecia a identidade profissional ser destruída e reconstituída como um mosaico, e essa fragmentação aciona o primeiro magnetismo para elevar uma barreira que vem se tornando o maior entrave da profissão: o desinteresse. Como o concurso o aloca numa zona de conforto, o alvo qualidade é riscado da sua lista de propósitos. Daí por diante, pós-graduação, mestrado, doutorado e até ph.D. são, simplesmente, formações para impulsioná-lo no plano de carreira em busca de melhoria salarial.

A partir desse estágio, tudo que vem à mente é se aposentar, pois os múltiplos fatores se encarregam de reduzir o ritmo — sala de aula superlotada, ausência de suporte e aporte, inexistência de reconhecimento, valorização profissional. Muitos, no meio da caminhada, estão tão esgotados que deparam com dificuldades para interagir com os próprios colegas.

É surpreendente como o freio de mão da escola é acionado pelo sistema. Trava tudo. Esse bloqueio impede que ambições e ações sejam contidas, e sonhos são podados, alocando o professor num pedestal para que justiça e sociedade contemplem a escola de portas abertas, com salas de aula abarrotadas, geridas por professores cujas práticas são camufladas para cumprir um calendário estabelecido pela lei, e, como o papel recebe tudo, o diário é preenchido com rigor para que conteúdos e resultados salientem o cumprimento de metas. Notas asseveram que o rendimento foi satisfatório, convertendo o professor num fantoche que aprecia os seus alunos edificarem a própria aprendizagem por meio das tempestades de informações que desabam sobre a escola, sem conseguir organizar um processo que auxilie no desenvolvimento daqueles que buscam o caminho para crescer.

Assim, mais um ano se vai, mais um ciclo se conclui, e o professor não cumpriu o seu papel de mediador do conhecimento, pois os Salomãos gerados no seio familiar intitularam-se autodidatas, arquivando o professor como um robô incitador de interesses e, em casos alternados, arremessado no meio do picadeiro para ser zoado, para, tempos depois, ser arremetido nos bastidores; isso se uma bala ou uma facada não o alcançar no meio do caminho. Pois o mestre em mesclar resultados — o sistema — não se preocupa com críticas de órgãos internacionais, tampouco ouve os brados dos que clamam por educação.

A decepção de não desfrutar da escola que eu e você sonhamos é de uma dimensão que o reflexo dessa realidade está estampado no descontentamento, pois o professor não está em primeiro plano nos planos do governo, do sistema, da própria escola. Se fizermos uma análise dialética para compreender a relação professor-escola-aluno-sistema-família, asseveraremos que ela não existe, um suporta o outro para se cumprir a lei, e é exatamente pela inexistência de relacionamento entre os responsáveis na formação do humano, o humano sonhador — aluno —, que a construção de um saber que transforma realidades não sobrevém. Não sobrevém pelo simples fato de que a valorização — humana e profissional — é uma decorrência histórica. O que há são discursos fascinantes, imagens encantadoras apresentadas por um sistema que burla o processo ensino-aprendizagem para exibir números aos órgãos internacionais.

Professor é o instrumento essencial cujas atuações incluem, formam, motivam, projetam para o futuro… Assim, suporte, aporte, valorização, condições de trabalho é o mínimo que se deve oferecer para que a profissão que encanta com seu encanto acolha e projete sonhadores para o universo das realizações. Esse lance de o professor se autoposicionar na linha de fogo das guerras sociais e familiares só tem uma definição: servir de trincheira para um sistema que o usa como haste para ostentar a escola de portas abertas.

Essa escola que o nosso aluno sonha, se houver interesse, honestidade, pode ser real. A que se oferece é fake. O que ele sonha são direitos assegurados na nossa Constituição. Direitos que lhe asseguram uma escola que acolhe, pois, hoje, “esse que se acredita não ter mais jeito” pode não ser ninguém para uma sociedade sórdida e desbriada, mas a escola que ele sonha é que vai dar estrutura para que construa um amanhã de sucesso… A escola que ele sonha hoje é uma escola que o impulsiona a superar as barreiras familiares, sociais, os próprios fracassos, para romper as dificuldades e conquistar um futuro que somente uma educação de qualidade proporciona, pois a escola que ele sonha não apenas transmite conhecimento: prepara-o para a vida.

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