Edição 50

Matérias Especiais

O que Matemática tem a ver com leitura?

Maria da Conceição Ferreira

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Assim como na maior parte das avaliações internacionais de práticas e condições
de leitura de uma população ou de grupos sociais, também na composição
da pesquisa do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf) foram
introduzidos instrumentos para aferir habilidades matemáticas de uso cotidiano
dos jovens e adultos brasileiros. A preocupação com tais habilidades sugere
uma compreensão mais ampla das demandas e das oportunidades com que se
defrontam os que vivem em sociedades regidas pela cultura escrita. Os resultados
de pesquisas como a do Inaf nos ajudam a conhecer melhor as possibilidades
e os desafios da população na mobilização de conceitos, procedimentos
e critérios matemáticos para a compreensão do mundo em que vive e para a
resolução de seus problemas. A análise desses resultados pode produzir, ainda,
indicações importantes para orientar um trabalho pedagógico voltado para a
ampliação das práticas e das condições de letramento dos estudantes.

Por que avaliar habilidades matemáticas
em uma pesquisa sobre alfabetismo?
O que tem a ver a Matemática
com o letramento?

Informações sobre o índice de analfabetismo da população,
que se restringem à apuração de quantas pessoas são capazes
de “ler e escrever um bilhete simples”, embora relevantes,
são insuficientes. Com efeito, as práticas de leitura
demandadas pelas sociedades que se pautam na cultura
escrita são muito mais amplas, diversificadas e complexas
do que um bilhete simples. Por isso, tornou-se necessário
investigar com mais cuidado o fenômeno do alfabetismo,
para que se pudesse conhecer um pouco melhor as condições
e os recursos de que as pessoas dispõem para enfrentar
as demandas de seu cotidiano e identificar contribuições
que a escola poderia prestar para a democratização das relações
da população com o mundo da escrita.

É nessa perspectiva que o Instituto Paulo Montenegro e a
Ação Educativa realizam, desde 2001, uma pesquisa anual
para a construção do Inaf. Não se trata, entretanto, de
uma pesquisa escolar como o Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb) ou o Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem). A pesquisa do Inaf é realizada por entrevistadores
do Ibope, que se dirigem aos domicílios dos entrevistados
(de uma amostra representativa da população brasileira na
faixa etária entre 15 e 64 anos, composta de 2 mil pessoas,
estudantes ou não) para aplicar oralmente um questionário
e um teste.

Nos anos ímpares, o teste contém tarefas relacionadas a
contextos e objetivos práticos de leitura e escrita, provocadas
por uma revista de variedades criada especialmente
para essa pesquisa. As perguntas do questionário, por sua
vez, visam compor o histórico familiar e educacional dos
respondentes e realizar um levantamento relativamente
amplo de suas condições de acesso e uso de diversos bens
materiais e culturais e de suas práticas de leitura e escrita.

Nos anos pares, entretanto, o teste propõe aos entrevistados
tarefas que simulam situações da vida cotidiana em
que os sujeitos se veem obrigados a mobilizar habilidades
matemáticas, tais como leitura e escrita de números e de
outras representações matemáticas de uso social frequente
(gráficos, tabelas, escalas, etc.) ou a análise ou a solução de
situações-problema envolvendo operações aritméticas simples
(adição, subtração, multiplicação e divisão), raciocínio
proporcional, cálculo de porcentagem, medidas de tempo,
massa, comprimento e área.

Essas situações de leitura, análise e cálculo são propostas
oralmente pelo entrevistador, que recorre, ainda, à manipulação
de suportes conhecidos da população em geral, tais
como calendário, cédulas e moedas, folhetos de propaganda,
jornal, mapa e aparelhos simples de medida (relógio, fita
métrica, régua).

A resposta produzida pelo entrevistado é também comunicada
oralmente ou mesmo utilizando recursos gestuais
(apontar, por exemplo); uma única questão exige uma produção
escrita (anotar o número de um telefone). O entrevistado
pode, entretanto, na execução das tarefas, lançar mão
de recursos como lápis e papel e calculadora, que ficam à
sua disposição durante a entrevista.

Também no questionário que é aplicado nas edições do Inaf
que contemplam as habilidades matemáticas, foram acrescentadas
algumas questões relativas às oportunidades e demandas
de utilização de conceitos, procedimentos e mídias
mais relacionados à Matemática.

Por trás da decisão de incluir uma avaliação de habilidades
matemáticas num indicador voltado para o letramento, está
a consciência de que os modos de produzir, organizar, registrar
e avaliar o conhecimento, nas sociedades grafocêntricas,
são regidos por critérios estreitamente relacionados à quantificação,
à ordenação, à mensuração e à classificação, que,
assim, permeiam os textos e as práticas de leitura com os
quais a maior parte das pessoas se envolve cotidianamente.

Nesse sentido, as condições de letramento incorporam

o que se tem chamado de condições de numeramento, que
se voltam para as práticas sociais que mobilizam conhecimentos
associados aos números, às medidas, ao espaço, às
formas e às representações por meio de gráficos, tabelas
ou diagramas (o termo numeramento tem sido utilizado em
diversos trabalhos, com conotações variadas, mas sempre
remetendo à abordagem de práticas e conhecimentos matemáticos
relacionados a práticas sociais. A pluralidade do
numeramento reflete a diversidade de práticas sociais que
envolvem quantificação, medição, ordenação e classificação
em contextos específicos, estreitamente ligados aos valores
socioculturais que permeiam essas práticas).
sanja gjenero

O brasileiro é “bom de Matemática”?

Os resultados do Inaf em relação às habilidades matemáticas
devem ser analisados pelo que revelam das condições de
que o sujeito dispõe para compreender e/ou resolver situações
do dia a dia, e não como uma avaliação de competências
relacionadas à matemática escolar.

Estamos acostumados a ouvir pessoas dizerem, até sem
muito constrangimento, que não sabem nada de Matemática.
Essa declaração, em geral, não corresponde exatamente
à verdade; está menos relacionada às atividades que a pessoa
desenvolve no seu dia a dia do que a uma dificuldade
com a formalização da Matemática que se ensina na escola
e ao insucesso nas avaliações dessa disciplina — que pode
levar muitas pessoas a evitarem se dedicar a tarefas de cálculo
que se aproximem daqueles conhecimentos escolares.
Os resultados do Inaf, entretanto, apontam um índice de 2%
para o “analfabetismo matemático” da população brasileira
com idade entre 15 e 64 anos, o que poderia parecer relativamente
pequeno se comparado ao folclore sobre a incompetência
em Matemática instalado no discurso de tanta gente.
Mas, se pensarmos que esse grupo reúne pessoas que não
demonstram dominar sequer habilidades matemáticas mais
simples, como ler o preço de um produto numa propaganda
ou anotar um número de telefone ditado por alguém, esse
índice pode se revelar alarmante, considerando a situação
de exclusão a que a incapacidade de ler um número condena
milhares de pessoas neste país.

Há, ainda, outros 29% que apresentam um nível de habilidade
matemática bastante elementar, mas dos quais não se
pode dizer que não saibam nada de Matemática: são capazes
de ler números de uso frequente em contextos específicos
(preços, horários, números de telefone, instrumentos
de medida simples, calendários); porém, encontram muita
dificuldade em resolver problemas envolvendo cálculos, em
identificar relações de proporcionalidade ou em compreender
relações métricas ou representações matemáticas,
como tabelas ou gráficos.

A tomar pelos resultados do Inaf, a maior parte dos brasileiros
jovens e adultos (46%) já demonstra dominar completamente
a leitura dos números naturais, independentemente
da ordem de grandeza. São capazes de ler e comparar números
decimais que se referem a preços, contar dinheiro
e “fazer” troco. Também são capazes de resolver situações
que envolvem operações (adição, subtração, multiplicação
e divisão), mas só aquelas em que um único cálculo é necessário.
Esse grupo consegue identificar a existência de relações
de proporcionalidade direta (entre preço e qualidade
de produtos, por exemplo) e de proporcionalidade inversa
(como entre o número de prestações e o valor de cada uma
delas), mas ainda apresenta dificuldades na resolução de
problemas que envolvem cálculos com essas relações.

Desse modo, os resultados do Inaf 2004 indicam que apenas
23% da população jovem e adulta brasileira é capaz de adotar
e controlar uma estratégia na resolução de um problema
que envolva a execução de uma série de operações, inclusive
cálculo proporcional. É ainda mais preocupante a revelação
de que, somente nesse grupo, encontram-se os sujeitos que
demonstram certa familiaridade com medidas usuais de
comprimento, área, massa e capacidade e com representações
gráficas, como mapas, tabelas e gráficos.

O papel da escola

Se os resultados do Inaf revelam que a escolaridade é a variável
que mais influencia o desempenho dos sujeitos no teste,
não se pode, porém, deixar de identificar certos desvios
na relação entre a escola e a constituição de leitores — e, em
especial, em relação à capacidade de seus alunos de mobilizar
conceitos e procedimentos matemáticos para apreciar
e compreender o mundo e resolver os problemas que a vida
em sociedade lhes propõe.

Se as distribuições da população pelos diversos níveis de “alfabetismo
matemático” melhoram à medida que aumenta

o tempo de escolaridade dos sujeitos, ainda se flagram, todavia,
porcentagens nada desprezíveis de “alfabetismo matemático”
apenas elementar, mesmo entre pessoas com 8
anos ou mais de escolaridade.

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A identificação das questões com os menores índices de
acerto sugere, entretanto, não uma dificuldade para calcular,
mas para se elaborarem estratégias e se organizar e
controlar um plano de execução dos procedimentos para
resolver os problemas. Configuram-se como desafios também
as tarefas que supõem certa intimidade com modos de
organizar e divulgar informações, hoje frequentemente utilizadas
nos meios de comunicação de massa, como gráficos,
tabelas, índices e dados percentuais.

Essas dificuldades devem ser tomadas como alerta pela escola
sobre a necessidade de se desviar o foco de uma abordagem
ainda excessivamente preocupada com as técnicas
de cálculo para a construção de espaços de discussão de
estratégias diversas de resolução de problemas que, contemplando
questões do cotidiano — não como um reducionismo,
mas justamente em sua complexidade e multiplicidade
de fatores e expressões envolvidas —, possa revelar
possibilidades, e também limites, dos instrumentos e dos
critérios matemáticos para se compreender o mundo… e
transformá-lo.

Referências e indicações de leitura:

Sobre o Inaf:

Ação Educativa & Instituto Paulo Montenegro. 2º Indicador de
Alfabetismo Funcional. http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/
inaf02.pdf

Ação Educativa & Instituto Paulo Montenegro. 4º Indicador de
Alfabetismo Funcional. http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/
inaf04.pdf

FONSECA, Maria C. F. R. (Org.). Letramento no Brasil: Habilidades
Matemáticas. São Paulo: Global, 2004.

Sobre as relações entre Matemática e leitura:

NACARATO, Adair M. & LOPES, Celi E. (Orgs.). Escritas e Leituras na
Educação Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

NEVES, Iara C. B.; SOUZA, Jusamara V.; SCHÄFFER, Neiva O.; GUEDES,
Paulo C. & KLÜESNER, Renita (Orgs.). Ler e Escrever: Compromisso
de Todas as Áreas. Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 2000.

KLEIMAN, Ângela B; MORAES, Silvia E. Leitura e Interdisciplinaridade:
Tecendo Redes nos Projetos da Escola. Campinas: Mercado das
Letras, 1999.

Periódicos especializados em Educação Matemática:

Bolema – Boletim da Educação Matemática – Instituto de Geociências
e Ciências Exatas da Unesp – Rio Claro.

Zetetiké – Círculo de Estudo, Memória e Pesquisa em Educação
Matemática (Cempem) da Faculdade de Educação da Unicamp.

A Educação Matemática em Revista – Sociedade Brasileira de Educação
Matemática (SBEM).
Revista do Professor de Matemática – Sociedade Brasileira de Matemática
(SBM).

Fonte: Revista Leitura nº 2. MEC.

Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca é Doutora em Educação
pela Unicamp e coordenadora do Programa de Educação Básica de
Jovens e Adultos da Universidade Federal de Minas Gerais.

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