Edição 52

Livro da vez

Os da minha rua

Por Emerson Santana

Autor: Ondjaki

osdaminharuaUm belo livro da literatura angolana, Os da Minha Rua, de Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki, traz não um recorte, mas um verdadeiro diário de uma infância que, ao lermos, percebemos que não pertence apenas a ele, pertence também a nós, que guardamos, em nossa memória, os primeiros passos da construção de quem somos hoje. O livro é dividido em contos, e cada conto é uma passagem da memória do autor. Com uma escrita bem peculiar da literatura africana, cheia de sentimentos e memória, Ondjaki nos faz conhecer a sua vida, a sua terra e a sua cultura. É sob o seu olhar que vemos a importância de uma família no processo de formação de um cidadão e o quanto o africano prioriza isso. E, nas entrelinhas, vemos a leitura de mundo dialogar com o conhecimento científico e que, muitas vezes, nas brincadeiras no terreiro de casa, há tanta aprendizagem quanto na sala de aula. Aprende-se brincando.

Vi um sorriso pequenino na boca do tio Joaquim. Às vezes, ele aparecia no quintal sem fazer ruído e espreitava a nossa brincadeira sem corrigir nada. Olhava de longe como se fosse uma criança quieta com inveja de vir brincar conosco.

Não há castração na aprendizagem, há uma liberdade para se aprender com as coisas da vida.

Quando chegou o capítulo das relações sexuais, eu gostei muito daquelas fotografias do homem deitado todo nu com a mulher e da parte que dizia que, para fazer um filho, “o homem introduzia suavemente o pênis na vagina da mulher”. Eu nunca queria avançar esse capítulo. A minha mãe é muito querida porque ela sabia que já tínhamos passado aquele capítulo, mas deixou-me repetir a lição.

Os contos são sempre narrados em tempo cronológico e em primeira pessoa e mostram o processo de transformação da infância para a adolescência e todas as suas nuances, com certa singeleza que só a escrita de Ondjaki nos proporciona. No reviver da infância em sua obra, encontramos a influência
do mundo globalizado, as músicas e as telenovelas brasileiras, o cinema norte-americano, a Coca-Cola, fazendo parte do dia a dia de Luanda, uma cidade em transformação pós-independência.

Em Os da Minha Rua, avó Agnette é a experiência e a história de um povo. É por meio dos mais velhos que a tradição africana perpetua-se, através das histórias contadas por eles. O respeito pelos mais velhos faz parte da educação africana. Quando morre um idoso na África, acredita-se que parte da história se foi com ele.

[…] a avó Agnette continuava a partilhar as noites comigo, contando, inventando, alterando as estórias todas, as de antigamente, as do presente e as outras, como se o tempo fosse o saco de ar com bolinhas que ela gostava de rebentar, como se, às 2h da manhã — entre risos de cumplicidade, olhares de fascínio
que acendiam a madrugada, ternuras faladas como se fossem verdades de ofertar —, ela me dissesse, devagarinho, com a voz convicta e os factos arrumados caoticamente, que o futuro não era uma coisa invisível que gostava de ficar muito à frente de nós, mas antes […]

É um livro no qual as histórias são revividas através da escrita de um adulto, olhando para trás com o olhar de criança. Ondjaki conseguiu captar, na sua memória, não apenas partes de sua infância, mas a própria infância, e nos presenteou com essas belas narrativas tão suas.

Os da Minha Rua, escrito em língua portuguesa, traz fatos históricos e muitas expressões africanas, que levarão o professor de História a trabalhar as influências europeias sobre o povo africano, e o de Língua Portuguesa, a explorar as transformações da língua por meio do novo Acordo Ortográfico.
Cada disciplina poderá tratar dos aspectos que lhes são peculiares. Em Geografia, pode-se trabalhar o solo e o clima; em Ciências, as plantas que são próprias das regiões africanas. Porém, Os da Minha Rua é um livro para aqueles que apreciam literatura, independentemente de ser africana ou não, ou simplesmente gostam de se lembrar da infância.

Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. É prosador, poeta e artista plástico. Correalizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá Cresçam Pitangas, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos. Alguns livros seus foram traduzidos para o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio e sueco. É um dos escritores africanos em língua portuguesa mais lidos na atualidade.

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