Edição 78
A fala do mestre
Posso fazer a diferença…
Nildo Lage
Era o primeiro dia de aula da recém-formada professora Letícia. A estreia foi um desastre. Mal pisou no batente da porta, deparou-se com o caos: os alunos corriam, gritavam, agrediam-se. Completamente atordoada, parou diante do quadro e fechou os olhos, apenas ouvindo alaridos distantes. Tudo que desejava naquele instante era estar bem longe daquele lugar.
Abriu os olhos e se deparou com a turma derrubando cadeiras, jogando mochilas, bolas de papel… Havia materiais espalhados no chão… Num gesto involuntário, sentou e permaneceu estática.
Despertou abruptamente, quando a diretora bradou parada na porta:
— O que é isso?! Querem lançar a escola abaixo? E se dirigindo à professora:
— Vai permitir que esses “anjinhos sem asas” destruam tudo?
Prontamente, todos trataram de recolher o material no chão e procuraram os seus lugares.
Nos dias seguintes, as coisas foram se ajeitando, pois, à medida que os identificava, ia contornando os problemas — do seu jeito — e descobrindo, com o auxílio da experiente coordenadora pedagógica, o que fazer para reverter situações…
Mas João Vitor, um aluno de 9 anos, era uma exceção. Chegava silencioso, sentava na última fila e permanecia calado. Levantava tão somente para merendar e ao final das aulas.
Semanas se passaram, e Letícia não ouviu a sua voz. E o pior: ele não permitia uma aproximação.
Passou a observá-lo nos intervalos. Sentava-se no mesmo lugar, merendava e aguardava o toque do sinal.
Ao analisar a sua ficha, descobriu que havia repetido o segundo ano três vezes, e a psicopedagoga revelou-lhe que o problema do aluno era déficit de aprendizagem.
Numa terça-feira, saiu da sala dos professores para uma observação e divisou João Vitor sob a árvore, sentado na saliência de uma raiz que se tornou o seu ponto de preferência, com o olhar perdido no horizonte. Mas o que lhe chamou a atenção foram os seus olhos: brilhavam com uma intensidade que a impressionou, como se buscasse no horizonte um ponto de equilíbrio para sinalizar a própria existência.
Completamente sensibilizada, refletiu: “O que posso fazer para ajudá-lo?”.
Nos dias seguintes, mudou de estratégia. Sem que ele percebesse, foi se aproximando e, à medida que a confiança crescia, o seu desenvolvimento escolar prosperava, e, ao final do segundo semestre, já acompanhava a turma.
Entretanto, numa segunda-feira, ao entrar na sala, João Vitor lhe cravou os olhos com tamanha profundidade que a deixou desconcertada. Quando o sinal tocou para o recreio, todos saíram, e ele permaneceu na carteira.
— O que foi, João Vitor? — a curiosidade se excedeu. — Não vai merendar hoje?
— A sua blusa! — respondeu prontamente e elevou a cabeça para encará-la.
Letícia recuou estupefata ante o sorriso, a alegria refletida nos olhos do menino, como se despertasse de um terrível pesadelo, e conseguiu dizer, simplesmente:
— Vá merendar!
E afastou-se para a saída. Mas, antes que chegasse à porta, ouviu às suas costas um chamado ansioso:
— Tia!
Estacou e voltou-se sem interrogá-lo.
— Me dá essa blusa que você está usando de presente?
Achou a súplica um tanto esquisita, mas oscilou a cabeça num gesto afirmativo e, sem entender absolutamente nada, abandonou a sala.
Chegou à secretaria para requerer o endereço do aluno e se surpreendeu com a descoberta de que nenhum professor o queria na sua turma.
No dia seguinte, enrolou a blusa com papel de presente, pôs numa sacola de papel e se encaminhou para a casa de João Vitor.
Ao chegar, foi atendida por uma adolescente.
— Bom-dia! — sorriu simpática — Sou a professora de João Vitor, os seus pais estão?
— O papai foi trabalhar!
— E a mamãe?
A jovem elevou a cabeça para encarar a interlocutora, e uma lágrima desceu pelo seu rosto antes de responder:
— A mamãe faleceu!
A professora sentiu o chão fugir sob seus pés e, sem saber o que dizer nem o que fazer, contou até dez, controlou-se e perguntou:
— E o João Vitor?
— Está estudando! — sorriu forçada — Entra! Eu vou chamá-lo. — e se afastou.
Enquanto aguardava o aluno, olhou para uma estante, e o tremor que invadiu o seu íntimo foi tamanho que a sacola resvalou de suas mãos e caiu no piso: cravou o olhar num porta-retrato dourado, em que João Vitor estava ao lado da mãe, que usava uma blusa idêntica à que trazia consigo, somente naquele instante entendeu o motivo do pedido.
— Tia! — a alegria do menino ao vê-la era contagiante.
Atraiu-o para si num gesto carinhoso e o entregou a sacola.
Quando o menino viu que era a blusa, um radiante sorriso de alegria iluminou o seu rosto, e ele correu para o quarto.
No dia seguinte, João Vitor chegou à escola outro menino.
Ao final do ano, o seu desenvolvimento chamou a atenção da psicopedagoga, que indagou à professora Letícia:
— Qual o segredo para superar o déficit de aprendizagem do João Vitor?
— Não há segredo! Usei a metodologia que nunca falha e preenche a ausência de amor, carinho e respeito: atenção! — e concluiu: Muitas vezes, nos perguntamos: “Por que os professores sofrem?”.
— Por quê? — encarou a psicopedagoga, desafiadora.
A resposta silenciou a especialista:
— Porque, em meio à minha inexperiência, suplantar a própria dor, é direcionar um gesto de auxílio às dificuldades do aluno, auxiliá-lo na sua metodologia de aprendizagem. Os subsídios desse trabalho, de tão gratificante, atenuaram os absurdos do sistema e o baixo salário e me permitiu ser uma profissional melhor.
A professora sustentou o olhar desafiante e finalizou:
— O sofrer alertou-me para o fato de que, mesmo perante o descaso do governo, que não valoriza o meu trabalho, a inadimplência das famílias, as injustiças dos gestores e até o não querer aprender do aluno… POSSO FAZER A DIFERENÇA!