Edição 104

A fala do mestre

Que sociedade queremos FORMAR?

Apoiada nos PCNs e na LDB, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) responde claramente a essa pergunta: o objetivo é promover uma sociedade justa, ética, democrática, responsável, inclusiva, sustentável e solidária. A grande questão é: como fazer isso? Ao longo desses anos de prática pedagógica e de reflexão sobre livros didáticos, tenho defendido que a educação será mudada pela empatia, pelo sentimento, pelo envolvimento emocional. Do contrário, continuaremos formando cidadãos (talvez seja melhor usar humanos) competentes profissionalmente e incompetentes em suas emoções. Uma análise panorâmica da realidade atual nos mostra que esse direcionamento é inadiável. Mais ainda: é imperecível.

“Hoje é assim e será ainda mais daqui por diante. Hoje você é contratado por uma empresa por causa da sua competência técnica, mas é demitido por causa da sua incompetência emocional.”

No artigo passado, refletimos sobre alguns aspectos do uso de recursos tecnológicos em sala de aula. Na ocasião, defendemos que de nada adianta comparar épocas, pois temos uma inclinação natural para acentuar o pessimismo, o que nos leva a pensar que viver antigamente era melhor em muitos aspectos. Isso é um equívoco. Essa questão foi muito bem abordada pelo filósofo e educador Mario Sergio Cortella em seu livro Não nascemos prontos. No artigo O futuro saqueado, Cortella defende que estamos admitindo e promovendo o apodrecimento da esperança nas novas gerações ao apontar o dedo inquisidor para tudo o que fazem, gostam ou defendem. Esse terror é envolvido em uma atmosfera de fatalidade que indica a impossibilidade de se alterar essa rota coletiva. Dessa forma, “As novas gerações começam a acreditar no mais ameaçador perigo para a convivência gregária e a solidariedade: o individualismo exacerbado”. Então os jovens passam a exaltar um carpe diem extremado, entregando-se a um hedonismo sem freios. Dedicam-se à curtição de tudo o que puderem, no menor tempo possível, pois a vida é breve e sem sentido e tudo o que lhes resta é o momento. Ou seja: para eles, não há passado nem futuro. Estacionados no presente, estão vivendo um saque antecipado do futuro.

Aproximadamente um século atrás, a população brasileira era predominantemente rural, mas rapidamente se urbanizou. Dia após dia, os apartamentos foram substituindo as casas, e as crianças deixando de brincar na rua para brincar dentro dos prédios. Agora “brincam” sozinhas com o celular, assistindo a vídeos em que outras crianças brincam. Exatamente: youtuber mirins mostram a outras crianças como deveriam brincar se fossem mesmo brincar um dia. Hoje, a maior parte das crianças cresce sem conselhos, sem limites, sem frustrações. Estamos diante de uma geração de alunos que têm muita informação, mas que não têm colo de pai e mãe para conversar. Por esse motivo, observamos que os adolescentes, quando se encontram, se abraçam, se beijam, se tocam, se curtem, porque em casa falta afeto. Têm milhares de amigos virtuais nas redes sociais e um ou dois amigos reais. Nesse contexto de solidão, o afeto é fundamental. Eles dizem claramente que aprendem mais com o professor afetuoso, que cativa. Das dez competências gerais da BNCC, quatro são puramente socioemocionais: autonomia, autogestão, empatia, cooperação. Hoje é assim e será ainda mais daqui por diante. Hoje você é contratado por uma empresa por causa da sua competência técnica, mas é demitido por causa da sua incompetência emocional. Se o namoro acaba, eles se acham incapazes de amar novamente e se matam. Sabem resolver problemas matemáticos tendo em vista as dez últimas provas do Enem, do ITA, do IME. Mas não sabem lidar com os problemas do mundo real. Essa geração vive em uma busca excessiva pelo prazer, mas não sabe que tudo que é excessivo é patológico. Acreditam que têm de ser felizes a qualquer custo, que não devem sofrer. Resultado: estão completamente despreparados para o desprazer, para qualquer tipo de sofrimento, frustração.

O jovem acorda com uma tristeza, um problema, uma angústia e fica intolerante. Em vez de enfrentá-lo, de chamá-lo para uma conversa franca, os pais preferem bisbilhotar suas coisas em busca de drogas. Na impossibilidade de diálogo, levam-no ao psiquiatra, que, em dez minutos, diagnostica uma depressão, afinal os sintomas são os mesmos: falta de prazer, tristeza, desânimo, indisposição, insônia, isolamento. Provavelmente ele sai da consulta com uma receita de antidepressivos. Mas ele não está com depressão. Pode ser angústia por um relacionamento, insatisfação com o corpo, frustração amorosa. Isso não é depressão. Isso é vida. Viver é ser feliz e sofrer também, mas ninguém disse isso a ele. Não se toma antidepressivo para problemas, mas os jovens de hoje estão tomando. Pior: estão se drogando de variadas formas em busca de prazer. Isso é um problema grave que, como professores, precisamos enfrentar. Logicamente no âmbito que nos compete.

Sabemos que não formaremos uma sociedade justa, ética, democrática, responsável, inclusiva, sustentável e solidária somente repassando conteúdos. Sabemos, também, que não é a BNCC ou qualquer outro documento que vai mudar a educação. Ela será mudada quando a escola começar a ensinar e praticar a empatia, o envolvimento emocional, a caridade, o amor. Mais: a escola precisa ensinar os alunos a lidar com o desprazer, com a frustração, complementando um trabalho que deve ser feito também em casa. Se os pais não impõem limite aos filhos, a escola precisa limitá-los no que lhe compete. Essa problemática está na base de muitos dos dilemas educacionais contemporâneos, como a proibição ou liberação do uso do celular na sala de aula. As competências socioemocionais são imperecíveis. Nossos alunos irão para o mercado de trabalho em 2030, 2035. Precisamos prepará-los para lidar com este porvir, que será muito diferente do mundo de hoje. Viverão aproximadamente 120 anos. Essas competências são o que podemos ensinar hoje que lhes será útil em 2100, quando estiverem velhos.

As sociedades humanas estão em constante mutação, e o apego ao passado nos faz ignorar as benesses dos tempos atuais. Anos atrás, todo o tempo das aulas era utilizado para repassar informações e exercitá-las. A escola era a única agência capacitada para essa função. Hoje esse modelo é inviável. Vivemos uma época marcada por um acúmulo tão grande de informações que o nosso papel em sala de aula mudou. Basicamente não devemos mais repassar conteúdos, mas ajudar nossos alunos a aprender. Boa parte das informações chega até eles sem a nossa intervenção. Assim, nosso papel é ensinar a selecioná-las, testá-las, aplicá-las em situações reais de aprendizagem.

Meus amigos, quem ensina com amor, além de fazer caridade para si, deixa indeléveis marcas de esperança e alegria no coração e na memória dos outros. A escola que foca somente em resultados, notas, competitividade está perdendo a oportunidade de desenvolver um trabalho realmente útil para o futuro. Tenho um amigo, professor, que trabalha em uma escola com esse perfil e onde a maioria dos alunos é extremamente “pobre”. Certa vez, em desabafo, ele me disse: “Lécio, eles são tão pobres que a única coisa que têm é dinheiro. Mais nada”.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental. E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

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