Edição 53

Espaço pedagógico

Reflexões sobre intervenção pedagógica nas crianças marcadas pelo autismo

Anamaria Vasconcelos ¹
Ana Laudemira de Farias Alencar ²

construir_img_cuidar_edu

A intervenção pedagógica nas crianças com necessidades educativas especiais, particularmente o autismo, sempre foi inspirada em metodologias importadas de outras disciplinas. Nada contra articulações com outros saberes, mas pensamos que o uso exclusivo dessas metodologias por alguns educadores fragiliza o campo pedagógico e, ao mesmo tempo, coloca a criança numa posição cada vez mais acentuada de “estrangeira” na escola, tornando inacessível sua educação.

¹ Psicóloga; psicanalista; membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise/Seção PE; idealizadora e coordenadora do projeto Saúde na Escola: Tempo de Crescer; assessora técnica da Prefeitura Municipal de Olinda e do Recife/Secretaria de Educação/Educação Especial.

² Pedagoga; consultora em Pedagogia da ONG Tempo de Crescer – TCER; consultora da Fundação Roberto Marinho. Pensamos que a articulação da educação com outros saberes deve ser feita no sentido de situar conceitualmente a criança e sua dificuldade no desenvolvimento.

Considerando ainda as repercussões da importação metodológica no campo pedagógico, não podemos deixar de ver que esta vem como resposta a um pedido angustiado, comumente feito pelo professor, ao se deparar com a pouca atenção ao outro que a criança marcada pelo autismo dedica. A reação é a busca tendenciosa de métodos tão “estrangeiros” quanto parece aquela criança ao professor.

Entendemos, através da experiência acumulada ao longo de dez anos do projeto Saúde na Escola: Tempo de Crescer – PSTC³, que a escolarização de uma criança marcada pelo autismo requer do professor responsável a criação de espaços de escuta, bem como a implicação de todos que fazem parte da escola. Tais intervenções visam assegurar o espaço infantil para as crianças, além de provocar um novo olhar sobre as mesmas e levar o professor a buscar referenciais de educação.

E, assim, concordamos com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil quando ele assegura a necessidade das articulações com outras áreas, sem deixar de delimitar o papel do educador ao dizer: Compreender, conhecer e reconhecer o jeito particular de as crianças serem e estarem no mundo é o grande desafio da Educação Infantil e de seus profissionais.

Embora os conhecimentos derivados da Psicologia, Antropologia, Sociologia, Medicina, etc. possam ser de grande valia para desvelar o universo infantil, apontando algumas características comuns de ser das crianças, elas permanecem únicas em suas individualidades e diferenças (1998, pág. 22).

³ PSTC – Projeto desenvolvido pela ONG Tempo de Crescer em parceria com a Unicef em quatro municípios da Região Dessa maneira, a Psicanálise tem sua contribuição a dar na escolarização da criança marcada pelo autismo. Eric Laurent, no livro A Sociedade do Sintoma (2007), reafirma os ensinamentos da Psicanálise desde Freud e contribui para um maior esclarecimento sobre o universo infantil, assim como o da criança marcada pelo autismo. Ele assinala que o desenvolvimento humano não opera por simples automatismo biológico nem se organiza por funções musculares ou fisiológicas, mas, sim, pelas marcas simbólicas que o afetam. Essas marcas simbólicas são operadas por um outro através de seu discurso, à medida que vai nomeando o mundo, ofertando palavras. Esse discurso que se faz em torno da criança ajuda a integrá-la e, assim, a apropriar-se do corpo e da linguagem.

Como nos lembra Laurent, a criança marcada pelo autismo e pela psicose infantil apresenta uma inapropriação do corpo e da linguagem. Um parto ou uma gravidez difícil, algumas doenças genéticas e alguns traumatismos somáticos podem ser pontos de partida para uma estruturação no autismo.

Portanto, cabe-nos perguntar: qual o referencial curricular que responderia às necessidades de uma criança que não tem construído um nome próprio, ‘‘ não sabe dizer o que sente e cujo corpo padece de uma inapropriação? Não foi sem surpresa que, diante dessa pergunta, nos deparamos com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que traz a concepção de uma aprendizagem baseada na construção de vínculos e de um nome próprio.

Diz o referencial:

As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio. Nas interações que estabelecem desde cedo com as pessoas que lhes são próximas e com o meio que as circunda, as crianças revelam seu esforço para compreender o mundo em que vivem, as relações contraditórias que presenciam e, por meio das brincadeiras, explicitam as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos.

No processo de construção do conhecimento, as crianças se utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade que possuem de ter ideias e hipóteses originais sobre aquilo que buscam desvendar. Nessa perspectiva, as crianças constroem o conhecimento a partir das interações que estabelecem com as outras pessoas e com o meio em que vivem. O conhecimento não se constrói em cópia da realidade, mas, sim, fruto de um imenso trabalho de criação, significação e ressignificação (1998, págs. 21 e 22).

Por outro lado, a Educação Infantil surge a partir de mudanças econômicas, políticas e sociais que ocorreram na sociedade: pela incorporação das mulheres à força de trabalho assalariado; pela organização das famílias; pelo novo papel da mulher; pela nova relação entre os sexos, que provocou novas reflexões sobre o que é ser criança. Foi identificada como um conjunto de ideias sobre a infância, sobre o papel da criança na sociedade e sobre como torná-la, através da educação, um indivíduo produtivo e ajustado às exigências desse conjunto social. Tais xigências vieram a fazer com que muitas práticas discriminatórias fossem exercidas em nome do que seria “certo”, “normal”, “adequado”, em relação a condutas humanas, levando à exclusão ou segregação, pelo discurso, das crianças marcadas em seu desenvolvimento, como é o caso do autismo. Como reflete Alberto L. Merani:

Não é o saber ou o saber fazer fulcro da ação educativa; é a criança que deve ser preparada para viver com os seus semelhantes. E, para formar esse homem, tanto como corpo, como espírito; tanto como produtor, como cidadão, requere-se, antes de mais nada, possuir uma verdadeira psicologia da criança. Não das suas atividades, das suas reações a estímulos, da afetividade unicamente, mas, de maneira clara, dos passos da estruturação do pensamento, se vai atuar sobre os restantes aspectos da vida do educando, do adolescente e do homem futuros (1999, pág. 5).

Temos assistido a uma enorme revolução na construção e na reprodução de teorias de aprendizagem para fazer com que as crianças marcadas pelo autismo aprendam. Também há uma grande preocupação em estabelecer leis e novas estratégias para a Educação Especial, e, assim, faz-se mister olhar para o valioso instrumento construído pelos profissionais da educação no Brasil: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que regulamenta como deve ser o atendimento a todas as crianças nos seus primeiros anos de escolaridade.

Diante disso, entendemos que a forma de fazer com que a criança marcada pelo autismo desenvolva sua potencialidade é tratando-a como criança. A criança, antes de ser marcada pelo autismo, é criança, e, por assim ser, a infância, enquanto tempo, tem urgência em sua vida.

Ensina-nos Miguel Arroyo, em entrevista concedida a Adriano Guerra e publicada em Revista Criança, nº 41/MEC: “Minha definição é que tenhamos uma proposta de educação para a infância que respeite seu tempo e trabalhe a totalidade de desenvolvimento nesse tempo…”.

Nesse caso, para onde se destina a execução das propostas pedagógicas? Onde está a escola? Que lugar tem ocupado enquanto instituição responsável pela educação e pelo cuidado das crianças? A partir das práticas de observação exercidas no projeto Saúde na Escola: Tempo de Crescer, pôde ser constatado que essas crianças necessitam estar nas escolas sendo convocadas para estabelecer contato com o meio exterior, rompendo com a relação restrita à família. Como diz Leny Mrech:

A Pedagogia é estabelecida através da linguagem e da fala. Os contornos ficam imediatamente atrelados à própria constituição desses fatores. São eles que determinam os rumos e a composição. Em suma, a teoria e a prática pedagógicas são efeitos da linguagem e da fala. A primeira revela-se num discurso estruturado; e a segunda, como um discurso em estruturação (1999, pág. 4).

Na escola, a criança tem a oportunidade de interagir com as pessoas e as coisas do mundo que vai levando-a a atribuir significados àquilo que a cerca. A educação deve fazer com que a criança passe a participar de uma experiência cultural que é própria do seu grupo social, ou seja, como sujeito que vive num momento tal qual o seu, em que predominam o sonho, a fantasia, a afetividade, a brincadeira, as manifestações de caráter subjetivo.

construir_img_cuidar_edu3

A infância tem que ser mais do que um momento de passagem, que precisa ser apressado, rigoroso, com experiências de “escolarização precoce”, com lápis grafite e papel, atividades realizadas à mesa; o cerceamento do corpo; a distribuição das atividades; as rotinas repetitivas pobres e empobrecidas; a alfabetização ou a numeralização antecipada ao prazer de machucar o jornal, fazer bolinhas de papel, derrubar os garrafões de boliche, contar a história com o livro de cabeça para baixo, amassar a massinha de modelar tão esperada; o parque; a correria; melar a mão, a farda e o amigo de tinta; a música; a dança; a arenga pelo lugar perto da professora; enfim, o “chão da escola”.

É preciso que a escola contribua com a construção do nome próprio da criança em questão, de maneira que se apresente tão prazerosa e atrativa a ponto de ela se sentir à vontade para substituir o prazer de movimentar o objeto, de isolar-se em si mesmo, por estabelecer vínculos através da imitação, do brincar, do faz de conta, da oposição, das escolhas. Vygotsky diz:

O desenvolvimento das estruturas mentais especificamente humanas só vai acontecer pelo relacionamento com o outro (na infância, a importância da brincadeira com os pares…) e pela linguagem, que é a maneira pela qual nos comunicamos e através da qual a criança reconstrói, individualmente, aquilo que internalizou. O brinquedo é uma importante fonte de promoção do desenvolvimento. A criança, ao brincar, ou mesmo em qualquer outra atividade, jamais pensa em termos de futuro, ela é imediatista. Por isso, é muito sério para ela a interrupção de uma brincadeira. Através da brincadeira, a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ligada às motivações internas (1997, pág. 28).

A criança nos desafia com a lógica que é toda sua, porque encontra maneiras peculiares e muito originais de se expressar. É capaz, através do brinquedo, do sonho e da fantasia, de viver num mundo que é apenas seu. Outro desafio que as crianças nos fazem enfrentar é o de perceber o quanto são diferentes e que essa diferença não deve ser desprezada nem levar-nos a tratá-las como estrangeiras e incapazes.

Para isso, contamos com os Parâmetros e Referenciais Curriculares da Educação Infantil, nos quais o educar e o cuidar têm de ser vistos de maneira indissociável. Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender, para nós, é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito (Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia).

Referências Bibliográficas

CRAIDY, Carmen; KAERCHER, Gládis E. Educação Infantil: pra Que te Quero? Porto Alegre: Artmed, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREUD, Sigmund. Conferência XXXIV (1932–1936). In: Obras Psicológicas Completas. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago. v. XXII.

LAURENT, Éric. A Sociedade do Sintoma: a Psicanálise, Hoje. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007.

MRECH, Leny Magalhães. Psicanálise e Educação: Novos Operadores de Leitura. São Paulo: Pioneira, 2003.

LIMA, Samarone: Saúde na Escola: Tempo de Crescer. Recife: Unicef, 2004. (Coleção Faz e Conta).

TELES, Maria Luísa Silveira. Socorro! É Proibido Brincar. Petrópolis: Vozes, 1997.

cubos