Edição 60

Espaço pedagógico

Temos que mudar nossas relações

Talvez hoje seja mais difícil nos relacionarmos. Não é fácil lidar com o comportamento das pessoas de se enxergarem simplesmente como consumidoras, esperando do outro um comportamento igual. As relações vão se procedendo como relações de consumo, mas são relações entre pessoas, não entre coisas. Que consequências isso traz?

Falamos sobre essa questão com Bianca Sordi Stock, psicóloga clínica, mestranda em Psicologia Social pela UFRGS, tutora de Saúde Indígena e professora da Unisinos, Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: biancastock@gmail.com.

Mundo Jovem: Por que as pessoas têm preocupação com a questão das relações humanas?

Bianca Stock: O que chama a atenção, e que encontro muito no consultório, é a dificuldade de lidarmos com a parcialidade. A lógica do mercado é esta: esperamos que o objeto cumpra uma satisfação total, que ele satisfaça um todo, tudo aquilo que o nosso desejo está pedindo e que falta. Então, comprando o objeto, esperamos que ele nos sacie. Quando ele não é mais suficiente, trocamos. 

Repetimos isso no cotidiano: esperamos do outro que ele seja total, que ele satisfaça todas as nossas expectativas. E, quando isso não ocorre, é uma frustração imensa. Há uma dificuldade de lidar com a parcialidade, admitir que há falhas, que nada nos preenche por completo. Mas temos essa expectativa. E também nos sentimos no compromisso de fazer o outro feliz em sua totalidade. Por isso, a relação fica complicada; torna-se uma relação de submissão ou de uma autoridade excessiva. O amigo tem que ser o amigo perfeito, o namorado tem que ser perfeito e tem que realizar todos os desejos. Isso gera outra coisa, que também é característica do mercado: a competição.

MJ: Então isso dificulta as relações humanas hoje?

BS: É o que constato. Se temos que ser um objeto total, cumprir com todas as expectativas, isso é da ordem do impossível. E, quando não conseguimos, a frustração é muito grande. Uma das saídas é o isolamento. Como eu não consigo ser esse objeto total, prefiro me isolar. Conviver é difícil, é lidar com os conflitos, lidar com a parcialidade mesmo. Por isso, precisamos encontrar dispositivos de convivência, temos que fortalecê-los. E talvez o Mundo Jovem seja um desses dispositivos, colocando as questões na roda, promovendo espaços de convivência e ajudando a lidar com os conflitos. Assim é que conseguimos ser um pouco mais espontâneos, mais presentes e mais verdadeiros nas relações. O grande desafio é fortalecer os espaços de convivência onde se criem oportunidades para esta outra aprendizagem, que não é só cognitiva, mas é a aprendizagem dos afetos. Os espaços de convivência estão cada vez mais empobrecidos. Temos que questionar se os existentes são realmente de convivência.

MJ: Onde o adolescente e o jovem aprendem a se relacionar? 

BS: É legal aprender desde pequeno. No espaço da família, a criança vai aprender que a mãe é suficientemente boa, mas também falha, porque ela não é perfeita, não é total. Ela apresenta essa parcialidade. Assim, também se dá à criança a possibilidade de ela ser parcial. Ela não precisa ser perfeita e corresponder a todo um ideal que a família tem. Esse seria um ambiente legal, saudável, que permitiria o crescimento emocional e a percepção das limitações. A criança pode se deparar com todas as limitações do ambiente, que vai apresentar desamparos, que não vai ser totalmente acolhedor. E, na escola, também deveria ser assim. Mas, nessa lógica de consumo, de competição, a escola tem que ser total, desde a Educação Infantil. A criança vai crescendo, e, durante todo o percurso escolar, o grupo de amigos tem que ser um grupo de amigos total. Temos que mudar essa lógica e criar a possibilidade de exigirmos um pouco menos, ter um espaço de menos exigência de perfeccionismo. Se entramos na lógica de ser um objeto de desejo que nunca vai mostrar as falhas (típico das propagandas), também vamos ensinar aos jovens que eles têm que esperar isso das suas relações. E que o amigo, o pai, a mãe, a escola, a universidade, enfim, todos os espaços têm que ser o objeto da propaganda, aquele que, depois de um tempo, não vai apresentar um defeito.

MJ: Que espaço de convivência os jovens podem criar?

BS: É uma interação de vários lugares. Está dado que a Internet e os meios virtuais são uma realidade. A gente tem que dar um basta em demonizar isso e em achar que é por aí que os jovens estão se perdendo. Temos que olhar para isso de outro jeito. 

Acompanhando-se experiências virtuais junto aos jovens, vê-se que ali pode ser um lugar, pelo anonimato muitas vezes, de colocar a parcialidade ou mesmo de mostrar toda a potencialidade que eles têm, não tendo que corresponder a uma identidade dada. Talvez, no meio virtual, eu tenha a liberdade de ser muitas coisas. É importante não pensar só os meios onde a gurizada convive e que talvez possam estimular a drogadição ou os comportamentos promíscuos, ou de não cuidado, ou encontros tristes. 

Precisamos nos perguntar o que se passa. Um jovem que faz uso de algum tipo de droga de maneira abusiva busca sempre, nessa substância, uma satisfação total. Talvez repensarmos o jeito como estamos lidando com as relações, fazendo acontecer as novas relações, seja mais importante do que tolher ou cercear esses ambientes. Se esperarmos do outro uma satisfação total, vamos esperar também de uma substância uma satisfação total. Vivemos numa sociedade de comportamento de “adição”, em que se quer sempre mais e nada é suficiente. Tenho que consumir mais roupas, consumir mais eletrônicos, consumir mais do outro, porque não consigo viver a experiência do desamparo. Não consigo conviver com o fato de que estar no mundo é um negócio muito complicado e de que temos que aprender a viver um pouco a solidão também. 

MJ: A falta de referências de espaços coletivos pode ser responsável pela situação de dificuldade nas relações?

BS: Com certeza. E acho que esses ambientes de convivência dão a oportunidade de se viver algo que está se perdendo, que são os acontecimentos com início, meio e fim dentro do nosso tempo. E essa experiência dos acontecimentos totais é muito interessante para pensarmos até nas relações amorosas. Para podermos conhecer, experimentar, nos colocar para o outro, tentamos criar uma ficção para a conquista; mas chega o tempo em que saímos disso e vamos mostrando o quanto não podemos algumas coisas e percebendo que o outro também tem várias coisas que não consegue fazer, e viver é isso. Se terminar, terminou; é preciso conseguir colocar um ponto final. Essa deveria ser a tônica tanto na experiência amorosa como em qualquer outra: de cognição, de aprendizagem. 

MJ: Os preconceitos e as intolerâncias entre grupos sociais também atrapalham as relações humanas?

BS: Os conflitos étnicos estão batendo em nossa porta cada vez mais, e vamos ter que nos deparar com isso. O silenciamento de todos em relação a uma Educação que marca os saberes e os nossos fazeres também na prática profissional; o silenciamento quanto à alteridade; ao não perceber a multiplicidade que é esse país… E aí vemos até quem trabalha numa outra perspectiva de inclusão social, que imagina outra sociedade possível, também, muitas vezes, sendo conivente com esse silenciamento. E agora temos que olhar para isso. E aí surge essa angústia de não poder se refazer na multiplicidade, de não poder se refazer com aquilo tudo que podemos ser. Talvez, então, possamos pensar nessas lógicas do contemporâneo: “ou eu sou isso ou eu sou aquilo”, ou sou homofóbico ou sou homossexual. Essa lógica vai pautando todo o tempo as nossas relações. Como é que podemos pensar de outro jeito? Pensar “e isso, e aquilo…”.

MJ: E como se aprende isso?

BS: Para trabalhar numa perspectiva de um outro jeito de se relacionar, não basta ir só pela via da cognição, no sentido de ensinar o outro a se relacionar. Isso é onipotência. Temos que ir pela via da experiência. É na relação que se fazem as transformações. Talvez tenhamos que sublinhar isso. Se tivermos uma experiência com um outro jeito de nos relacionarmos — de maneira que não gere tanto sofrimento —, que seja para criar ambientes de experiência em todos os lugares em que a juventude passe, e que as experiências não sejam só uma passagem vivida superficialmente, que criem sentido mesmo.

MJ: Ensaiar o relacionamento na escola 

BS: Penso que as relações humanas dentro da escola começam com um desafio para o educador. Talvez ele tenha que pensar primeiro em si próprio, se ele não está exigindo dos jovens esse comportamento de consumidor, se ele não está exigindo um aluno-produto a ser bem vendido para a coordenação e para os pais.

O educador tem que começar daí e horizontalizar as relações: colocar não só o jovem como alguém que tem que aprender, mas colocar também os adultos que fazem o acompanhamento nessa fase em que o jovem precisa de cuidado e acolhimento para aprender, junto com eles, a se relacionar de outro jeito. Isso significa exercitar a escuta, escutar de fato o que o outro diz, e não ficar mergulhado num narcisismo do “só o que eu penso está certo”. Promover um espaço onde o jovem possa, de fato, falar, onde ele vai ser escutado, pois a escuta possibilita entrar no universo do outro.

Não dá para colocar o conflito debaixo do pano. Ele deve ser trazido como um conteúdo escolar, para além da disciplina que o professor está ministrando. Por exemplo: como transformar num acontecimento total uma agressão entre dois alunos? Como superar a própria onipotência, parar a aula e fazer dali um espaço de aprendizagem de afetos? Não posso exigir do aluno que ele tenha outro tipo de comportamento, que repense suas relações se, dentro da sala de aula, não tiver espaço para isso. E aí é uma questão de mudar um pouco a dinâmica escolar, repensar isso com um grupo de professores, com toda a comunidade escolar; perceber que a Educação deve ter um outro tempo, porque hoje se exige um tempo para se relacionar. Mas não se pode esquecer que a escola é uma instituição. Hoje, as instituições estão aí para civilizar a gente. A escola tem que se colocar nesse lugar também. Não é a questão só de punir ou não punir o aluno, mas de como conseguir criar, dentro da escola, esse ambiente de civilização. Pode haver uma assembleia de pais, um espaço para eles participarem da construção das regras da escola, mas, no momento de exercer uma autoridade, que não é autoritarismo, devem-se fazer valer as regras que existem dentro daquele espaço de convivência. Não seria positivo correr o risco de deixar alguns pais subverterem esse lugar ou desautorizar a fala do professor.

As regras podem ser construídas coletivamente e de maneira clara e dentro de um processo. E daí todos se comprometem com elas, inclusive os alunos. Na escola Santa Inês, em Porto Alegre, num processo de dois anos, foi feita a construção das regras e dos princípios de convivência na escola. É impressionante o quanto isso, de fato, pega entre os alunos. Por exemplo: a escola fez uma gincana do Ensino Médio. Cada turma representava um país. Eles tinham que convidar uma turma de primeira a quarta série do Fundamental para fazer a dança do país. E eles tiveram que dançar juntos, grandes e pequenos. Com isso, criou-se a oportunidade de se conhecerem e se reconhecerem no outro, apesar da diferença de idade. E isso foi muito positivo. 

Mundo Jovem – Um Jornal de Ideias. 
Ano 49, nº 414. Março de 2011.

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