Edição 115

A fala do mestre

A finalidade da vida é voar

Lécio Cordeiro

A maior parte das gaivotas não se preocupa em aprender mais do
que os simples fatos do voo — como ir da costa à comida e voltar.
Para a maioria, o importante não é voar, mas comer.
Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota

Na épica fábula do norte-americano Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota não era uma ave vulgar. Diferentemente das outras gaivotas, que preferiam comer a voar, ele preferia voar. Mas era muito desajeitado. Isso fazia com que não fosse aceito no grupo. Não obstante, Fernão insistia em aprender a voar com perfeição técnica, examinando cada movimento e refletindo sobre seus próprios erros. Tudo sozinho. Estava seguro de que, desse modo, além do próprio prazer de voar, conseguiria se alimentar de peixes frescos, não dos restos deixados na praia pelos pescadores, como o faziam as outras gaivotas. O pai tentou dissuadi-lo com sua ótica materialista: “Não esqueça que a razão por que você voa é comer”. Mas, independentemente do desprezo que os pais e as outras gaivotas lhe dedicavam com profundo desamor, o pequeno Fernão persistiu e, ao final de muito treino, esforço e solidão, conseguiu realizar um voo incrível, como se fosse um falcão. Ficou ansioso por ensinar às outras gaivotas o que aprendera, mas não lhe deram oportunidade. Convocado pelo ancião do grupo em assembleia, Fernão Capelo Gaivota pensou que seria homenageado por sua honra, mas, na verdade, foi banido do grupo, condenado a solidão dos Penhascos Longínquos. Afinal, a finalidade da vida é comer, não voar.

Exilado, Fernão Capelo Gaivota não sentiu medo. O contrário: decidiu aproveitar a oportunidade para aperfeiçoar ainda mais sua técnica. Então, viu-se diante de um velho sábio, uma gaivota que fora banida do grupo havia muito tempo. Ele o tomou como um de seus alunos e passou a lhe ensinar a voar com cada vez mais perfeição. Dali em diante, tudo ficou mais fácil para Fernão, pois não estaria mais só, aprendendo a voar pelo cansativo método de tentativa e erro. Na presença do sábio professor, ele se tornou um aprendiz e, certo tempo depois, passou do desejo legítimo de aprender ao desejo sincero de ensinar. Assim, tão logo o mestre se foi para o outro mundo, ele estava diante de um grupo de alunos movido pela intenção de torná-los gaivotas melhores, que pudessem, enfim, retornar para o grande grupo de onde haviam sido banidos algum dia justamente porque, como ele, quiseram voar mais alto. Alguns alunos se angustiaram com o desafio, pois, segundo a lei do bando, nenhum banido regressava, e a lei não fora quebrada havia dez mil anos. A lei dizia: “Fiquem”. Fernão dizia: “Vão”. A lei dizia: “A finalidade de voar é comer”. Fernão ia mais alto: “A finalidade da vida é voar”. A todo momento, lá estava ele ao lado de cada um dos seus alunos, demonstrando, sugerindo, instigando, conduzindo. Suas palavras tinham o poder de elevá-los, de mostrar que podiam ir mais alto. Logicamente, a ação do professor não se encerrava apenas nas palavras. Ele voou com eles através da noite, da nuvem e da tempestade, por puro prazer, enquanto o bando de gaivotas medíocres se encolhia miseravelmente no solo, alimentando-se dos restos.

A moral da história de Fernão Capelo Gaivota pode ser resumida em um pensamento do próprio Bach: “Enxerga mais longe a gaivota que voa mais alto”. É uma obviedade, mas muitos de nós esquecemos isso. É impossível ver o horizonte quando estamos no abismo. Isso é um lamento, porque, nessa metáfora, o horizonte representa a esperança. É nesse ponto que entra a força das palavras. Afinal, elas tanto podem afundar na lama dos pensamentos quanto podem trazer à luz. Mais ainda: as palavras podem trazer à vida ou levar à morte. Meus amigos, como professores, nosso poder com as palavras é imenso.

Em essência, todo educador é um reconstrutor. Tendo sido aluno, tem agora a oportunidade de reconstruir sua experiência. Infelizmente, há muitos que passaram por experiências ruins quando alunos e agora, como professores, reproduzem a opressão de que foram vítimas. A estes, fica o desafio: não basta reproduzir conhecimento, é preciso aperfeiçoá-lo. Há um Fernão Capelo Gaivota dentro de cada aluno. Na fábula, Fernão sofre dolorosamente a experiência da aprendizagem enquanto está só. Não há gaivotas dispostas a ajudá-lo, a motivá-lo com palavras de incentivo. O contrário: as palavras que ele ouve são as mais desoladoras. Assim, seu aprendizado se potencializa quando se encontra com quem? Um professor! A partir daí, a busca pela perfeição se intensifica, porque se intensificam as palavras de sabedoria e, com elas, os gestos, os exemplos, o amor.

A essa altura você deve estar se lembrando de situações em que a sua palavra foi importante para algum aluno. Se você coleciona casos assim, parabéns! Todo bom professor já passou diversas vezes por situações em que extrapolou a simples obrigação de ensinar o conteúdo. Isso porque muitas vezes somos os únicos adultos em quem eles confiam ou, pior, os únicos com quem eles convivem. Uns ficam muito sozinhos em casa, outros ficam sozinhos o tempo todo, encerrados em seu próprio mundo e tendo de enfrentar os problemas e desafios da vida apoiando-se apenas uns nos outros. Logicamente, essa verdade tem pesos diferentes para cada um, mas atravessa a todos que não contam com apoio familiar sólido, seja na escola particular, seja na escola pública. É nessa hora que, mesmo com o propósito de não se comprometer, o professor aconselha, instrui, repreende, busca ajuda e, inevitavelmente, se compromete. Mas esse comprometimento é muito valioso: evita suicídio, gravidez indesejada, criminalidade, frustrações. Considerando que a educação serve para dar riqueza interior às pessoas, nosso papel comumente vai muito além do cumprimento das habilidades específicas e se concentra nas habilidades socioemocionais. De nada adianta ensinar um aluno a argumentar sobre a conjuntura política mundial e a alta do petróleo se ele não está sabendo dizer não ao colega que lhe oferece drogas.

Alguns anos atrás, participei de um conselho de classe bastante simbólico. A escola era muito grande, e, como a maior parte dos professores não conhecia os alunos pelo nome, precisava ver a foto deles para opinar sobre suas notas. Fiquei profundamente triste quando vi que, na verdade, eles não conheciam minimamente os adolescentes com quem passavam boa parte da semana com a oportunidade de falar diretamente ao seu coração. Não sabiam quem estava usando drogas, quem estava com problemas em casa, quem se preocupava com o futuro, com o emprego, com a política, com a comida. Quando tive oportunidade de falar sobre isso, fui visto com desdém, afinal não era pai de nenhum deles. E, nos meses seguintes, quando continuei questionando essa indiferença, percebi que me tornava cada vez mais uma gaivota inconveniente. Resultado: não demorou muito, fui banido do grupo, exatamente como as gaivotas medíocres fizeram com o pobre Fernão. Nada mais previsível. Um dos pensamentos mais famosos da psicanalista austríaca Melanie Klein resume bem esse banimento: “Quem come do fruto do conhecimento sempre será expulso de algum paraíso”.

cubos