Edição 17

Matérias Especiais

A Escola Profanada

Tania Zagury (*)

Um dia lindo, calmo, céu azul, sem nuvens. Tudo tranqüilo. O mundo parece seguir seu almejado destino de paz.

De repente, a notícia que a todos aterroriza, revolta, choca: rapazes de classe média entram na Escola em que estudavam — armados até os dentes — e atiram, matam, ferem… sem dó nem piedade. Nos EUA ou no Brasil, em qualquer lugar, corações se afligem. Nos noticiários angustiantes, atos semelhantes começam, dia após dia, a se suceder. Subitamente, todos — pais, educadores, juristas, psicólogos, sociólogos, leigos, cidadãos comuns — se interrogam: de quem é a culpa? De onde surge tanta crueldade, tanta insanidade? E será somente crueldade? Ou insanidade? Acaloradas discussões. Partidos se formam a favor e contra tais ou quais teses. Todos, porém, perplexos, anseiam por explicações. A escola, através dos tempos, sempre foi lugar seguro para nossos filhos. O local do saber, da cultura, da educação foi profanado. Sofremos todos. Onde, afinal, há segurança? Nos lares, não mais (tantos assaltos e crimes ocorrem no reduto dos mais bem defendidos apartamentos); nos condomínios, também não (e as gangues?); nas ruas, nem pensar. Seja noite, seja dia… e agora, parece que perdemos o último baluarte de segurança e paz.

Apontar culpados ou denunciar causas é tarefa complexa, talvez até pretensiosa. Algumas pistas podem ser, porém, levantadas com certa margem de segurança. É preciso, no entanto, ter consciência de que, certamente, não há uma causa, mas um conjunto de fatores que oportunizam a eclosão desses acontecimentos revoltantes que aviltam a todos nós, a toda a espécie humana.

Esses fatores podem ser divididos em dois grupos — sociais e individuais.

Dentre as causas sociais, podemos destacar, sem medo de errar, o consumismo exacerbado, a competitividade, o individualismo, a má distribuição de renda, a crise ética, a impunidade e a corrupção, o fácil acesso da população a armas, o crescente desemprego, o seríssimo problema das drogas — só para citar alguns.

Com esses ingredientes, a cada dia, nossa sociedade torna-se mais e mais violenta. Mas não são apenas os assaltos, estupros e assassinatos, que acontecem diariamente e são exaustivamente divulgados pela mídia, que preocupam. Outra forma de violência, poucas vezes percebida pela maioria, é transmitida subliminarmente. Desde programas humorísticos, nos quais o riso é provocado humilhando-se o mais fraco, o negro, o homossexual, o pobre ou o portador de deficiências físicas; até desenhos animados tipo Beavis and Butthead, no qual a agressão e a falta de amor ao próximo são a tônica. Essas mensagens, repetidas exaustivamente, aliadas aos noticiários sensacionalistas, em que guerra, sofrimento e morte são focalizados com detalhes terríveis, somadas ao hiper-realismo da cinematografia de hoje — tudo isso junto — podem produzir nas crianças e nos jovens em formação (espectadores que são de horas e horas de violência desde os mais tenros anos) uma gradual perda da sensibilidade e da capacidade de se indignar, fundamentais para o desenvolvimento da empatia e da solidariedade. É como se elas fossem “se acostumando” com a crueldade, a truculência, a miséria humana, a degradação. E essa situação é por elas percebida como se fosse incontornável, imutável.

A essa dessensibilização produzida pela exposição à violência, junte-se uma sociedade que estimula o individualismo e a competição, na qual a má distribuição da renda impera, e, especialmente, a grave crise ética a que assistimos hoje, derivada da impunidade e da corrupção que permeiam todos os níveis das instituições sociais, e poderemos começar a compreender melhor o que leva tantos jovens à marginalização, à desesperança, às drogas e a atos criminosos. A criança cresce consumista, individualista, insensível, assistindo diariamente a graves denúncias — raramente punidas com o rigor necessário — que alimentam a desesperança nas instituições sociais e, o mais grave, acreditando que o mundo tem que ser assim mesmo. O que certamente fortalece a crise ética e a descrença nos valores humanos.

Por outro lado, os aspectos individuais entram nesse panorama da seguinte forma (evidentemente, explicando de maneira simplista): cada pessoa tem, desde o nascimento, um diferente nível de agressividade e uma forma, também diversa, de interiorizar os fatos que ocorrem à sua volta, tendo, algumas, um equipamento de percepção mais positivo, enquanto outras interiorizam os eventos de maneira quase sempre negativa. Quer dizer, uma criança pode decodificar uma palavra mais severa que lhe é dirigida (a simples correção de uma atitude que a mãe ou um professor lhe dirija, por exemplo) como falta de amor; outra, na mesma situação, porém com uma percepção mais positiva, poderá interpretá-la como preocupação e afeto. Uma pessoa que, além de já ser naturalmente agressiva, possui uma percepção negativa dos fenômenos que ocorrem à sua volta e que, além do mais, cresce no seio de uma família desatenta, desestruturada e desarmônica, poderá, em determinadas circunstâncias, desenvolver um comportamento socialmente patológico. São esses fatores, entre outros, que irão influenciar na constituição da auto-estima mais ou menos elevada, gerando cidadãos mais ou menos equilibrados emocionalmente.

Além disso, para nossa consternação, alguns modernos estudos dentro da Psiquiatria vêm conduzindo a idéia de que existem pessoas que trazem dentro de si — inato — o germe da violência (pobre Rousseau…). Se, aliada a essa característica pessoal (caso ela realmente exista), juntarmos os fatores sociais e familiares acima descritos, compreenderemos por que surgem, em dadas circunstâncias, indivíduos que, em maior ou menor grau, com maior ou menor planejamento, a partir de um evento qualquer, desencadeiam agressões ao outro.

Nesse contexto, a Escola torna-se apenas o local onde se reflete, como em qualquer outro lugar, o que a sociedade propiciou ocasionar. Uma sociedade violenta — que incentiva, na sua base ideológica, o preconceito, o predomínio dos bens materiais sobre os valores éticos —, corrupta e que deixa impune seus maiores transgressores, agindo sobre um indivíduo potencialmente violento e que se sinta de alguma forma preterido ou mal-amado, tem todos os ingredientes necessários para, em um determinado momento, desencadear a barbárie.

Não se pode esperar que nenhuma instituição, seja a Escola ou outra qualquer, esteja a salvo da contaminação por tudo o que ocorre no contexto mais amplo, a sociedade.

Procurar “culpados” dentro da Escola é uma forma simplista e altamente confortável de explicar uma situação tão complexa, em que tantos interesses estão em jogo, e, dessa forma, acalmar os ânimos. Culpando a Escola, a metodologia de ensino, os professores mal preparados, os currículos anacrônicos — ou tudo isso —, acalma-se a consciência e a ansiedade de muitos. E tudo fica como está.

Ou mudamos os elementos básicos que alicerçam a sociedade atual e que propiciam o surgimento de uma situação de violência latente, que a qualquer momento pode eclodir, voltando-nos para os valores que verdadeiramente dão humanidade ao homem — empatia, solidariedade, justiça, honestidade, honra, cooperação, respeito ao outro — ou continuaremos a assistir, assombrados, a atos de vandalismo, agressões e loucuras cada vez maiores.

(*) Artigo originalmente publicado no jornal O Globo, seção Opinião.

Leia também: Os Direitos dos Pais – Construindo cidadãos em tempos de crise
Tania Zagury
Editora Record

cubos