Edição 17

Matérias Especiais

Educação e Incivilidade

Miriam Abramovay
(pesquisadora e professora da Universidade Católica de Brasília)

Marta Franco Avancini
(pesquisadora da Unesco)

A instituição escolar vem enfrentando o incremento progressivo de dificuldades relacionadas a problemas internos, de gestão e também de fatores externos, como o desemprego, a pobreza, a exclusão social e o tráfico de drogas, entre outros, em seu cotidiano. Esses obstáculos têm demonstrado a necessidade de se realizar diagnósticos e pesquisas sobre as violências nas escolas. Isso se deve, de um lado, à peculiaridade e ao caráter inovador da problemática e, de outro, à dificuldade de enfrentar as diversas modalidades que a violência assume no ambiente escolar, variando de intensidade, magnitude, duração e gravidade.

Considera-se que existem diferentes modalidades de violência (Charlot,1997; Debarbieux 1996). É importante adotar tal perspectiva, já que, de um lado, uma abordagem exacerbada do fenômeno corre o risco de criminalizar comportamentos comuns e, de outro, uma abordagem restrita pode desconsiderar as vítimas e as microviolências dentro da dinâmica do fenômeno. Aceita-se, portanto, uma visão extensa da violência escolar que incorpora:

1. A violência física: é aquela que pode matar; consiste em ferimentos, golpes, roubos, crimes, vandalismo, droga, tráfico, violência sexual.

2. A violência simbólica ou institucional: que se mostra nas relações de poder, na violência verbal entre professores e alunos, por exemplo. Segundo Bourdieu (2001), a violência simbólica se tece através de um poder que não se nomeia, que dissimula as relações de força e se assume como conivente e autoritário.

3. As incivilidades: caracterizam-se pelas microviolências, humilhações, falta de respeito.

Assim, quando se fala de violências nas escolas, deve-se levar em conta não somente os delitos passíveis de enquadramento no Código Penal, mas também as incivilidades — muitas vezes invisíveis aos olhos dos atores que convivem na Escola — e o clima escolar. As incivilidades não se pautam pelo uso da força física, mas podem ferir profundamente, minando a auto-estima das vítimas e fomentando um sentimento de insegurança.

A percepção de insegurança que percorre nossas sociedades não resulta somente de situações passíveis de serem solucionadas por meio da força. Ela remete à qualidade das relações interpessoais, aos elos sociais estabelecidos, bem como à insegurança vivida e sentida — ou seja, às relações entre civilidade e segurança. Dizem respeito, portanto, às manifestações de violência que tomam a forma de incivilidades.

As incivilidades consistem em atos e comportamentos considerados sem gravidade e que têm caráter essencialmente público — são, portanto, da ordem das relações entre o espaço público e os indivíduos (Roché, 2002). O conceito exclui tudo o que tem relação com o privado, assim como os afrontamentos violentos — mesmo aqueles com graves conseqüências para a vida social. No ambiente escolar, as incivilidades muitas vezes ganham o contorno de comportamentos desafiantes por parte de alunos que procuram a visibilidade provocando as autoridades — o que é constatado no dia-a-dia das escolas.

As incivilidades são, em suma, atos que rompem as regras elementares da vida social; o que inclui as pequenas delinqüências, a agressividade, a insensibilidade em relação aos direitos do outro, os quais, apesar de se darem no nível micro da vida em sociedade, quebram o pacto social de relações humanas e as regras de convivência. E vale ressaltar que, na escola, elas raramente são penalizadas, sendo tratadas como delitos secundários ou comportamentos naturais, típicos de determinadas fases ou idade (Debarbieux, 1998).

Um dos efeitos da proliferação e da repetição dos atos de incivilidades é a instauração de um sentimento de abandono do espaço público e de impunidade (Debarbieux, 2002). Ao mesmo tempo, as vítimas de incivilidades sentem-se desprotegidas, estimulando a falta de confiança nas instituições e a ausência do sentimento de cidadania, o que pode levá-las a deserdar de espaços coletivos (como a escola). A proliferação de incivilidades também pode ser a porta de entrada para violências mais duras.1

Num ambiente como esse, imperam a “lei do silêncio” e a “lei do mais forte”. As testemunhas e vítimas não comentam o visto, o sabido, por temor da represália ou de ser estigmatizadas, o que fortalece a cultura do medo. Revela-se, ainda, a vulnerabilidade dos mais fracos, decorrente da intimidação física e verbal, banalizando a violência e fazendo com que os diferentes atores se sintam desprotegidos. Isso implica, por sua vez, a sensação de falta de segurança, de desordem e de impunidade, o que gera a desorganização do espaço público.

No caso específico da Escola, é necessário tomar cuidados especiais para que as relações sejam menos hostis, pois, num ambiente em que prevalece a incivilidade, alunos, professores e demais integrantes da comunidade escolar podem estabelecer uma relação de distanciamento com a Escola, um sentimento de falta de pertencimento, levando ao desaparecimento das relações de amizade e solidariedade.

Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que o clima escolar também influencia naquilo que os professores ensinam e no que os alunos aprendem, podendo ou não criar sistemas de cooperação, situações de identidade ou de desencanto com as escolas.

Exemplificando os efeitos das violências e incivilidades, a pesquisa Violências nas Escolas, coordenada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, mostra que os alunos, quando questionados sobre do que não gostam da escola, 33% respondem “da maioria dos alunos”. Os professores, de sua parte, dizem não gostar “da maioria dos alunos” (41%).2 Esses dados apontam para uma degradação das relações interpessoais, com graves conseqüências para a convivência no cotidiano escolar na medida em que o desrespeito e o descaso em relação ao outro podem tomar o lugar da solidariedade e do companheirismo.

Apesar dos problemas apontados, não se apregoa aqui uma visão apocalíptica nem determinista da Escola, pois o clima de incivilidade e de abandono pode ser mudado: da mesma maneira como as incivilidades são construídas na dinâmica das relações sociais, elas podem — e devem — ser desconstruídas, o que é possível por meio de ações de proteção que transformem as escolas de risco em escolas protetoras.

É fundamental atentar para o fato de que as medidas de força não resolvem o problema da violência e das incivilidades, pois não atingem o cerne da questão: a qualidade das relações interpessoais na Escola. O mesmo pode ser dito sobre as soluções tecnológico-repressivas — detectores de metal, circuito interno de TV, câmeras e grades —: nem a presença de polícia para fazer revistas-surpresas vai melhorar o clima das escolas.

Afinal, uma política repressiva nunca substituirá políticas sociais e programas que transformem a Escola em um espaço de segurança, de prazer e, por que não, de alegria. E isso só é possível se tais programas e políticas levarem em conta alunos, professores, diretores e demais membros da equipe técnica da Escola, visando à superação das violências nas escolas.

1 A violência dura, segundo Chesnais (1981), é aquela que está incorporada no Código Penal.
2 Abramovay e Rua (2002), páginas 157 e 166.

Referências bibliográficas

ABRAMOVAY, Miriam e RUA, Maria das Graças. Violências nas escolas. Brasília: Unesco, 2002.

CASTRO, Mary Garcia e ABRAMOVAY, Miriam. Drogas nas escolas. Brasília: Unesco, 2002.

CHARLOT, Bernard; ÉMIN, Jean-Claude (Coords.). Violences à lécole état des savoirs. Paris: Masson & Armand Colin Éditeurs, 1997.

CHESNAIS, Jean-Claude. Histoire de la violence. Paris: Éditions Robert Laffont, 1981.

DEBARBIEUX, Éric. La violence em milieu scolaire: 1 État des lieux. Paris: ESF Éditeur. 1996.

DEBARBIEUX, Éric. La violence em milieu scolaire: 2 Lê désordre des choses. Paris: ESF Éditeur, 1999.

DEBARBIEUX, Éric. Lopression quotidienne. Recherhces sur une délinquence des mineurs. Bordeaux: Laboratoire de Recheches Sociales en Éducation et Formation. Observatoire Européen de la Violence Scolaire. Université Victor Segalen Bordeaux 2, 2002 (mimeo).

ROCHÉ, Sebastian. Tolérance Zero? Incivilités et insecurités. Paris: Éditions Odile Jacob, 2000.

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