Edição 89
Espaço pedagógico
A pedagogia do erro
Júlio Furtado
O processo de evolução humana é, no mínimo, paradoxal. A superação das limitações pessoais tem início na clara consciência a respeito delas. Esse mecanismo de consciência na sociedade ocidental, no entanto, encobriu-se de um preconceito difícil de ser vencido: o preconceito contra o erro. A visão perfeccionista construída a partir do paradigma cartesiano nos fez acreditar que onde existe erro não existe acerto e vice-versa. As Ciências, “contaminadas” por esse paradigma, configuraram-se nas maiores reprodutoras do preconceito contra o erro, e a escola, instituição responsável pela formalização do processo ensino-aprendizagem dessas mesmas Ciências, estruturou-se coerente com as crenças e os valores que segregam o erro do contexto da aprendizagem.
A situação narrada no início deste texto traduz, na prática, as consequências desse preconceito. Como analisa Rui Trindade em seu texto, a escola somente apresenta perguntas para respostas já conhecidas. Vive-se de forma coerente com a crença de que erro é algo que se esconde, que se disfarça, que não se deve cometer. O que chama a atenção no contexto em pauta é o fato de essa concepção estar tão fortemente internalizada pelos professores. Esse fato remete imediatamente a algumas perguntas: como esses professores encaram o erro de seus alunos? Como se sentem diante do fato de um aluno errar? Como compreendem a função do erro no processo de aprendizagem? É sobre esses questionamentos que se pretende refletir a partir desse ponto, pois é incontestável que erros e acertos precisam conviver nas situações concretas de ensino-aprendizagem.
O sentido do erro no ato de aprender
Muito tem-se discutido sobre o sentido do erro no processo de aprendizagem. Algumas correntes pedagógicas consideram o erro como o “não certo”. Outras, acreditam que o erro faz parte do processo de ensino-aprendizagem, sendo caracterizado como uma etapa da aprendizagem sistemática.
Na escola, o erro é personagem principal (como vilão, é claro!) da novela chamada Avaliação da Aprendizagem. O erro é fruto da análise do professor às respostas dos alunos, em termos de certo ou errado, o que revela o tanto que ainda se cultua a pedagogia da resposta, que, por sua vez, expressa o quanto ainda estamos, como bem definiu Paulo Freire, na era da educação bancária. Paulo Freire propõe, como antídoto à pedagogia da resposta, que o ensino se oriente na direção de uma educação libertadora, que muda o foco cartesiano da resposta certa, para o foco libertador de um ensino que estimule a pergunta e que desenvolva a curiosidade de aprender.
Uma educação de perguntas é a única educação criativa e apta a estimular a capacidade humana de assombrar-se, de responder ao seu assombro e resolver seus verdadeiros problemas essenciais, existenciais.[…] Então, nesse sentido a pedagogia da liberdade, ou da criação, deve ser tremendamente arriscada. Deve ousar-se ao risco, deve provocar-se o risco, como única forma de avançar no conhecimento, de aprender e ensinar verdadeiramente. Julgo importante essa pedagogia do risco, que está ligada à pedagogia do erro (FREIRE, 1985, p.52).
Paulo Freire propõe que o professor mude sua atitude frente ao erro e passe a considerá-lo uma “forma provisória de saber” (1995, p. 71). Essa mudança de atitude pressupõe encarar o erro como objeto de discussão e compreensão dos saberes que o educando traz consigo para as situações formais de aprendizagem. Tal postura implica, obrigatoriamente, o rompimento com relações fundadas numa educação bancária na qual o acerto está ligado à exata correspondência da resposta prevista pelo educador. “Esse processo de reprodução de respostas fabrica a “burocratização da mente”, obstaculiza a reflexão e a capacidade criadora” (FREIRE, 1985, p. 53).
Dessa forma, é essencial que, no processo de construção dos conceitos pela criança, os erros sejam considerados como degraus para futuros acertos. Esses erros, na verdade, estão indicando o que a criança está pensando, e é nisto que o professor deve deter-se: no pensar do aluno, a fim de compreendê-lo e, assim, poder desafiá-lo a encontrar outras respostas. Como afirma Kamii:
Se as crianças cometem erros é porque, geralmente, estão usando sua inteligência a seu modo. Considerando que o erro é um reflexo do pensamento da criança, a tarefa do professor não é a de corrigir, mas descobrir como foi que a criança fez o erro (1991, p. 64).
Mais uma vez surge a necessidade de o professor repensar seu papel e sua responsabilidade na aprendizagem do aluno. É função do professor fazer as intervenções necessárias, a partir da zona de desenvolvimento proximal do aluno, no sentido de promover sua “passagem” da condição atual para uma condição desejada. Para se tornar um verdadeiro mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento, o professor precisa ressignificar a avaliação no sentido de torná-la um processo de compreensão da aprendizagem do aluno e reelaboração de seu próprio plano de ensino. Fundamental se faz para que construamos uma real aprendizagem a partir dos erros que se oportunize a expressão do aluno na busca de soluções intuitivas, raciocínios novos e recriação de suas hipóteses. Como diz Ana Ruth Starepravo em seu texto, “Uma escola aberta ao erro é aquela onde os rascunhos não são jogados fora”.
De que maneira o erro influi na aprendizagem?
Precisamos, primeiramente, alinhar o conceito de processo de aprendizagem ao qual estamos nos referindo para que possamos definir o papel do erro nesse contexto. Vamos, aqui, utilizar o referencial de Piaget (1978). Nessa perspectiva, a aprendizagem configura-se através dos fatores hereditários, maturacionais e da interação do sujeito com o meio. Segundo Piaget, apesar de os fatores intrínsecos do sujeito influenciarem no seu aprender, a estimulação e interação com o meio são fatores fundamentais na construção do conhecimento.
A aprendizagem é construída através da interação do sujeito, que possui esquemas próprios de ação, com o meio. Wadsworth (1992) define esquemas como sendo “estruturas mentais ou cognitivas pelas quais os indivíduos intelectualmente se adaptam ao meio e organizam-no” (p. 02). Assim, os esquemas são construídos e/ou modificados pela interação do sujeito com o meio.
Ao desenvolverem-se, as pessoas enfrentam circunstâncias nas quais elas já conseguem lidar com seus esquemas e situações novas, que geram um estado de desequilíbrio no qual a pessoa, para retornar ao equilíbrio anterior, deve assimilar ou acomodar o conhecimento aos seus esquemas.
Numa explanação didática, podemos dizer que, quando ocorre o desequilíbrio, é possível que o sujeito integre um novo dado perceptivo, motor ou de conceitos nos esquemas de ação já construídos (assimilação) ou ele pode modificar seus esquemas para incorporar o conhecimento desejado (acomodação). Ambos, considerados como processos cognitivos regulados pela equilibração. Podemos dizer que assimilação:
[…] é a incorporação de algo exterior ao organismo e implica uma modificação desse elemento externo, ou seja, a modificação do meio pela ação do organismo. Já a acomodação consiste numa modificação simultânea do próprio organismo. Ou seja, quando o organismo incorpora algo do exterior e o modifica, também modifica a si mesmo (DELVAL, 1991, p. 16).
A equilibração é um processo de passagem de desequilíbrio para o equilíbrio que funciona como autorregulador. Os instrumentos de equilibração são a assimilação e a acomodação. Em consequência desses processos, o sujeito pode adaptar-se ao meio, ou com crescimento dos esquemas que ele já possui ou com novos esquemas.
Os processos de assimilação e acomodação são fundamentais para a superação do erro e, principalmente, para a evolução da inteligência. Quando o sujeito comete o erro, pode dele dar-se conta ou ainda não ter consciência alguma sobre o erro que cometeu. Piaget in Aquino (1997), ao referir-se à questão do erro e de sua função, afirma:
O efeito nulo se produz quando a criança é muito jovem (para o problema proposto), não havendo ainda, para ela, relação entre as zonas de assimilação relativas ao fator introduzido (a possibilidade de observação do erro) e a reação esperada; num nível de desenvolvimento mais avançado, a relação se efetua (p. 9).
Aquino (1997) afirma que, a partir do conceito piagetiano do erro, podemos “empregar o conceito vygotskiano de zona de desenvolvimento proximal: erro será dentro dessa zona, nunca fora dela” (p. 38). Nessa linha de raciocínio, quando o sujeito erra e tem consciência de tal erro, é gerado um estado de desequilíbrio. Esse estado é desencadeado por uma perturbação, ou seja, um conflito cognitivo. Esse desequilíbrio remete ao processo de regulação pelo qual o sujeito vai, através do erro, assimilar e acomodar conhecimentos para retornar ao equilíbrio anterior — só que agora estará diferente.
Pensando no valor positivo do erro, percebemos que, se o sujeito “[…] errar, sua tendência será a de refletir mais sobre o problema e sobre as ações que empregou para resolvê-lo. Vale dizer que o erro pode levar o sujeito a modificar seus esquemas, enriquecendo-os […] o erro pode ser fonte de tomada de consciência” (AQUINO, 1997, p. 36).
Segundo Piaget, apesar de os fatores intrínsecos do sujeito influenciarem no seu aprender, a estimulação e interação com o meio são fatores fundamentais na construção do conhecimento
Erro é tudo igual?
Segundo Vinocur (1998, p. 98), os erros podem ocorrer por diferentes razões: distração, conceituação, dificuldades na interpretação da instrução e construção. O quadro que se segue caracteriza cada tipo de erro e apresenta a intervenção docente indicada, o que demonstra que a ação do professor deve-se fundamentar na identificação do tipo de erro cometido pelo aluno para, assim, poder intervir adequadamente em cada situação.
Afinal, o que é um erro construtivo?
Nem todos os erros são construtivos. É necessária, então, num primeiro momento, a compreensão e a separação dos erros que são construtivos e dos que não o são. Nos erros construtivos, existe uma lógica nas hipóteses dos alunos frente à resolução de um problema novo qualquer que difere da lógica dos adultos. Mesmo que essa ideia, sob o ponto de vista do adulto, seja errada, este é considerado um erro construtivo. Esse “erro” é a hipótese deste momento (atual) a respeito de um determinado saber em construção. Diz-se que são construtivas porque essas hipóteses construídas, num primeiro momento, vão sendo progressivamente reconstruídas pela pessoa através de comparações entre semelhanças e diferenças com outras situações ou através de um questionamento por parte do professor, levando o aluno a se desestabilizar, se desacomodar em relação ao que achava que era certo.
Uma estratégia bastante interessante na solução de determinados problemas é a troca de pontos de vista em grupo, pois, nesse caso, cada aluno precisa defender com argumentos aquilo que acha que está certo. Essa prática colabora com a formação de uma imagem comum do erro, pois como bem analisa Isabel Parolin em seu texto, a escola treina o aluno para criar estratégias de ocultação dos erros na vida.
Os erros não construtivos não representam dificuldade de compreensão por parte dos alunos, pois ocorrem em relação a conhecimentos arbitrários (ou seja, por convenção). Como exemplo, podemos citar os erros de grafia, que não representam dificuldades de compreensão para os alunos pois a ortografia é um conhecimento de natureza arbitrária. Nesse sentido, o professor não pode esperar que seus alunos descubram os erros, porque não há uma lógica subjacente.
Por um professor que erra!
Uma prática pedagógica orientada pela educação libertadora orienta-se a partir de uma análise crítica da realidade social e sustenta-se, implicitamente, por finalidades sociopolíticas da educação. Isso significa que o professor deve compreender que a educação não é neutra e assumir a natureza política do ato educativo. Esse entendimento reflete-se na postura do educador que, ao romper com a relação autoritária entre professor-aluno, busca construir uma relação de horizontalidade na prática da dialogicidade. Nesse processo, altera-se a relação unilateral na qual o professor pergunta, o aluno responde e o professor corrige; perguntar e responder são concebidos como elementos constitutivos da curiosidade, sendo esta um elemento basilar da construção do conhecimento.
Todo esse sistema, porém, só se estabelece num contexto em que errar seja considerado característica de seres mortais e, mais que isso, num contexto em que professores possam se abster das máscaras de uma pseudoperfeição e ousar cometer erros construtivos, na tentativa de favorecer a aprendizagem significativa.
Júlio Furtado é Mestre em Educação pela UFRJ; pós-graduado em Orientação Educacional; Doutor em Ciências da Educação; diplomado em Psicopedagogia pela Universidade de Havana, Cuba; graduado em Pedagogia. www.juliofurtado.com.br
Referências
AQUINO, Julio Groppa. (Org.) Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1997.
DELVAL, Juan. Aprender a aprender. São Paulo: Papirus, 1991.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
KAMII, Constance. A criança e o número: implicações educacionais da teoria de Piaget para atuação junto a escolares de 4 a 6 anos. Campinas: Papirus, 1991.
PIAGET, Jean. Fazer e compreender. São Paulo: Melhoramentos/ USP, 1978.
VINOCUR, Sandra. In: BOSSA, Nadia Aparecida (Org.). Avaliação psicopedagógica do adolescente. Petrópolis: Vozes, 1998.
WADSWORTH, Barry J. Inteligência e afetividade da criança na teoria de Piaget. São Paulo: Pioneira, 1992.