Edição 56

Matérias Especiais

Campanha da Fraternidade 2011 – Ver, Julgar e Agir

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Ver

*7 O clima em nosso planeta tem a sua história, já apresentou diferentes configurações e, nesse sentido, está sujeito a alterações. No entanto, as mudanças ocorridas no passado aconteceram em virtude de processos naturais, como pequenas variações na relação da órbita da Terra em torno do Sol, queda de meteoritos na superfície do planeta e grandes erupções vulcânicas. Nos dias de hoje, são visíveis as mudanças elevadas de temperatura, os temporais por toda a parte, vendavais e as longas estiagens. Mas, se no passado as mudanças ocorreram por causas naturais, não podemos dizer o mesmo em relação às atuais, porque coincidem com o processo de industrialização, que se intensificou nos últimos dois séculos.

8 Não há unanimidade na comunidade científica a respeito das causas das mudanças climáticas a que assistimos. Para alguns estudiosos, apesar das grandes emissões de gases de efeito estufa (GEEs), essas alterações são resultantes de um processo natural do planeta, enquanto grande parcela as re-Campanha da Fraternidade 2011 – Ver, Julgar e Agir laciona com as atividades empreendidas pelo ser humano após a implantação do atual sistema de produção.

O aquecimento global

9 O clima do planeta é resultante da interação de muitos fatores, inclusive dos seres que integram a biodiversidade que ele hospeda. De algum modo, cada ser que habita a Terra contribui na formação e transformação do clima. Integrante dessa biodiversidade, o ser humano é, também, um agente que colabora, com considerável parcela, para a composição do clima.

10 O aquecimento global é uma mudança climática que traz consigo uma série de desdobramentos. As mudanças climáticas acontecem quando se registram alterações nos valores médios das temperaturas, com aumento ou diminuição. Quando se fala em aquecimento global, quer-se dizer que está ocorrendo a elevação dos valores médios da temperatura na superfície do planeta: hoje, em torno de 15 ºC; há cem anos, 14,55 ºC, o que pode provocar alterações de várias ordens, como no regime e na intensidade das chuvas.

11 É cada vez mais perceptível que o planeta passa por um aquecimento, o que tem provocado uma série de mudanças. Essa ocorrência, segundo os estudiosos do tema, deve-se a um fenômeno denominado de efeito estufa, que, se não for devidamente entendido, pode vir a ser taxado facilmente de “grande vilão” das mudanças climáticas.

*A numeração segue a ordem do texto base.

A vida e suas dores no contexto do aquecimento global Biodiversidade ameaçada

63 Biodiversidade1 é um termo recente, que procura abarcar e definir a diversidade biológica em todas as suas formas: ecossistemas, espécies e genes. A biodiversidade que conhecemos foi se construindo ao longo de mais de 3 bilhões de anos — e estima-se que compreenda cerca de 10 milhões de espécies, das quais apenas um décimo é conhecido. A biodiversidade é de suma importância, pois “salvaguarda uma série de processos vitais para o planeta e a humanidade, os chamados serviços ambientais. Esses serviços são diversos, e, sem eles, a vida, como a conhecemos, fica seriamente comprometida. A título de exemplo, alguns serviços ambientais que têm a biodiversidade como fundamento são: a) equilíbrio do clima; b) qualidade e quantidade de água; e c) produção de alimentos”.2 Portanto, a perda da diversidade implica mudanças climáticas, e o desflorestamento é considerado o segundo fator em importância na reflexão acerca das possíveis causas das mudanças que afetam o clima.

64 Entretanto, a biodiversidade encontra-se seriamente ameaçada. Mesmo sendo difícil precisar a taxa de extinção, estima-se que esteja cem vezes mais alta que a do passado geológico. Essa perda se caracteriza por ser irreversível, sobretudo se em larga escala. A extinção atual se deve a alguns fatores: o impacto das mudanças climáticas; o confinamento das espécies em faixas limitadas, de onde não podem escapar; a destruição das florestas tropicais e dos recifes de corais; a onda de espécies invasoras; a pesca marítima predatória. A continuidade dessas situações pode significar a perda, em pouco tempo, de metade da diversidade atualmente existente, um desastre de proporção inestimável. Para evitar esse desastre, seria suficiente o investimento de 0,1% do PIB mundial, ou 50 bilhões de dólares, para a preservação dos 34 hot spots3, que, somados, resultam numa área que representa só 2,3% da superfície do planeta e abrigariam 50% de todas as espécies conhecidas e 42% dos mamíferos, pássaros, répteis e anfíbios.

65 No contexto atual, em que são mais expostos os problemas do meio ambiente, a sensibilidade da mídia e de grande parte das pessoas tende a ser fragmentada, isto é, volta-se para essa ou aquela floresta, para esse ou aquele animal — sobretudo se em perigo de extinção. No entanto, é condição, para salvaguardarmos o planeta de um aquecimento global destrutivo, a preservação da biodiversidade como um todo. Uma floresta natural não cresce sem a ação de outros seres que ali constituem um complexo vital sustentável, o que inclui até os micro-organismos.4

O escândalo da miséria e o aquecimento global

66 A população mundial ultrapassa os 6,5 bilhões de pessoas, o que representa grande busca por alimentos. Felizmente, a humanidade se encontra em condições de suprir toda essa demanda. No entanto, segundo dados mais recentes de organismos da ONU, cerca de 1 bilhão de pessoas ainda sofre com a fome.5 Trata-se de uma grave contradição, uma vez que essa situação acontece num tempo de farta produção de gêneros alimentícios. Mas essa injustiça também gera preocupação quanto à integridade do meio ambiente, da fauna e da flora, únicos recursos para essas pessoas. A Cúpula do Milênio, realizada em Nova York, no ano de 2000, traçou como meta a erradicação da fome e da miséria, mas o fato persiste e tende a se agravar com o aquecimento global e as mudanças climáticas. Dessa forma, o sofrimento dos mais atingidos tende a piorar.

67 Em meio à problemática do meio ambiente, é oportuno chamar a atenção para a questão da fome no mundo, que corre o risco de ficar na sombra da abordagem sobre o crescimento populacional. Muitas pessoas, e mesmo organismos internacionais, tendem a tachar esse crescimento como agravante dos problemas ambientais, pois exige mais terra e água para a produção de alimentos. Diante desse fato, alguns organismos chegam a propor, em nível internacional, programas de redução das taxas de crescimento populacional. Por isso, é bom reafirmar que “a fome não é uma questão de disponibilidade, mas de solvibilidade; trata-se de um problema de miséria”6, pois, “no mundo inteiro, existe alimento para todos”.

68 A situação de miséria extrema tem grande impacto na biodiversidade, pois a grande massa de pobres e as maiores riquezas em biodiversidade se encontram em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Em geral, o único recurso com o qual podem contar na dramática luta pela sobrevivência advém da natureza que têm à disposição. “Os pobres, principalmente os quase 1 bilhão que são completamente desprovidos, têm pouca chance de melhorar seu quinhão em um ambiente cada vez mais devastado. Inversamente, os ambientes naturais, onde a maior parte da diversidade se encontra, não podem sobreviver à demanda das pessoas ávidas por terra.”7 Nesse sentido, a preservação da biodiversidade, tão necessária nesse contexto de aquecimento global, também passa pelo problema da pobreza e da fome. Essa situação nos remete à abordagem dos mecanismos de produção, apropriação e comercialização dos bens agropecuários, um tema que, cada dia mais, ganha relevância no contexto de crise ambiental. No Brasil, por exemplo, mais de 70% dos alimentos são produzidos pela agricultura familiar camponesa, e não pelo agronegócio.

O êxodo rural, êxodo da natureza

69 O fomento da vida urbana é um dos grandes traços da industrialização. Temos um exemplo bem recente na China: a cidade de Chongqing, até o início do processo de industrialização desse país, não passava de um vilarejo. Passou a acolher, em média, entre 1998 e 2004, 300 mil pessoas por ano. “A maior parte dessa gente era de migrantes do interior que vieram em busca de emprego nas fábricas ou como empregadas domésticas, trabalhadores braçais ou milhares de outros empregos que apresentavam a promessa de uma vida nova para eles e seus filhos.”8 A instalação dessa maré humana inchou o espaço urbano: “a cidade propriamente dita teve de se expandir, em tamanho, em pelo menos 20 km2 por ano a partir de 1998. Em 2004, com a aceleração da migração de áreas rurais, cerca de 25 km2 de novas casas, fábricas, estradas, estradas de ferro, portos e outras infraestruturas urbanas tiveram de ser construídos”. 9

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70 Essas grandes concentrações humanas normalmente degradam o meio ambiente e tornam críticas as condições de vida, especialmente quando o crescimento é repentino. As pessoas residentes nesses grandes espaços urbanos, além de conviverem com uma atmosfera nada saudável, agora também têm convivido com as consequências de intensas chuvas, enchentes, deslizamentos, destruição de moradias. No entanto, essas situações tornam-se mais dramáticas devido à ocupação de espaços sem nenhuma consideração ao meio ambiente.

A água

71 A Assembleia Geral da ONU, em 28 de julho de 2010, com 122 votos a favor e 41 abstenções, aprovou uma resolução afirmando que a água e o saneamento básico são direitos humanos essenciais. E, ao mesmo tempo, pediu aos governos e organismos internacionais que intensificassem os esforços para sanar essas carências. A aprovação dessa medida, mesmo que de caráter não obrigatório, coloca em evidência, entre as problemáticas referentes aos recursos hídricos, essa questão, que é primordial para 2/3 da humanidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 13% da população, algo próximo a 900 milhões de pessoas, vive sem acesso à água potável e 39%, ou aproximadamente 2,6 bilhões de pessoas, não dispõe de saneamento básico. Na América Latina, 85 milhões não têm água potável e 115 milhões vivem sem saneamento básico. Essa situação é apontada como responsável direta pela morte de 1,5 milhão de crianças com menos de 5 anos de idade, vitimadas por diarreia.10

72 A aprovação dessa resolução é significativa, pois, nesse contexto, a tendência é de que os debates relativos à problemática da água sejam monopolizados por uma eventual crise de oferta de água potável num futuro próximo. No entanto, não é admissível que previsões alarmistas como essa, acenando inclusive para eventuais guerras por esse produto, deixem em segundo plano um problema, como o exposto acima, que aponta para as finalidades genuínas da gestão dos bens hídricos: a mitigação da pobreza e a redistribuição de renda. Além disso, é indispensável a revisão dos usos da água doce e dos desperdícios, colocando, no centro, o direito humano, de todos os animais e da própria Terra. E tudo isso sabendo que os especialistas têm se mostrado competentes em analisar com precisão situações passadas e atuais, mas ainda não estão em condições de avaliar com o mesmo rigor os possíveis desdobramentos futuros, tendendo a previsões de carestia de água potável.11

As águas oceânicas

73 Os oceanos são itens da maior importância na temática da água. As costas litorâneas abrigam, em nossos dias, quase dois terços da população mundial, e estima-se que, até 2030, chegue a três quartos. Além disso, os oceanos governam o clima e as condições meteorológicas mediante as distribuições planetárias de calor e água doce. No entanto, passam por mudanças tão rápidas e abrangentes que põem em risco as áreas costeiras e a própria humanidade, pois alguns eventos físicos, como tsunamis, furacões, tempestades tropicais, proliferação de algas, derramamento de óleo e eutrofização,12 são altamente destrutivos.13

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74 O conhecimento da humanidade sobre os oceanos ainda é preliminar, mas é certo que a biodiversidade do fundo dos mares é comparável com a encontrada em florestas primárias e tropicais. Acontece que também essa biodiversidade está sofrendo com o aumento das emissões de dióxido de carbono (CO2), pois os oceanos absorvem um terço dos gases emitidos pelas atividades do ser humano. Mas, com o aumento da temperatura, pode ocorrer um desequilíbrio na cadeia alimentar dessa biodiversidade. Nessa condição, o fitoplâncton não se reproduz na mesma quantidade, e, como ele se constitui em alimento para o zooplâncton, que alimenta os peixes, é provável que se acentue a diminuição destes últimos. Praticamente 40% dos recursos pesqueiros marinhos do Atlântico se encontram superexplorados, e outros 30%, totalmente explorados. Outro problema é o aumento de poluentes, como esgoto, lixos e toxinas carregadas via atmosfera, envenenando oceanos diariamente.

75 As águas oceânicas passam por um processo de acidificação no qual a água se torna corrosiva, como resultado da absorção do dióxido de carbono (CO2) presente na atmosfera. A mudança na química da água afeta a vida marinha, particularmente os organismos com estruturas de carbonatos de cálcio, como corais, moluscos, mexilhões e pequenas criaturas dos estágios iniciais da cadeia alimentar. Em consequência, diminui a absorção de dióxido de carbono (CO2) pelas águas e pelos seres vivos oceânicos14.

76 As águas oceânicas também influenciam decisivamente na formação do clima, pois exercem as funções de reservatório e transportador de calor no sistema planetário. Assim, a relação entre águas oceânicas e atmosfera se encontra naturalmente nas variações climáticas anuais, em fenômenos já bem conhecidos, como o El Niño, com interferências na regulação das chuvas e até tempestades. E, se as previsões de aumento da temperatura se confirmarem, até o final do século o Ártico pode ficar sem gelo, e, nesse caso, as previsões falam de aumento considerável do nível do mar, o que certamente provocaria grandes transtornos às populações costeiras15.

Julgar

Apontamentos bíblicos sobre a preservação da natureza

O nosso Deus é o deus da vida

100 A Bíblia inicia mostrando a vitória de Deus sobre o caos, organizando o cosmos e revelando-se como doador da vida. Na primeira narração da criação (Gn 1:2, 4a), o Deus criador vai gerando a vida na “semana da criação”. Deus dá à terra o poder de gerar frutos, árvores, sementes, ervas e verduras (Gn 1:12). O texto vai repetindo a cada etapa: “E Deus viu que era bom”. Deus criou, por meio de suas palavras, todas as realidades, formando uma grande solidariedade cósmica16, como vemos na narrativa dos cinco primeiros dias, à qual se integram os animais selvagens, domésticos e pequenos do chão, segundo suas espécies, e o ser humano, criados no sexto dia. E o texto diz: “E Deus viu tudo quanto havia feito, e era muito bom” (Gn 1:31).

101 Podemos notar facilmente a harmonia entre os planos de realidade: o temporal, expresso nos seis dias de trabalho; o espacial, das realidades criadas nos seis dias, desde a primeira; a luz, até o ser humano, de modo que é estabelecida uma unidade formada de coisas distintas que se entrelaçam.

102 Mas houve quem entendesse que o ser humano era dono absoluto do planeta, porque o texto também diz: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gn 1:28). No entanto, a leitura dessa narrativa nos revela que o ser humano foi criado no sexto dia ao lado de outros animais, como as feras dos bosques, os animais domésticos e os répteis, os quais parecem superiores aos anteriormente criados (Gn 1:23–25).

103 A palavra dominar vem do latim dominus, que significa senhor. Dominar significa exercer o senhorio sobre os demais, e esse exercício do senhorio deve ser a partir do modelo do Senhor, que é o próprio Deus. A narrativa da criação nos mostra como Deus exerce o senhorio em relação à natureza: ele a cria. ordena o seu crescimento e a sua evolução, a fim de que ela possa trilhar um caminho de perfeição; garante a sua continuidade; cuida dela; e a abençoa. Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina, contribuir para o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões, cuidar do meio ambiente e fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e a partir dela, de harmonia interior, de comunhão com as outras pessoas e de caminho de conhecimento e estreitamento de relações com o próprio Criador.

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104 Desse modo, o ser humano vai dividir o mesmo espaço com esses animais, que foram criados ao seu lado. No texto bíblico citado, podemos notar que os animais da terra ganham autonomia e são colocados sobre o mesmo espaço em que se encontram os seres humanos. É evidente que há uma diferença fundamental entre os homens e os animais, que é de ordem sobrenatural, pois os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus e receberam o seu sopro em suas narinas, mas, enquanto seres naturais, eles se encontram unidos em um equilíbrio dinâmico, o que não lhes concede o direito de se utilizar da natureza segundo seus caprichos, de modo a causar destruição e colocá-los em perigo.17

105 Tendo em vista todos os problemas do meio ambiente, frutos de um processo desmedido de utilização dos bens do planeta, é oportuna uma reflexão acerca do mandado “[…] enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gn 1:28). Para esse intento, é fundamental compreender o significado de alguns verbos, como submeter e dominar.

106 O verbo submeter, em hebraico kabash, no contexto da cultura semita, tem como foco principal a terra e o seu cultivo; e o verbo dominar é tradução do hebraico radah, que possui o sentido de cultivar, organizar e cuidar. Assim, não é concedida ao ser humano a posse, em termos de senhorio, dos outros seres criados, pois a consideração desses verbos indica, precisamente, atitudes de cultivo, zelo e cuidado, próprias de um pastor que conduz suas ovelhas, protegendo-as dos iminentes perigos.18 O livro de Gênesis é claro quanto a isso ao afirmar que Deus colocou o ser humano no jardim para o cultivar e guardar (Gn 2:15).

O lugar do ser humano na criação

107 O salmista, logo após indagar sobre o que é o ser humano, afirma: “[…] o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e honra o coroaste” (Sl 8:6). Dessa forma, indica que o ser humano foi criado de modo especialíssimo no reino da criação porque, mesmo sendo um ser integrante da natureza, transcende-a, e essa transcendência, embora não tire do ser humano sua condição natural, traz outras implicações que dão sentido à natureza e geram responsabilidades em relação a ela. O primeiro relato da criação, no livro do Gênesis, expressa essa condição humana com a afirmação de que “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher, Ele os criou” (Gn 1:27).

108 Em um dos documentos referenciais do Concílio Ecumênico Vaticano II, encontramos a seguinte interpretação dessa afirmação: “O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus”.19 O documento conciliar entende que o homem se encontra no centro da criação, inclusive utiliza o verbo dominar para caracterizar as suas relações com os demais seres da natureza. No entanto, o entende como um ser de relações: “Deus não criou o homem sozinho”, e “o homem, por sua própria natureza, é um ser social”20 e, consequentemente, chamado à cooperação e à solidariedade para com seus irmãos e para com os seres da natureza.

109 Visando esclarecer ainda o entendimento dessa concessão para que o homem domine, dada a singularidade de seu ser, imagem de Deus, outro verbo dessa narrativa merece ser mencionado e analisado: mashal (governar, presidir), que aparece em Gn 1:16–18. Esse verbo é utilizado para descrever um domínio como o exercido pelos astros, que receberam a incumbência de presidir sobre o dia e a noite, marcando o ritmo da vida. Assim sendo, o ser humano é responsável pela vida, pelo bem-estar e pela integridade daqueles que estão sob seu domínio. O homem e a mulher, criaturas do sexto dia, imagem e semelhança de Deus, têm responsabilidades diante da natureza, do semelhante e do Criador.21 De modo que essa singularidade observada na criação do homem e da mulher quer dizer que foram chamados à vida, ao cuidado do que a ela se refere e a trabalhar em prol da manutenção da obra do Criador.

110 As realizações humanas, assim como as construções e até mesmo sua procriação, devem contribuir para que esse objetivo seja atingido, dando continuidade à obra de Deus. E, tendo em vista essa responsabilidade conferida ao ser humano, é oportuno recolocar uma pergunta que o saudoso Papa João Paulo II inseriu em um de seus escritos: “Todas as conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projetadas pela técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem?”.22 E suas preocupações ao estender seu olhar para aquele momento histórico o fizeram continuar com suas indagações: “Crescem verdadeiramente nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem… ou, pelo contrário, crescem os egoísmos… a tendência para dominar os outros, para além dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros ou em favor deste ou daquele outro imperialismo?”.23 Os problemas levantados por essas interrogações se encontram entre os motivos da atual crise ecológica que coloca em risco a vida no planeta.

Agir

198 A primeira parte deste texto focalizou a problemática do aquecimento global, suas consequências em nosso planeta e as atividades do ser humano que estão ocasionando ou, no mínimo, contribuindo para essa situação. A segunda etapa nos iluminou ao atualizar o projeto de Deus, nosso Criador, para este mundo e para o ser humano.

199 Esperamos que esse percurso tenha suscitado preocupações para com a situação em que se encontra o planeta e com os rumos de nossa sociedade. E que essas preocupações levem cada um a perceber que também contribui e é parte do problema. Mas a maior contribuição que esperamos da abordagem desse tema é que desperte o desejo de transformação dessa situação, que resulta em maiores dificuldades à vida dos mais necessitados e põe em risco as condições futuras para a vida no planeta.

200 A problemática que aqui abordamos foi agravada pela nossa civilização industrial e vem se intensificando pelo estilo de vida altamente dispendioso em materiais e energia, que tende a se difundir e que degrada os bens do planeta e comprometem a sua “saúde”.

201 Nesse sentido, a reflexão que realizamos deve nos conduzir a ações concretas. A solução para que ao menos seja contido o aquecimento global dentro de patamares suportáveis não é tão simples. É de caráter global, passa por um grande acordo entre as nações; por sacrifícios, especialmente das nações mais ricas e maiores emissoras, por melhores condições de vida de nações; inteiras que ainda se encontram em condições de miséria e fome; pela diminuição do apetite de crescimento das empresas, das nações; por inovações em várias áreas que permitam uma pegada ecológica menor, o que certamente resultará na diminuição das emissões de gases de efeito estufa.

202 Entretanto, mesmo diante disso, é alentador saber que podemos, sim, fazer algo e dar o nosso contributo, que não só é válido, mas necessário. E, quanto mais nos organizarmos para ações que visem diminuir as emissões, melhor será o resultado das iniciativas.

203 Enquanto Igreja, formada por discípulos e missionários de Cristo conscientes do papel das comunidades que a compõem, no contexto do Reino, revistamo-nos da atitude que levou o bom samaritano a reclinar-se sobre aquele sofredor, para que, com a força e sabedoria do Espírito, empenhemo-nos nessa causa, pois, afinal de contas, “toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto” (Rm 8:23).

1 Esta é a razão da grande preocupação com o buraco atualmente existente na camada de ozônio na atmosfera.

2 O IPCC foi co-fundado em 1988 pelo Programa Ambiental das Nações Unidas e pela Organização Meteorológica Mundial. Sua missão: avaliar se o clima da Terra está mudando efetivamente. Integram este comitê cerca de 2800 pesquisadores de vários países e de diferentes disciplinas acadêmicas.

O grupo elabora seus relatórios a partir de fontes fidedignas, aceitas pela comunidade científica internacional, e as avalia com rigor. O painel publicou quatro relatórios sobre mudança climática, em 1990, 1995, 2001 e 2007. Juntamente com esses documentos, o IPCC esboça os principais temas dos relatórios e publica um Resumo para Tomadores de Decisão.

3 Pode ser encontrado em português no espaço do PNUMA, ONU, ou no site: Disponível em HYPERLINK “http://www.ipcc.cg” www.ipcc.cg. Acesso em 06 agosto 2010.

4 Pesquisas da NASA indicam que, de 2003 a 2008, derreteram-se 2 bilhões de toneladas de gelo no Ártico, na Groelândia e no Alasca, proporcionando um aumento de 4,5 mm no nível das águas oceânicas. No Chile, verifica-se avanço do derretimento em 92% das 1720 geleiras e nas cordilheiras nevadas do Peru, ocorre o mesmo. Processo semelhante ocorre nos montes Kênia e Kilimanjaro na Tanzânia, que já perderam mais de 80% das antigas coberturas de neve. Cf.J.A. MEJIA GUERRA, In REB, Fasc. 277, Janeiro, 2010, p. 9-11.

5 A ONU realizou em Bonn, Alemanha, uma Conferência sobre o clima, finalizada em 11 de junho de 2010. Foi apresentado um relatório produzido por pesquisadores ligados à mesma ONU e à Universidade de Colúmbia nos EUA acerca de migrações resultantes de mudanças climáticas. O relatório estima que o total de pessoas envolvidas nas migrações estimuladas pelas mudanças climáticas poderá pular de 50 milhões em 2010 para cerca de 700 milhões em 2050. HYPERLINK “http://www.achetudoeregiao.com.br/noticias/ambiente360.htm” http://www.achetudoeregiao.com.br/noticias/ambiente360.htm

6 Paul Crutzen, ganhador do Nobel de Química em 2000, sugere que pelas mudanças ocasionadas no planeta devido as ações do homem, a atual era deve ser denominada de antropoceno. Porque nos dias de hoje, vemos mudança na composição atmosférica, com consequente mudança nas plantas, mudança na distribuição e diversidade das espécies, com consequências futuras no registro fóssil e mudança na acidez dos oceanos, com alteração nos depósitos minerais nas profundezas, fatores que atendem os requisitos que a Stratigraphy Commission of the Geological Society of London, estabeleceu como determinantes para se configurar uma época geológica. Disponível em HYPERLINK “http://www.gluon.com.br/blog/2008/01/26/antropocenoclima-ecologia/” http://www.gluon.com.br/blog/2008/01/26/antropoceno-clima-ecologia/. Acesso em: 06 agosto 2010.

7 Sf. Paul J. CRUTZEN. Química atmosfera e clima no antropoceno? In fazendo as pazes com a Terra: qual o futuro da espécie e do planeta? São Paulo: Paulus, 2010, p. 155.

8 PPM – Partes por milhão. Segundo as pesquisas do IPCC, a concentração do dióxido de carbono na atmosfera vem aumentando nos últimos 650.000 anos, de 180 ppm para 300ppm, respectivamente. Entretanto houve um aumento mais pronunciado desde a era pré-industrial, passando de 280 ppm para 379 ppm em 2005, sendo que na última década, ente 1995 e 2005, houve a maior taxa de aumento. HYPERLINK “http://www.multiciencia.unicamp.br/r01_8.htm” http://www.multiciencia.unicamp.br/r01_8.htm. Acesso em 15 setembro 2010.

9 Cf. Disponível em HYPERLINK “http://educacao.uol.com.br/quimica/sequestro-de-carbono.jhtm” http://educacao.uol.com.br/quimica/sequestro-de-carbono.jhtm. Acesso em: 07 agosto 2010.

10 Cf. Disponível em HYPERLINK “http://360graus.terra.com.br/ecologia/defrault.asp?did=29063&action=news” http://360graus.terra.com.br/ecologia/defrault.asp?did=29063&action=news. Acesso em: 07 agosto 2010.

11 CFC – Clorofluorcarbono. Estima-se que o CFC seja 15.000 vezes mais nocivo à camada de ozônio do que o dióxido de carbono (CO2). (CENAMO, 2004). Isso porque ao ser liberado na atmosfera o CFC se concentra na atmosfera (onde fica a camada de ozônio) e sofre uma reação chamada fotólise: quando submetido à radiação ultravioleta proveniente do sol o CFC se decompõe liberando o radical livre cloro (CI) que reage com o ozônio decompondo-o em oxigênio gasoso (O2) e monóxido de cloro (OCI). Disponível em HYPERLINK “http://www.infoescola.com/quimica/clorofluorcarbonetocfc/” http://www.infoescola.com/quimica/clorofluorcarboneto-cfc/. Acesso em: 06 agosto 2010.

12 Esse Protocolo tem como objetivo firmar acordos e discussões internacionais para conjuntamente estabelecer metas de redução na emissão de gases-estufa na atmosfera, principalmente por parte dos países industrializados, além de criar formas de desenvolvimento de maneira menos impactante. O protocolo de Kyoto estabelece metas de redução de gases a serem implantadas, algo em torno de 5,2% entre os anos de 2008 e 2012. Na reunião, em Kyoto, oitenta e quatro países, dentre os quais o Brasil, se dispuseram a aderir ao protocolo e o assinaram, dessa forma se comprometeram a implantar medidas com intuito de diminuir a emissão de gases. HYPERLINK “http://www.brasilescola.com/geografia/protocolo-kyoto.htm” http://www.brasilescola.com/geografia/protocolo-kyoto.htm. Acesso em 15 setembro 2010.

13 HYPERLINK “http://www.eumed.net/rev/delos/08/rsg.htm” www.eumed.net/rev/delos/08/rsg.htm. Acesso dia 05 outubro 2010.

14 Philip M. FEARNSIDE, Consequências do desmatamento da Amazônia. Scientific American, p. 56 Edição especial – n. 39. Philip M. Fearnside é pesquisador titular do departamento de Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus. De acordo com recente levantamento, Fearnside é o segundo cientista mais citado do mundo quando o tema é aquecimento global. Disponível em HYPERLINK “http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=1515” http://www.eco21.com.br/textos/textos.asp?ID=1515. Acesso em: 11 agosto 2010.

15 A Convenção sobe a Mudança do Clima, tem como objetivo estabelecer os programas de proteção da atmosfera, visando reduzir a emissão de gases que podem estar alterando o clima do planeta.

16 Idem.

17 Cf. Dominique VOYNET. Que limites e que tipo de desenvolvimento? P. 35.

18 Como ilustração, alguns exemplos: gastam-se 11 toneladas de materiais naturais não renováveis para produzir um único microcomputador e 32 quilos de materiais naturais não renováveis. Dominique VOYNET. Que limites e que tipo de desenvolvimento? In. P. 35.

19 Ibidem. P. 37.

20 CF. Dominique VOYNET. Que limites e que tipo de desenvolvimento?, p. 39.

21 O termo é de autoria de Edward O. Wilson. Trata-se da palavra do ano de 2010, consagrado como o Ano Internacional da Biodiversidade. Em outubro desse ano, realizou-se, na cidade japonesa de Nagoya, a 10ª Conferência Biológica (COP 10), visando avaliar metas e estabelecer novas entre os países signatários, como o Brasil.

22 SCARANO R. F., GASCON C., MITTERMEIER A. R. O que é biodiversidade? In Scientific American, nº 39 (Edição especial) 2010, p. 8.

23 Os hotspots, ou pontos quentes de biodiversidade, são 34 áreas no planeta que se caracterizam por combinar altas taxas de perda de hábitats com elevada diversidade de espécies e grande taxa de endemismo. No Brasil, Mata Atlântica e Cerrado se encaixam nessa categoria. Cf. Idem.

24 Também denominada de matéria escura da biodiversidade, constituindo-se em um enorme vazio no mapa da biologia, é composta por bactérias. Existem em torno de 10 bilhões delas em um único grama de terra, representada por 5 mil a 6 mil espécies. Cf. Edward O. Wilson. O estado da biodiversidade Global. In Fazendo as Pazes com a Terra, p. 103.

25 STERN, Nicholas. Sinais dos Tempos. In Folha de São Paulo, 03-11-2008, p. 18.

26 PONTIFÍCIO CONSELHO “Cor Unum”. A Fome no Mundo. São Paulo: Paulinas, 1996, n. 19.

27 LOREAU, Michel. Fazendo as Pazes com a Terra, p. 105.

28 KINGE, James. A China Sacode o Mundo. São Paulo: Globo, 2007, p. 48.

29 Idem. p. 48-49.

30 Disponível em http://www.portugues.rfi.fr/ciencias/20100322-dia-mundial-da-agua-884-milhoes-vivemsem-agua-potavel. Acesso em: 06 de agosto de 2010.

31 Asit K. BISWAS. Quo Vadis, mundo da água?. In Fazendo as Pazes com a Terra: Qual o Futuro da Espécie e do Planeta?, Unesco, São Paulo: Paulus, 2010. p. 53. 32 É um fenômeno que reflete a oferta em excesso de nutrientes a uma determinada massa de águas. Resulta no aumento de algas que, em excesso, colorem as águas de um tom esverdeado. Mas, quando começam a morrer, empobrecem-nas de oxigênio, provocando a morte de peixes e outros animais, originando um cheiro desagradável. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutrofiza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 02 agosto 2010.

33 Cf. BINDÉ, Jérôme. O que o futuro reserva para os oceanos? In Fazendo as Pazes com a Terra, p. 107-108.

34 http://portalbrasilambiental.blogspot.com/2008/05/aquecimento-global-e-acidificao-dos.html. Acesso em: 15 setembro 2010.

35 O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, previu, em um relatório de 2007, que o aumento máximo do nível do mar ficaria em torno dos 59 centímetros até o final do século, com o derretimento de geleiras. http://www.melodiaweb.com/Sessao.aspx?cod=592. Acesso em: 15 setembro 2010.

52 Pontifício Conselho Justiça e Paz. Compêndio de Doutrina Social da Igreja. 5ª ed. São Paulo: Paulinas. 2009. n. 488.

53 Cf. PIKAZA, Xavier. Bíblia y Ecologia: Reflexión Introductoria sobre o Gn 1-8. In Sustentabilidade da Vida e Espiritualidade. (Soter) São Paulo: Paulinas, 2008, p. 05.

54 GARMUS, Ludovico. Bíblia e Ecologia. Grande Sinal, maio/junho, 1992, Ano 46, n. 3, p. 278.

55 GS, n. 12.

56 GS, n. 12.

57 GARMUS, Ludovico. Bíblia e Ecologia. Grande Sinal, maio/junho, 1992, Ano 46, n. 3, p. 280.

58 Redemptor Hominis, n. 15.

59 Redemptor Hominis, n. 15.

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Campanha da Fraternidade 2011. Brasília: CNBB. 2010.

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