Edição 84
Espaço pedagógico
Dádiva na Educação: paradigmas para a formação humana
José René Câmara Júnior
Ultimamente, no campo educacional, a teoria da dádiva nos esclarece uma (re)significação de como pensamos a prática docente. Em outros termos, percebemos que nossa forma de atuar na atividade docente submerge as crenças, os ritos e os valores assumidos pelos pedagogos no exercício de se autoconstituírem como educadores.
Nessa direção, amiúde, escutamos relatos de profissionais da Educação que buscam uma formação mais completa para ir além da sala de aula. Pois, nessa direção, muitos docentes não intencionam e não se veem no exercício do magistério, apesar de estarem desenvolvendo uma formação em curso de licenciatura, e, muitas vezes, a conclusão do Ensino Superior é realizada para atuar em órgãos públicos em diversas áreas da Educação. Esse tipo de atitude, no mínimo preocupante, faz-nos enveredar por um exercício de reflexão fundada na teoria do paradigma da dádiva. A escolha dessa linha teórica se configura como uma trilha pautada no privilégio a fim de mover uma compreensão mais ampla acerca do campo educacional e dos dilemas que atravessam o exercício da docência na contemporaneidade.
O fenômeno da troca de dádiva foi pesquisado e sistematizado por Marcel Mauss, sobrinho de Durkheim, no início do século XX. Trata-se de um pensamento que nos impulsiona à reflexão e aos pressupostos da solidariedade e da formação dos vínculos nas sociedades contemporâneas (GODBOUT, 1998). Apesar disso, como lembra Machado (2004), o paradigma da dádiva abarca também contribuições relevantes para o campo educativo.
Seguindo várias indicações bibliográficas consultadas, a dádiva se configura como um elemento necessário para o desenvolvimento de experiências formativas apreciadas como fundamentais para o processo de educação. Nesse sentido, acreditamos que o delineamento das questões postas por esse paradigma, no âmbito da pedagogia, pode contribuir para se aproximar o ato de educar e a formação humana.
Nesse caminho, quais são as contribuições do paradigma da dádiva para refletir o papel da Educação na contemporaneidade? Costurando esse propósito, compreendemos que o ato de educar é, conforme Sabourin (2009, p. 1), “dar sentido, é dar vida”, isto é, para os maussianos, o ato educativo não ocorre de maneira tradicional, mas se materializa em um movimento de interação em que os indivíduos do processo constroem sua dinâmica a partir da reciprocidade.
O paradigma da dádiva: um fato social total
Organizado pelo sociólogo francês Marcel Mauss, numa obra clássica intitulada Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas, o fenômeno da dádiva não pode ser efetivamente apreendido a partir do uso comum que o termo cristalizou no nosso dia a dia. Nessa obra, segundo Freitas (2007), Mauss descreve a dádiva como um “fato social total”, isto é, comprova como a dádiva se manifesta no conjunto das instituições humanas, sejam elas religiosas, jurídicas, morais ou econômicas. No entanto, é corriqueiro, no contexto brasileiro, essa teoria ser reduzida às ideias de caridade e de bênção, normalmente advindas do catolicismo. Não que essas práticas não representem tipos de dádiva, mas, para Mauss, o termo revela, como veremos, uma dimensão mais complexa da sociedade.
Considerado um dos pensadores mais fecundos da primeira metade do século XX, Marcel Mauss nasceu em Épinal, França, em 1872. Era sobrinho de Émile Durkheim. Acompanhou de perto o trabalho de seu tio e ressignificou vários de seus conceitos, principalmente o de fato social, que Mauss denominou de fato social total. Para Durkheim, os fatos sociais são “coisas” exteriores aos indivíduos que não podem ser confundidas com fenômenos orgânicos ou psíquicos. Mauss foi além e desenvolveu o entendimento de que os fatos sociais possuem uma dimensão intrinsecamente simbólica. Nos termos de Martins (2005), a sociedade é, antes de mais nada, instituída por uma dimensão simbólica, e existe uma estreita ligação entre o simbolismo e a obrigação de dar, receber e retribuir em todas as sociedades, independentemente de as mesmas serem modernas ou tradicionais.
Isso significa que, para Mauss, as condutas humanas deveriam ser cogitadas a partir de uma concepção de integralidade. Mauss defende uma postura epistemológica interdisciplinar que se fundamenta no diálogo com a História, a Psicologia e a Sociologia, além das outras áreas e dos aspectos sociais, como Direito, Economia, Estética.
Foi como assistente de seu tio que Mauss se tornou professor de Religião Primitiva, no início do século XX, na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ele fundou também o Instituto de Etnologia da Universidade de Paris (1925) e lecionou no Collège de France (1931–1939). Substituiu Durkheim como editor da revista L’Année Sociologique (1898–1913), onde publicou um de seus primeiros trabalhos, com Henri Hubert, e também Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas (1925), sua obra mais conhecida e comentada. O seu Ensaio sobre a Dádiva fala sobre as formas de troca nas sociedades primitivas. É reconhecido como o estudo de caráter etnográfico mais expressivo sobre as noções e as práticas de reciprocidade que formam a base de uma teoria da ação humana voltada para a compreensão dos processos sociais que geram vínculos entre os humanos. A ideia central da obra aponta que, ao se doar ou doar um bem material, a partir do espírito da dádiva, o doador constrói um vínculo paradoxal com o receptor. As doações de dádivas formariam relações significativas de alianças. Por essa razão, Mauss postula que o fundamento da sociabilidade humana é a troca de dádivas.
Mas o que é dádiva? E por que tantos pensadores em áreas tão diferentes das Ciências Humanas estão interessados em aprofundar esse pensamento sobre a dádiva na atualidade?
Apesar de ainda pouco explorada, a dádiva vem se montando em um princípio significativo de leitura de realidade, por exemplo, social, política e cultural. Conforme Godbout (1998, p. 5), há dois modos de definir a dádiva:
De modo negativo, entende-se por dádiva tudo o que circula na sociedade que não está ligado nem ao mercado, nem ao Estado (redistribuição), nem à violência física. De modo mais positivo, é o que circula em prol do ou em nome do laço social.
A dádiva se compõe, portanto, como uma maneira de intercambiar relações em que se fazem presentes atores sociais que compartilham bens a partir de uma regra: liberdade e obrigação de dar, liberdade e obrigação de receber, liberdade e obrigação de retribuir. Esse conjunto de princípios permite compreender a originalidade fundamental de seu estudo: a ideia da reciprocidade. Entender como se constitui a reciprocidade é uma condição relevante para entender a teoria da dádiva. Nos termos de Sabourin (2009, p. 2), reciprocidade
[…] é o princípio pelo qual a produção é dada a outros num espírito de solidariedade, quer dizer no marco de uma relação entre pessoas tendo consciência de uma comunidade de interesses que leva a uma obrigação moral de apoiar os outros. Portanto, não se dá para receber, se dá para que o outro dê e procura-se estabelecer uma relação entre várias pessoas ou grupos mediante uma sequência durável de dádivas. Por meio da reprodução das dádivas entre pessoas ou formas simétricas da organização social, a produção dada é valorizada pelo seu valor de uso ou seu valor simbólico.
Mais ainda: é preciso distinguir os tipos de reciprocidade:
a reciprocidade direta (prestações materiais ou simbólicas devolvidas entre dois indivíduos ou dois grupos) da reciprocidade indireta, quando os bens simbólicos recebidos não são devolvidos a quem os deu, mas a outro grupo que terá que devolvê-los, por sua vez, a um outro grupo. O modelo dessa reciprocidade indireta é também aquele da circulação dos bens entre as gerações (Idem, p. 5).
Por conseguinte, contrariamente à troca das relações entre os sujeitos a partir de valores econômicos que se alimentam de uma relação de interesses, a reciprocidade lança mão de valores como confiança, empatia, paz e compreensão mútua, que são importantes para repensar os processos de formação humana. Outro aspecto que merece um relevo dentro da perspectiva da dádiva é a liberdade que se configura entre os sujeitos. Segundo Godbout (1998), a liberdade constitui a condição primeira do valor humano que ele irá reconhecer no gesto do outro.
Por tudo isso, afirmam esses autores, a dádiva se aproxima da dinâmica da vida. Ela impulsiona os sujeitos de sua relação para uma experiência voltada à solidariedade, ao vínculo, ao novo, ao nascimento. Por isso, cada dádiva é, segundo Godbout (1998, p. 9), “[…] um salto misterioso para fora do determinismo. Por isso, a dádiva é frequentemente acompanhada de certa sensação de euforia e da impressão de participar de algo que ultrapassa a necessidade de ordem material”. Ela passa em nós e constrói uma atmosfera psíquica vital, colaborando com a ressignificação da sociedade que passa a ser experenciada enquanto comunidade. Então, poderíamos nos questionar: qual seria o sentido de dar? A resposta dos maussianos (GODBOUT, 1998, p. 10): “[…] para se ligar, para se conectar à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para romper a solidão, sentir que não se está só e que se pertence a algo mais vasto […]”.
Mas, dada a dimensão antropológica da dádiva, o que de fato impele o homem a se doar? Uma possível resposta, em consonância com Godbout (1998), seria o próprio interesse do homem em se dar, uma vez que, conforme Caillé (1994, 2001, apud SABOURIN, 2009, p. 3): “a dádiva não é desinteressada, mas motivada, primeiro, pelo interesse pelo outro, pelo reconhecimento do outro”.
Entender como se constitui a reciprocidade é uma condição relevante para entender a teoria da dádiva
Por essa razão, a dádiva, segundo Martins (2005, p. 45), “[…] vem sendo resgatada como um modelo interpretativo de grande atualidade para se pensar os fundamentos da solidariedade e da aliança nas sociedades contemporâneas”. A discussão sobre a dádiva vem se construindo no sentido de retomar uma compreensão integrativa e multidimensional do ser humano. Mauss em seu Ensaio sobre a Dádiva faz um destaque acerca da complexidade do ser humano, criticando os projetos de sociedade que abordam o ser humano desde a dimensão exclusivamente econômica, o que, segundo ele, contribui para obscurecer outras motivações na condução e na realização das ações humanas.
As relações da dádiva com a Educação: vínculos necessários
Para os estudiosos da obra de Marcel Mauss, educar é um ato de dádiva. Nesse sentido, a Educação não se constrói de maneira unilateral. De maneira oposta, ela, dentro da perspectiva de fato social total, organizada por Mauss, lança-se de maneira recíproca. Nos termos de Sabourin,
[…] esse aspecto é muitas vezes esquecido, numa sociedade e época na qual as comunidades e famílias têm cada vez mais tendência a delegar a educação dos filhos para o Estado (escola e o colégio público) ou, inclusive, como no caso das classes médias e ricas do Brasil, para o mercado dos colégios privados (2009, p. 1).
Como resultante desse processo, temos profissionais da educação confusos quanto à sua ação docente. Isso porque, na lógica mercantil da Educação atual, a atitude docente é reduzida a uma entidade transmissora do conhecimento (SABOURIN, 2009), reduzindo o ato de educar a uma ferramenta voltada à construção de competências exigidas pelo sistema capitalista. Na contracorrente do movimento da Educação atual, a teoria de Mauss elucida a Educação como uma construção social complexa que excede a visão simplória de socializar conteúdos e que não se materializa apenas no chão da escola. Quando movimentamos a dádiva, compreendemos a Educação, nas palavras de Freitas (2006, p. 2), “como espaço ontológico do desenvolvimento das formas de sociabilidade que constroem os vínculos sociais”.
Logo, ainda com Freitas (idem, p. 11), “A principal contribuição de Mauss para a Educação não se reduz a uma questão metodológica […] uma teoria potente da formação humana capaz de libertar as abordagens educativas dos ideais abstratos da escola republicana de promoção da igualdade pela distribuição universalista do conhecimento”.
Mais ainda: para Freitas (2006, p. 14), “Como bem simbólico, a Educação carrega algo do doador, o seu espírito”; dessa ótica, é este espírito que permite estabelecer os vínculos de reciprocidade entre os sujeitos envolvidos na ação educativa. Conforme já mencionado, a reciprocidade seria a noção-chave para se entender esse fenômeno.
Através da reciprocidade, os atores fazem a experiência do papel e da situação do outro, aprendendo, por essa via, o sentido da cooperação inter-humana. Por isso, a dinâmica da reciprocidade, sistematizada por Mauss, é um convite à vivência e a experimentações que buscam o enriquecimento da formação humana, sobretudo com o exercício da interdependência geracional, uma questão vital, tendo em vista a crise que afeta de forma drástica as práticas e as instituições encarregadas de educar na atualidade. Mais especificamente, do ponto de vista mais estrito desse projeto de pesquisa, as contribuições de Mauss nos ajudam a problematizar os sentidos que atravessam e articulam o exercício da docência, gerando implicações teórico-práticas para a Educação. Disso decorre nossa proposição de uma pesquisa voltada aos usos desse pensamento no campo pedagógico.
Considerações finais
Nesse sentido, a teoria da dádiva parece provocar novas maneiras analíticas para um esclarecimento maior do movimento democrático e de cidadania, a partir de sistemas sociais concretos. Recusando a forma reducionista e utilitária, aponta a formação humana como meio essencial para a preparação de formas mais sofisticadas de civilidade. Pensar a Educação voltada para a formação humana ultrapassa as questões técnicas da ação educativa, baseando-se nos processos de vínculos entre os sujeitos organizados pelo princípio da reciprocidade — dar, receber e retribuir (SABOURIN, 2008).
O paradigma da dádiva, indubitavelmente, quer sinalizar a indigência de se dinamizar a formação educativa, sobretudo, assegurado pela combinação sinergética dos ideais da liberdade, da igualdade e da solidariedade (FREITAS, 2005, p. 345), admitindo que “a formação não se esgota em uma dinâmica procedimental e discursiva”.
José René Câmara Júnior é pedagogo pela UFPE e pós-graduado em Educação pela Fafire.
Endereço eletrônico: rene.camara@hotmail.com.
Referências
FREITAS, Alexandre Simão de. As Contribuições de Marcel Mauss para uma Sociologia Crítica da Formação Humana. In: 29ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2006, Caxambu. Anais da 29ª Reunião Anual da Anped, 2006. p. 01-16.
FREITAS, Alexandre Simão de. Teoria Social e Formação Humana na Contemporaneidade. In: 30ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2007, Caxambu. Anais da 30ª Reunião Anual da Anped, 2007. p. 01-15.
FREITAS, Alexandre Simão de. Fundamentos para uma Sociologia Crítica da Formação Humana: Um Estudo sobre o Papel das Redes Associacionistas. Recife, 2005 – Teses.
GODBOUT, Jacques T. Introdução à Dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 38, v. 13, Anpocs.
MACHADO, N. J. Conhecimento e Valor. São Paulo: Moderna, 2004.
MARTINS, Paulo H. A Sociologia de Marcel Mauss: Dádiva, Simbolismo e Associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 73, pp. 45-66. 2005.
SABOURIN, Eric. Educação, Dádiva e Reciprocidade: Reflexões Preliminares. Disponível em: http://www.jornaldomauss.org/periodico/?p=659. Acesso em: 04/05/2012.
SABOURIN, Eric. Marcel Mauss: Da Dádiva à Questão da Reciprocidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 66, v. 23, pp. 131- 208, 2008.