Edição 95

Professor Construir

Dignidade da pessoa humana: diálogos introdutórios entre liberdade e educação

Assim falou Zaratustra: “A vontade liberta porque a liberdade é criadora. Assim é que eu ensino. E só para criar precisais aprender!”. Assim Falou Zaratustra, Nietzsche

A dignidade da pessoa humana: o que diz o Direito?

Professores, o conceito da dignidade da pessoa humana remonta à Roma Antiga, de modo que, inicialmente, discutia-se sobre o princípio da condição hierárquica ocupada pelo sujeito na sociedade. O homem era conceituado pela posição social e política. Em seguida, essa dignidade passou a atender todos os indivíduos, no que chamamos no Direito de erga omnes, ou seja, todos os indivíduos passaram a ser detentores de dignidade, uma vez que ela passou a ser compreendida como um valor intrínseco do ser humano, a qual nunca poderá ser utilizada como meio, mas, sim, o fim em si mesma.

Com o intuito de ressaltar a importância do significado desse princípio, demonstra-se sua prevalência nos principais tratados e resoluções internacionais. Podemos observar que a dignidade da pessoa humana está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, resolução formulada após a Segunda Guerra Mundial; encontra-se também inscrita no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, ainda, presente no Pacto São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

O Brasil, sabiamente, adotou o princípio da dignidade da pessoa humana, valorizando-o e inserindo-o em seu art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, e, em decorrência disso, a manifestação completa da liberdade é garantida — liberdade esta que será mais bem esclarecida no decorrer do texto. Segundo o professor Luís Roberto Barroso, a “[…] dignidade representava a posição política ou social derivada primariamente da titularidade de determinadas funções públicas, assim como do reconhecimento geral das realizações pessoais”. É na dignidade que os principais direitos sociais são garantidos na Constituição, pois é o alicerce primeiro e o último refúgio dos direitos individuais, entre eles, está a liberdade.

A dignidade, professores, é intrínseca ao ser humano. Assim, como o sujeito é dotado de dignidade, logo, esta é irrenunciável, é inviolável. Entre outras circunstâncias, é ela que qualifica o humano, e dele não pode ser retirada ou negada, muito menos tolhida, embora, vale frisar, a dignidade venha sendo colocada em xeque a partir de instrumentos camuflados em projetos legislativos, por exemplo: a Escola sem Partido. A dignidade da pessoa humana está atrelada à liberdade do sujeito de permanecer livre, longe de um estado de cerceamento.

A professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges diz que a dignidade da pessoa humana é uma conquista de todos os homens, os quais passam a ser valorados sob sua condição de ser humano, sendo-lhes garantida pelo Estado uma existência digna e plena. Atentemos para as palavras de Roxana:

O fato de o princípio da dignidade da pessoa humana representar uma conquista do homem torna-a ainda mais preciosa e mais merecedora de proteção do que se tivesse sido outorgada por uma razão divina ou natural. Exatamente por derivar de um momento histórico, de conjunturas jurídicas, políticas, filosóficas, culturais, econômicas e sociais localizadas e reais, é que o princípio da dignidade da pessoa humana ganha enorme valor […] (BORGES, 2005. p. 19).

Devido à inquietação em garantir satisfatórias condições de vida para o cidadão, independentemente de sua condição social, o princípio da dignidade da pessoa humana se tornou um dos princípios fundamentais de maior latência e de grande valia dentro do sistema jurídico de vários países.

Entendemos que a dignidade da pessoa humana é intrínseca e distinta a cada sujeito social. Nesse sentido, implica em um conjunto de direitos e deveres fundamentais que se asseguram às pessoas contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, de modo que temos que garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Ingor Sarlet, professor de Direito do Estado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, escreveu um livro belíssimo cujo título é Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais (2001), no qual analisa com grande propriedade que a dignidade da pessoa humana está prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, constituindo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano.

A dignidade da pessoa humana é um fundamento no ideário de república, arquitetada por ser um valor central do Direito que preserva a liberdade individual. Um princípio que alicerça nosso direito constitucional e não há como ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto.

Corroborando ainda mais para a compreensão desse instituto, Flávia Piovesan (2000) diz que:

A dignidade da pessoa humana […] está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e se revelando, ao lado dos Direitos e das Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro” (p. 54).

Liberdade e dignidade humana: o que diz a educação?

A Constituição Federal de 1988 adotou o regime democrático. Por meio deste, é revelada a preocupação em combater qualquer forma de discriminação, enxergando a liberdade como uma igualdade entre as pessoas. Essa conjuntura de que a liberdade é um direito assegurado em lei garante a todas as pessoas a livre manifestação de pensamento, de ideias e de argumentos.

Nem o Estado nem projetos que tramitam no Congresso Nacional, em Brasília, como é o caso da Escola sem Partido, podem restringir a liberdade de ensinar do professor com a prerrogativa de que os docentes “doutrinam” os estudantes. Ora, a pluralidade de ideias e de argumentos é essencial para os estudantes na sua formação enquanto seres críticos e autônomos, de modo que, na sala de aula, o que há é uma preocupação em formar cidadãos conscientes sobre estar no mundo, ou seja, os professores querem desenvolver sujeitos comprometidos com a coletividade e o bem comum. Propor aos estudantes a crítica social e fomentar neles um espírito investigativo e questionador com base em uma percepção fundada nos quatro pilares da educação (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser) são deveres docentes.

Cabe à educação fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele (DELORS 2000, p. 89).

Os quatro pilares se caracterizam por contemplar questões cognitivas, assim como questões do relacionamento humano.

Confiamos na educação para oferecer elementos e suportes para que os educandos se desenvolvam nas quatro áreas mencionadas, pois estarão prosseguindo no seu desenvolvimento pessoal e cognitivo para aprender a aprender e aprender a fazer. Estarão também buscando na educação elementos que lhes permitam trabalhar em conjunto com outros indivíduos para o crescimento de uma sociedade mais justa e igualitária.

O argumento do projeto Escola sem Partido é de que os docentes estão a promover uma “doutrinação” com ideias marxistas e esquerdistas, no entanto o que percebemos é a imposição de barreiras para cercear a prática do professor, diminuindo ou acabando com o senso crítico dos estudantes e — infelizmente — perseguindo professores que destoam de tais práticas — teremos uma inquisição pedagógica?! Com isso, os estudantes e professores não conseguem se desenvolver plenamente, não gozam dos direitos à liberdade e igualdade, há claramente uma violação da dignidade.

A autonomia do docente compreende o direito à liberdade de ensinar. Essa liberdade é chancelada pela Constituição, sendo inalienável, imprescritível e inviolável. Nessa conformidade, é a capacidade que só o humano tem de tomar posição, escolher, optar. Nem sempre as opções são livres, muitas também não são realizadas conscientemente, e, assim, como só há liberdade na medida do grau da consciência moral que um indivíduo tem da opção a ser feita, podemos falar de uma diminuição do grau de liberdade.

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O direito à liberdade é a exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, pois ela é o poder de promover uma justiça social; sobre isso, Honneth (2015) diz que:

Na modernidade social, só se pode legitimar a exigência por justiça quando, de um modo ou de outro, a autonomia do indivíduo não é nem vontade da comunidade nem a ordem natural, mas a liberdade individual que configura a pedra fundamental normativa de todas as representações de justiça (p. 38).

O ser humano é livre dentro das condições de ser existencial, pois a liberdade não se identifica com o ser do homem, mas constitui uma propriedade fundamental dele junto a outras propriedades também fundamentais, como o viver, o pensar e o trabalhar.

Autonomia docente para a prática de liberdade

A preocupação em conhecer o dia a dia do trabalho do professor é muito pertinente, principalmente por poder representar uma quebra da percepção normativa e moralizante da docência. Os professores Tardif e Lessard, no livro O trabalho docente, de 2007, se interessam antes de tudo pelo que os professores deveriam ou não fazer, deixando de lado o que eles realmente são e fazem. Segundo esses autores, a visão normativa e moralizante do percurso formativo do professor envolve perspectivas histórico-religiosas, quando a profissão era vista como sacerdócio e mantida mesmo com o fortalecimento da figura do Estado, porém sendo atribuído ao professor o papel de “corpo do Estado”, devendo a este obediência e prestando serviços à nação. Serviço este que compele maneiras de arbitrariedade que, por vez ou outra, a sociedade, como grupo instituído e ao mesmo tempo corpo do Estado, quer validar sem a necessidade de desenvolver uma atitude crítica em conjunto com os estudantes.

Vale destacar que, para os professores Tardif e Lessard, o trabalho docente significa reconhecer que os demais docentes não são simples agentes da instituição escolar e “desdotados” de opinião, mas, sim, que são atores que vivenciam sua função como uma experiência pessoal.

Em síntese, o trabalho docente não consiste apenas em cumprir ou executar, mas é também atividade de pessoas que não podem trabalhar sem dar um sentido ao que fazem, é uma interação com outras pessoas: os alunos, os colegas, os pais, os dirigentes da escola, etc. (TARDIF e LESSARD, 2007, p. 38).

Pesquisas acadêmicas da área de formação de professores e políticas públicas, de uma maneira geral, apontam para uma centralidade da formação mais profissional, assim como a preocupação das reformas educativas com o corpo docente, as suas condições de trabalho, sua formação e profissionalização, tendo em vista que há correntes políticas neoconservadoras que querem desvirtuar o debate para que a formação do professor vislumbre uma doutrinação no exercício do magistério. Devemos compreender que um professor tem por objetivo primordial desenvolver um senso crítico nos estudantes, sobretudo quando a sociedade tenta, de maneira rasa e muitas vezes maquiada, propor reformas curriculares que visem restringir a prática docente em sala de aula.

Entendemos que a autonomia é compreendida como a capacidade de tomada de decisões e autogoverno, construída a partir de um processo de participação e redistribuição de poder. Tal processo visa que a ação educativa alcance de forma eficiente seus objetivos na busca de uma educação democrática, plural, equânime e de qualidade, comprometido com um projeto de sociedade.

A autonomia do professor à frente dos trabalhos pedagógicos, além de ser garantida pelo direito constitucional, conforme a liberdade de cátedra (art. 206), possibilita a ele e à escola o poder para organizar seus trabalhos de forma mais eficiente e mais democrática, nos quais a liberdade tem que ser exercida como princípio fundamental. Se transpusermos esse pensamento para o trabalho docente, poderemos, então, compreender a autonomia como liberdade e poder do professor para organizar seu trabalho de forma mais adequada à sua realidade para que, assim, se consigam os melhores resultados.

Considerações finais

Como podemos perceber, discutir a dignidade da pessoa humana e a liberdade do professor não é uma tarefa fácil. No entanto, é algo sempre trabalhado por diversos autores, como os apontados ao longo do texto. Vale ressaltar que reconhecer a importância da autonomia e liberdade do pensamento docente para enfrentar os problemas de seu trabalho na escola é colocar na discussão quais princípios estamos a construir tanto em sala de aula quanto fora dela. Será que, quando elevamos os debates de que os professores, em sua prática em sala de aula, estão doutrinando os estudantes com pensamentos esquerdistas e marxistas, estamos realmente pensando uma sociedade justa, igualitária? Que projeto de sociedade queremos para as futuras gerações? Como posso pensar a dignidade humana se querem tolher o pensamento do docente? Em que medida a liberdade e a autonomia do professor têm que ter um limite? São tantas perguntas e poucas respostas.

José René Câmara Júnior é
Pedagogo, pós-graduado em
Educação e estudante de Direito.
E-mail: rene.camara@hotmail.com

 

Referências

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

BERNE, Eric. O que você diz depois de dizer Olá? São Paulo: Nobel, 1988.

DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

TARDIF, Maurice, LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

___________. A dignidade da pessoa humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

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