Edição 107

Profissionalismo

ERA UMA CASA MUITO ENGRAÇADA… NÃO TINHA TETO… NÃO TINHA NADA… NÃO TINHA CHÃO… O GRITO DE SOCORRO SILENCIADO DOS FILHOS

Rosangela Nieto de Albuquerque

Era uma casa muito engraçada…

Ao pensarmos na educação das crianças, permeamos a questão da família. E construir uma família, um lar, requer muita preparação. Ao nascer, as primeiras relações que a criança vivencia, também chamadas de relações primárias, foram denominadas convencionalmente de família. É um contexto em que o sujeito, invariavelmente, em seus primeiros anos de vida, necessita dos cuidados de outras pessoas, independentemente do vínculo (de consanguinidade, de filantropia, etc.). Ele necessita de cuidados para sua sobrevivência, e esses cuidados vão forjando a criança conforme esse meio. Assim, a criança vai se adaptando às questões culturais e sociais em seu tempo histórico. A constituição da família já traz, em seu bojo, o entendimento de que nesse ambiente é necessário cuidado, trocas, afeto, amor e uma conexão.

6Para Lacan (1938/1985), a família surge primeiramente como agrupamento natural de indivíduos, como uma dupla relação de heterogeneidade biológica. Nas espécies animais, essa função do lugar é o comportamento instintivo, que se constrói mediante uma complexidade. A espécie humana desenvolve características singulares das relações sociais, que são sustentadas pela capacidade de comunicação mental, e se mostra essencialmente adaptativa em seu comportamento próprio, que introduz uma nova dimensão cultural coletiva, uma realidade social na vida psíquica. Dentro dos grupos humanos, a família executa um papel primário na transmissão cultural de suas tarefas tradicionais, espirituais, ritos, costumes e conservação, constrói experiências do patrimônio que são disputadas por ela e por outros grupos sociais. Na família se inicia a primeira educação, baseada na aquisição de processos fundamentados no desenvolvimento psíquico da organização das emoções, gerando novos modelos de família entre as gerações, dando assim continuidade aos próprios conceitos.

Os conceitos de família são inúmeros, mas, quando penso em família, acredito em laços de afetividade, de compreensão e, principalmente, de respeito. Sem deixar de considerar as mudanças pelas quais o mundo passa, a família deve abraçar o outro sem vislumbrar diferenças de raça, cor ou credo, sem predefinições, apenas vendo-o como ele realmente é em sua singularidade.

O desafio da família na contemporaneidade talvez seja a pluralidade de comportamentos, transpassados por várias possibilidades (tecnológicas, sociais, etc.), múltiplas linguagens e novos paradigmas. Então, como educar numa sociedade onde as configurações permeiam modelos sociais em transição? Sem dúvida, os paradigmas primários, como amor, aceitação, atenção, respeito, não devem ser abdicados. No entanto, neste tempo histórico-social, observamos o clamor das crianças e dos jovens em solicitar aos pais ‘‘Eduquem-me!’’. Talvez eles solicitem voltar a sentar à mesa para o jantar, que os pais os olhem nos olhos, e não apenas fiquem focados na vida virtual, isto é, há um mundo real que precisa de vocês, pais!

O que aconteceu com a família? Para o psicólogo Rossandro Klinjey (2018), os pais esperam que a escola seja um segundo lar, mas é preciso que a família seja uma primeira escola. “Nós vivemos em uma sociedade de conexões; se o núcleo familiar não cumpre seu papel, a escola não consegue fazer a função dela, e a sociedade inteira paga por isso”. Certamente, escola e família devem estar integradas, próximas, numa relação mutualista (mutualismo humano), em que ambos tiram proveito e benefício um do outro, sem se prejudicar.

Era uma casa muito engraçada…

Todos sabemos que as transformações biopsicossociais são visíveis a todos. A mulher, cada vez mais, introduz-se no mercado de trabalho, o que lhe confere importante papel no provimento financeiro da família, sendo, muitas vezes, a única provedora. No entanto, acontece o afastamento precoce dos filhos do convívio familiar.

Na perspectiva sociológica, observamos o crescente paradigma de valores individualistas, o que tem favorecido “o viver só”. Desta forma, não é raro ver mães e pais solteiros ou separados que assumem a responsabilidade dos cuidados com os filhos. Enfim, temos um precipitado processo de transformações de toda ordem.

Evidencia-se também que o processo de desenvolvimento da criança está cada vez mais terceirizado (avós, cuidadores, creches, escolas em período integral, etc.), um caminho quase que assistemático, pois cada espaço educativo forja na criança valores, signos, símbolos peculiares e comportamentos variados. As crianças ficam confusas, sem referenciais, e clamam por limites, por paradigmas.

Não tinha teto… Não tinha nada…

Num tempo histórico-social em que o homem e a mulher trabalham fora e quando chegam em casa continuam a terceira jornada, a do lar, muitas vezes envolvidos ainda por demandas diversas via celular, sobra cada vez menos tempo para os filhos. Os pais têm se omitido bastante e estão terceirizando a educação dos filhos. Pressionados, pai e mãe acabam jogando a responsabilidade pela educação sobre a escola. Embora sobrecarregada, a escola tem tentado exercer o seu papel, mas em tese também se apresenta desnorteada diante de crianças que chegam sem ter recebido noções de limites da família.

Nesse contexto, há uma lacuna: pais jogam para a escola, e a escola responde que é função dos pais…

Na verdade, os pais precisam reaprender o seu papel, reconhecer que a formação de seus filhos é de responsabilidade deles e que não pode ser delegada. As crianças estão crescendo e desconhecem o significado de vínculo familiar, do respeito aos pais e professores, dos referenciais de valores, princípios, de organização e do seu espaço no sistema familiar. Eles clamam… pedem socorro!

É importante enfatizar que os pais precisam recuperar atitudes e ações que promovam às crianças segurança, tranquilidade, amor a si mesmas e ao próximo. Sugerimos adiante alguns tópicos que podem ser trabalhados em família.

Dê o exemplo

É muito importante o exemplo. Procurar não mentir, ser gentil, responsável, carinhoso, para que seu filho aprenda com as ações. As crianças iniciam a construção da personalidade com a imitação, através do modelo de comportamento vivenciado no ambiente familiar. Por exemplo, se desejam que os filhos sejam leitores, devem ler para eles e construir espaços de leitura em família. É fundamental respeitar a criança, só se constrói o respeito pelo outro se se é respeitado.

Não tenha medo de frustrar a criança (dizer não)

Os pais tendem a se sentir culpados pelo pouco tempo que passam com os filhos, devido ao fato de trabalharem grande parte do tempo; assim, acabam falhando em estabelecer limites. Muitas vezes têm dificuldade de dizer não, de frustrar os seus desejos; no entanto, com carinho e respeito, o não deve ser dado no momento certo. A criança interpreta a falha dos pais em dar limites como falta de afeto. Explicar para a criança que ela está fazendo algo errado e o porquê da ação fará com que ela aprenda que não se pode fazer tudo e que toda atitude reverbera numa consequência.

Critique os atos, não a criança

Se a criança apresentou uma atitude indesejada, deve-se dizer que a atitude não foi correta, que papai ou mamãe não gostou do que ela fez, mas sem humilhar, diminuir ou denegrir. Não se deve chamá-la com termos que a marquem como preguiçosa, burra ou qualquer termo que menospreze a criança; é muito perigoso, pois geram estigmas. Ela poderá construir uma personalidade pautada em algo negativo e assim se tornar insegura. É importante dizer que o comportamento dela não condiz com a pessoa que ela é, e, nesse momento, é fundamental aplicar elogios, ressaltando suas virtudes.

Elogie o bom comportamento

Os pais e os educadores devem valorizar as pequenas vitórias da criança, mesmo que ela não tenha obtido um grau de excelência; o importante é mensurar o seu desenvolvimento e, quando ela fizer algo de bom, elogiar e mostrar satisfação. Elogiar sempre que houver conquistas serve de estímulo. As crianças aprendem a repetir os comportamentos que são valorizados pelos pais.

A importância do diálogo

O diálogo com a criança vai oportunizar a segurança, a compreensão e a ajudará a conhecer seus medos, suas dificuldades, seus desejos. O ato de ouvir aproxima as pessoas, entes queridos, pais, parentes, amigos; portanto, a arte do diálogo deve ser fomentada em todas as relações.

Limite o tempo de TV e Internet e organize os horários

A tecnologia tem importância na educação das crianças, entretanto é preciso cuidado com computador, tablet, celular, Internet, pois, em excesso, tornam-se prejudiciais; além de diminuir o tempo da criança em outras atividades, há também o perigo da violência configurada de várias formas.

Estabelecer horários para a criança é fundamental. Ela precisa de rotina, horário para acordar, comer, dormir, estudar. Esta organização deve se iniciar desde muito cedo, pois a criança bem pequena aprende que há tempo para cada ação. Ela aprende a organizar seu pensamento, a seguir regras, a desenvolver a responsabilidade. Cabe aos pais elaborar essa rotina. Por exemplo: dormir cedo porque amanhã terá que acordar para ir para a escola. Certamente, as pausas também são fundamentais, após as atividades de estudo também terá o tempo de lazer, enfim, a organização de horário e a prática diária (rotina) ajudarão a criança a compreender o mundo e irão prepará-la para o futuro.

Seja presente na educação escolar

Procure vivenciar com a criança cada dia da vida escolar, ter contato com os professores, participar dos eventos, comparecer às reuniões de pais e aos plantões pedagógicos, conhecer os amigos e participar da vida social da criança. Esta vivência demonstra para a criança o quanto você valoriza a escola e a vida dela.

Cooperação é sinal de cuidado. Dê tarefas domésticas

É importante que a criança coopere com as atividades em casa, certamente, em consonância com a idade. As tarefas farão com que a criança aprenda a autonomia, adquira responsabilidade, desenvolva a tomada de decisões. Inicie com atividades simples, por exemplo: guardar seus brinquedos, arrumá-los em seu espaço; com o tempo poderá ir introduzindo outras atividades, como arrumar a mesa para o jantar, etc., conforme a idade da criança. Ela se sentirá feliz por participar, e isso já desenvolverá o comportamento de cooperação em família.

Seja firme, com carinho

A criança precisa de explicação para aprender e conhecer o mundo, converse com clareza, respeitando o seu nível de cognição, lembre-se de que a lógica da criança é diferente da do adulto, ela está ainda em desenvolvimento. Seja firme com carinho, ela precisa ser respeitada e necessita conhecer limites. Por exemplo, dizer para a criança que ela precisa se comportar é muito abstrato para ela, deve-se ser coerente e firme, e explicar qual comportamento ela deverá ter naquele lugar (espaço social). A comunicação é muito importante, o diálogo é fundamental, converse muito e abra espaço para que a criança fale.

Não negocie o inegociável

É necessário ensinar que as atitudes têm valor em si para que não se construa uma relação de troca. Hoje, muitos pais vivem premiando a criança por atos que devem ser realizados naturalmente, assim a criança aprende que, para tudo o que faz, tem que ganhar algo (trocas). É importante limitar os mimos. A criança que tem tudo ou é premiada em excesso costuma não dimensionar o valor da compra e o esforço para adquiri-la. Devido à ausência, por trabalharem durante grande parte do tempo, os pais introjetam a culpa da ausência e começam a prometer presentes, às vezes até em troca de comportamentos desejáveis (que deveriam ser naturais). Assim, a criança compreende que sempre será premiada, causando confusão entre busca e conquista.

Não tinha chão…
O grito silenciado de socorro

O que vivenciamos hoje é uma casa sem teto… sem chão… filhos perdidos, que só querem ser amados, cuidados e receber atenção. Nos lares, temos pais presentes-ausentes, e os filhos num grito silenciado de socorro.

O grito silenciado é claramente observável à medida que crianças e jovens se automutilam conduzidos por “jogos virtuais”, como a Baleia Azul, a boneca Momo. Ficamos estarrecidos com o “poder” que esses “jogos virtuais” exercem sobre a criança/jovem. Quantos outros “jogos manipuladores” ainda virão? Por que a criança/jovem “obedece”, “se envolve” nesses jogos violentos e manipuladores? Por que obedecem aos jogos e não comunicam aos pais/cuidadores? Ainda não estão seguros o suficiente para entender que é um mecanismo violento de manipulação? Será um grito de socorro?: ‘‘Queridos pais, eu estou aqui… Não sei como agir!’’.

A nossa casa é muito engraçada… não tem teto… não tem nada… não tem chão, é assim que muitas crianças e jovens se sentem hoje. Elas clamam por cuidado, atenção, segurança, por uma educação com limites, princípios e valores. Seus gritos de socorro pedem que as eduquem, mas não sabem como pedir ajuda, muitas vezes estão silenciadas pelas negociações impregnadas da chamada pós-modernidade. Pais descompromissados geram filhos perdidos, 7desorientados.

Considerações finais

O grito de socorro das crianças e dos jovens está silenciado dentro da própria casa, e muitas vezes não é ouvido. Elas pedem que os pais as eduquem, que as vejam, que lhes deem atenção. O espaço que os pais deixam são lacunas que as configurações da violência tomam conta. Crianças e jovens pedem socorro! Os pais devem aproveitar o tempo junto com os filhos, as longas jornadas de trabalho afastam o que há de melhor que é o con-viver. Por favor, desliguem o celular, deem toda atenção à criança, cuidem, fiquem abraçadinhos, contem uma história, façam algo juntos (em parceria), procurem saber de seus amigos, como foi o dia na escola, o que aprenderam, interessem-se por seu dia, sua vida, isto lhes dará segurança, desenvolverá o afeto, o respeito e a tranquilidade e, certamente, teremos crianças e jovens mais saudáveis e felizes.

 

Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Untref), pós-doutoranda em Psicologia (Universidad John F. Kennedy), Doutora em Psicologia Social (Universidad John F. Kennedy), Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), consultora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), professora dos cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora do curso de Pedagogia, autora e organizadora de dez livros.

E-mail: rosangela.nieto@gmail.com.

KLINJEY, Rossandro. Help! Me eduquem. São Paulo: Letramais, 2018.

LACAN, J. [1938]. Os complexos familiares na formação do indivíduo – ensaio de análise de uma função em Psicologia.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

POSTER, M. Teoria crítica da família. (Trad. Álvaro Cabral). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

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