Edição 46

Professor Construir

Filosofia com crianças e educação para a paz como vivência

Luciana Kalil Santos

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No final da década de 1960, Matthew Lipman, professor universitário de Filosofia, elaborou o programa de ensino de Filosofia para crianças, visando cultivar o desenvolvimento das habilidades cognitivas com a discussão de temas filosóficos. Inspirado nas experiências como professor de Lógica, criou novelas filosóficas que provocavam o pensamento lógico desde a infância. Lipman escreveu novelas para crianças e jovens com questões lógicas direcionadas para ética, literatura, artes, política e temas sociais.

As novelas de Lipman estão baseadas em quatro conceitos fundamentais: Filosofia, investigação, diálogo e educação democrática. Para ele, o pensamento deve ser crítico, criativo e cuidadoso.

Lipman falou da possibilidade de fazermos Filosofia para crianças usando as novelas filosóficas dentro das comunidades de investigação, como forma de suscitar e problematizar um tema até que se torne o problema filosófico do grupo. Esses métodos inspiraram muitas reflexões e criaram novas vertentes sobre Filosofia e crianças.

O diálogo filosófico com crianças é o resultado de pesquisas e estudos que elaboraram a Filosofia com crianças. Essa vertente parte da ideia de que as crianças são filósofas e precisam de estímulos para aprender a organizar o pensamento, conforme pensou Lipman. A Filosofia com crianças incita o exercício de pensar sobre o próprio pensar, dá os instrumentos necessários para que, a partir do que já foi construído, a criança possa elaborar novos conhecimentos, desenvolver seu potencial criativo, enfrentar novos desafios, relacionar as informações e tirar suas próprias conclusões, questionando sua estrutura do pensar. Pela motivação, a Filosofia com crianças ensina a imaginar, ao fazer a criança pensar a realidade que gostaria de viver e a pessoa que gostaria de ser, pensando também no que seria necessário para alcançar o pleno potencial como ser humano.

Na prática, o filosofar com crianças diferencia o fazer e o aplicar. Para Sócrates, a Filosofia não é conhecida nem aplicada, é praticada. Então, algo só pode ser compreendido à medida que é realizado no dia a dia até se tornar um hábito. Motivar a abstração do pensamento, refletir sobre questões práticas, realizar um passeio da mente contribuem, tornando o pensar um prazer e a construção de perguntas filosóficas um hábito da própria criança, uma ferramenta de construção.

Comunidade de Investigação (CI) filosófica, conceito desenvolvido por Lipman, é utilizada também na Filosofia com crianças. A CI transforma o movimento do espaço educacional com o diálogo investigativo. A aprendizagem se dá na parceria: o outro aprendeu quando você aprendeu tentando ensinar o outro. Nesse lugar, todos se tornam investigadores; cada pergunta, cada questão levantada é uma colaboração para o avanço da investigação. O professor é participante e facilitador, direcionando perguntas que auxiliem o aprofundamento na temática. A diferença da CI para outra dinâmica em círculo com o grupo é a nova dimensão alunoaluno, contribuindo para que a horizontalidade de poder circule em sala de aula. Aprender é ensinar a si mesmo a arte de ensinar, de modo que se possa ensinar a si próprio a arte de aprender.

Dessa forma, falar em “converter a sala de aula em uma comunidade de investigação”¹, para Pierce, significa transformar os espaços de Educação em vivência, história, expressão, problematização, questionamento, diálogo filosófico, mediação, sistematização.

E esse espaço se transforma para dividir opiniões com responsabilidade e questões que desenvolvam a troca de ideias a partir do diálogo. A alma da CI é o diálogo, pois tem o caráter de transformar o espaço de investigação filosófica em um lugar seguro para expor as opiniões.

O professor precisa encorajar o questionamento, a crítica, a discussão, agindo como um facilitador que é ora dirigente, ora moderador, ora defensor da invenção. O professor precisa ser capaz de fomentar o diálogo ao menos até a comunidade não mais precisar de apoio externo ou suporte. O que precisa se tornar a segunda natureza da comunidade não é um conjunto de conceitos com os quais todos concordam, mas um conjunto de procedimentos que a todos tem auxiliado. A atmosfera que a comunidade precisa possuir é a que encoraja o pensamento por si mesmo tanto quanto o pensamento conjunto, aquele que admira a individualidade, como também a solidariedade.

A CI forma-se no diálogo investigativo, colaborando para o resgate do empoderamento do aluno e do professor, que se sente responsável e autor da atividade coletiva.

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Ética da paz na comunidade de investigação

É possível pensar e construir a paz a partir da Filosofia com crianças? O problema consiste em mostrar que a “chuva de ideias”, com questionamentos, contribuição de dúvidas e perguntas que motivam a indagação filosófica e possibilitam a construção coletiva do pensamento, direciona o pensar na construção de uma ação que concretize a reflexão do exercício filosófico.

Existe uma ética da paz na CI? A ética de paz como objeto, que permeia a Filosofia, propõe a existência de uma ética que seja voltada para a cultura de paz.

Pensamos que a ação moral proponha uma postura de paz. E que os espaços para discussões críticas estimulem o jovem a opinar e a avaliar seu próprio ponto de vista, renovando naturalmente sua postura crítica. Percebemos que é possível, a partir do ensino da ética, gerar inquietações que passem da reflexão à prática de atitudes e ações de valores éticos que construam a ética de paz com métodos reflexivos.

Relacionar a ética presente nos diálogos e nas discussões filosóficas à ética promovida pela cultura de paz visa propor uma relação da ética e do olhar filosófico voltado para a paz. Ou seja, é necessário relacionar a ética presente nos diálogos e nas discussões filosóficas à ética promovida pela cultura de paz.

Acredita-se que crenças, valores éticos e morais estão intrínsecos às discussões investigativas, como método de filosofar com crianças. A paz é uma vivência construída na relação na CI, que surge como lugar de “ensaio” e construção da cultura de paz.

É importante ressaltar que o objeto deste trabalho é a paz possível a partir do diálogo, da comunicação e da escuta, e o objetivo é problematizar a Comunidade de Investigação para as possibilidades dessa prática.

Propor a paz como conteúdo de reflexão filosófica não seria a principal intenção desta reflexão, pois gostaríamos de observar o espaço sala de aula transformado num espaço de investigação coletiva, que procura proporcionar as situações numa “microssociedade”.

A CI é o método que desenvolve as características da cultura de paz. Podemos pensar, por exemplo, na disposição dos alunos e do professor em círculo: ela tem o claro objetivo de permitir que todos possam olhar uns aos outros, comunicar-se diretamente e discutir as questões em consideração, sem que ninguém ocupe um lugar de destaque. A organização das cadeiras enfileiradas é rompida. No entanto, a formação do círculo por si só não implica qualquer alteração da turma, a não ser que sejam compreendidos os fins aos quais tal disposição se destina e que os membros desse grupo se disponham a realizá-los.

A paz pode ser compreendida como construção, que segue como metodologia a vivência de forma a abrir escolhas, acreditando que a vivência de determinada situação envolve o ser, deixa-o atento, além de evocar o sujeito a participar. A vivência é, em si, consciente, torna-se vivência na medida em que o ser envolve com o vivenciado e torna esse momento duradouro. Isso faz a vivência infalível em sua essência, não diferencia do que é. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer entende o conceito de vivência como dimensão estável, no sentido de que o que é vivenciado vai além da simples sensação ou percepção experimentada no momento do episódio. O mero episódio se transforma em vivência quando há diálogo, do ser que se abre e do mundo que abandona a distância, numa relação de significado e disponibilidade. Educar para a paz, além de transformar a forma de educar, é superar o caráter fragmentário que caracteriza o sistema educacional. O desafio de vivenciar a paz é superar as distâncias e somar significados na transformação de sentido.

Então, iremos observar, sob essa metodologia, o processo de ensino e aprendizagem como espaço de vivência e convivência² e apresentar uma forma de como pode ser construído no espaço escolar³ com a transformação não só do conteúdo, mas de todo processo que envolve a ação de ensinar e a ação de aprender. Devemos esclarecer a noção de aprender e a de ensinar, relacionadas a todo ato educacional e entre si, mas não necessariamente vinculadas. E tendo observado isso, também nos deve estar claro que essa relação da ação de ensinar e aprender ocorre tanto individual quanto coletivamente, sendo uma construção interior do sujeito provocada e/ou estimulada por ações externas, pois, também nas capacidades coletivas, desenvolvem-se as aprendizagens. A partir da crença de que a paz se constrói e se consolida com a promoção de ações e atitudes, criamos a possibilidade de conhecer e identificar a paz que queremos promover para criar e propor, no espaço escolar, a expansão da cultura da paz, incentivando a equipe de educadores, educandos, pais e toda a comunidade escolar que está envolvida a vivenciar, no dia a dia da escola, os princípios da paz.

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Alguns autores apontam a relação do conteúdo e do método na Educação, como o espanhol Xésus Jares, autor de Educação para a paz: sua teoria e sua prática (1999). Para ele, a forma como se educa está vinculada ao processo pedagógico complementado pelo conteúdo, é na unidade entre a forma e o conteúdo que se estrutura a Educação para a paz.

Em Guimarães (2005), os conceitos de Educação sobre a paz e Educação para a paz são distintos. A Educação acerca da paz fornece informações e conteúdos sobre o tema, sem relacionar com o contexto, assemelhando-se ao processo de transmissão. E o segundo conceito, do qual trata este trabalho, considera a unidade forma e conteúdo no processo da educação para a paz, sendo inseparável o todo do sujeito para que haja compreensão. Para Guimarães, a construção de uma cultura de paz através da Educação acontece

[…] combinando o ensino e a aprendizagem de capacidades (cooperação, pensamento crítico, empatia, assertividade…), o conhecimento (os próprios da Educação sobre a paz) e as atitudes (autorrespeito, compromisso com a justiça, respeito pelos demais, etc.) (2006, p. 357).

É preciso estar consciente da unidade que se dá entre o método e o conteúdo e da não existência de fronteiras em que se baseia nossa tradição. Trata-se de vivenciarmos as questões da paz no método e conteúdo, superando o caráter fragmentário que separa o que está necessariamente vinculado para que seja possível a compreensão e a transformação.

No processo em que o ensino e a aprendizagem se relacionam, os sujeitos entram em contato com todo o universo que se apresenta a eles, direta e indiretamente; com isso, aprende e ensina não só o conteúdo estabelecido, pois todo espaço se comunica, e tudo que se comunica é interpretado.

A “acontencialidade do ato educativo”, assim como chama Guimarães, para dizer que não há como planejar o resultado do ato educativo, acontece de maneira voluntária e, muitas vezes, não intencional. Devemos buscar na vivência um caminho para dizer o que não é dito nas palavras; rompendo com o convencional, iremos achar uma vivência pessoal.

Jares define dois aspectos que considera a favor da paz e imprescindíveis. O primeiro diz respeito à criação de grupos, que indica o cultivo das relações interpessoais e a educação da afetividade; e o segundo aspecto é aprender com a convivência com o outro, que é fundamental na resolução de conflitos. Considera que

[…] a Educação para a paz é um processo dinâmico, ativo e permanente, fundamentado nos conceitos de paz e na perspectiva criativa do conflito, que pretende desenvolver um novo tipo de cultura — a cultura de paz — que ajude as pessoas a olhar criticamente a realidade para poderem situar-se diante dela e, consequentemente, agir (1999, p. 145).

O diálogo como modo de existência

Estabelecer o diálogo como modo de existência é acreditar que somos comunicação, que estamos em constante relação com o mundo e com os outros. A hermenêutica filosófica compreende o ser humano como diálogo e além da capacidade de comunicação e conversação.

Refere-se ao ser humano enquanto ser de diálogo, enquanto comunicação e natureza dialogante. O ser humano é diálogo através da palavra, na experiência dialógica. Para o filósofo alemão Martin Heidegger, o próprio fato de que nós, seres humanos, somos compreensão, não só de compreender, mas de dar sentido, nos dá unificação.

Enquanto ser humano, sou compreensão, sou ser de sentido. Compreender como existencial. Compreender é fato histórico, o ser é, em si, história, historicidade. Parte da pré-compreensão, conforme Heidegger.

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“O diálogo mostra em si a essência da cooperação na estrutura um-com-o-outro, quando, no mínimo, dois sujeitos interagem” (GUIMARÃES, 2005, p. 234). No diálogo, abro-me para o outro e para a transformação nessa abertura. Nesta crença, “Sou no mundo à medida que me relaciono”; podemos ver que a compreensão do mundo se dá nessa experiência um-com-o-outro no mundo. A condição fundamental do diálogo é a mútua abertura. Sem abertura, não há diálogo nem verdadeiro vínculo. Estar aberto ao diálogo significa escutar o outro e conhecê-lo, deixá-lo ser; permitir abandonar a mim próprio e ouvir o outro.

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Se não existe essa mútua e verdadeira abertura, tampouco existe esse verdadeiro vínculo humano. Pertencer-se uns aos outros quer dizer, sempre e ao mesmo tempo, poder-ouvir- -se-uns-aos-outros. Quando dois se compreendem, isso não quer dizer que um compreenda o outro, isto é, que olhe de cima para baixo. E, igualmente, escutar o outro não significa simplesmente realizar às cegas o que o outro quer. A quem é assim, chama-se submisso. A abertura para o outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que o vá fazer valer contra mim (GADAMER apud GUIMARÃES, 2005, p. 235).

No diálogo, existe entre parceiros uma busca comum, como é experienciado na CI. O diálogo é compreendido como caminho para chegar à paz, o caminho é a própria paz através do diálogo.

Na Educação para a paz, a vivência e o diálogo caracterizam a compreensão da paz. No diálogo, há a possibilidade de que ocorra uma relação entre o eu e o tu e de que a distância do nosso pensamento se una num só, num terceiro pensado entre eu e tu. É a troca com o outro que acontece no diálogo, na abertura que gera construção conjunta de pensamentos. Esse processo instaura uma transformação. Instaura novas formas de ser no mundo. Quando há entendimento, há compreensão, torna-se uma vivência.

A Educação para a convivência, como alguns estudiosos chamam a Educação para a paz, adquire transcendência como possibilidade de fortalecimento e empoderamento do grupo e do indivíduo.

Pode existir aprendizagem sem o ensinamento de outros, mas não existe aprendizagem sem o ensino de si mesmo por si mesmo, o que torna a aprendizagem possível. Não pode existir o ensino sem a aprendizagem, assim como não pode existir uma causa sem um efeito ou uma observação de uma partícula que não altere o estado daquela partícula. A Educação para a paz é a experiência que provoca um espaço de reflexão e investigação transformada em vivência a partir da conexão em si mesmo para estendê-la aos outros.

1 Cit. O Pensar na Educação — Matthew Lipman, 1995, p. 142.
2 O uso do termo vivência remete à experiência própria no envolvimento total com o vivenciado, na forma de uma relação intensa com aquilo que é experienciado. Assim como aponta Sardi, ao dizer que “A vivência, no entanto, como a compreendemos deve se produzir originariamente na esfera da interioridade. E o filosofar requer a contínua correlação entre vivência e linguagem, desde o perguntar, a metáfora, a expressividade criativa, o desdobramento lógico do diálogo, entre outros” (2001, p. 21). E o conceito de convivência, compreendemos como viver-com, na relação com alguém.
3 O conceito espaço escolar identificado não como espaço físico, recebendo caráter exclusivista do ensino-aprendizagem, pois o ensinar e o aprender são constantes em nossas ações e relações. Além disso, concebemos a ideia do caráter formal, não formal e informal do ensino.

Luciana Kalil Santos é especialista em Educação para a paz, monitora do curso de especialização Filosofia e o Ensino e colaboradora do Nepevi, todas as atividades realizadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

E-mail: kalil_lu@yahoo.com.br

Referências Bibliográficas

GUIMARÃES, Marcelo R. Educação para a Paz: Sentidos e Dilemas. Caxias do Sul: Educs, 2005. _________. A Educação para a Paz como Exercício da Ação Comunicativa: Alternativas para a Sociedade e para a Educação. In: Revista Educação/Faculdade de Educação. Porto Alegre, RS, ano XXIX, n.2, maio/ago. 2006, p. 329–368.
JARES, Xésus R. Educação para a Paz: sua Teoria e sua Prática. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002. ________. A Cidadania Democrática. Pátio. Porto Alegre, ano VI, n° 21, p. 11-13, maio./jul. 2002.
LIPMAN, Matthew. A Filosofia Vai à Escola. Tradução: Maria Elice de Brzezinski Prestes e Lúcia Maria Silva Kremer. São Paulo: Summus, 1990. ________. O Pensar na Educação. Tradução: Ann Mary Fighiera Perpétuo. Petrópolis: Vozes, 1995.
ONU. Declaración y Programa de Acción sobre una Cultura de Paz. Nova York: ONU, 1999.
SARDI, Sérgio A. A Vivência como Princípio Metodológico no Filosofar com Crianças. In: FÁVERO, A. et al. Um Olhar sobre o Ensino de Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 113-128. In: Caderno Marista de Educação/Grupo de Trabalho em Educação da Província Marista de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, v. 1, nº 1, Dezembro 2001, p. 19-36. In: Revista do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, v. 27, nº 2, julho/dezembro 2002, p. 59-68.

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