Edição 46

Espaço pedagógico

Filosofia e ética para crianças: uma proposta interdisciplinar

Dora Incontri

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Filosofia é um assunto que não interessa só ao especialista porque — por mais estranho que isto pareça — provavelmente não há homem que não filosofe; ou, pelo menos, todo homem se torna filósofo em alguma circunstância da vida. […] O importante é que todos nós filosofamos, e até parece que estamos obrigados a filosofar (BOCHENSKI, 1977:21).

Até agora, a Filosofia tem sido mantida distante da criança e, dependendo da abordagem pedagógica e antropológica que fizermos, ela deveria mesmo estar afastada. O problema não é nada simples, porque, para alguns, a racionalidade necessária à elaboração do pensamento filosófico ainda não estaria presente, pelo menos nas primeiras fases da infância; enquanto, para outros, a capacidade de indagação, questionamento e perplexidade, que constitui a ferramenta principal da Filosofia, se mostra com toda a força e espontaneidade justamente na criança. Por exemplo, Gareth Matthews considera que a teoria piagetiana estaria em oposição a essa possibilidade:

Piaget pretende corroborar suas afirmações sobre as fases de desenvolvimento por meio da descoberta dos mesmos padrões de resposta em todas as crianças. Essa descoberta seria uma comprovação de que a reflexão das crianças realmente se desenvolve dessa maneira. A resposta incomum é desconsiderada por ser um indicador não confiável das maneiras como as crianças pensam; […] contudo, é a resposta divergente que costuma ter um interesse maior para a Filosofia (MATTHEWS, 2001:46).

Narrando diálogos altamente sugestivos, e sempre espontâneos, em que crianças propõem perguntas e, às vezes, soluções filosóficas que foram as mesmas questões e propostas tratadas por grandes filósofos da história, Matthews arrisca-se a dizer que:

O adulto tem um domínio da língua superior ao da criança e pelo menos o potencial para dominar com mais segurança os conceitos expressos pela língua. Todavia, é a criança que tem olhos e ouvidos atentos para a perplexidade e a incongruência. As crianças também costumam ter um grau de franqueza e espontaneidade difícil de encontrar nos adultos (MATTHEWS, 2001:46).

Narrando diálogos altamente sugestivos, e sempre espontâneos, em que crianças propõem perguntas e, às vezes, soluções filosóficas que foram as mesmas questões e propostas tratadas por grandes filósofos da história, Matthews arrisca-se a dizer que:

O adulto tem um domínio da língua superior ao da criança e pelo menos o potencial para dominar com mais segurança os conceitos expressos pela língua. Todavia, é a criança que tem olhos e ouvidos atentos para a perplexidade e a incongruência. As crianças também costumam ter um grau de franqueza e espontaneidade difícil de encontrar nos adultos (MATTHEWS, 2001:46).

Nas últimas décadas, o Programa de Filosofia para Crianças, proposto pelo norte-americano Matthew Lipman e que hoje atrai o interesse da Unesco e do Unicef, tem mostrado a possibilidade e a necessidade de tal prática. Lipman “[…] lançou a ideia de que as crianças podem e merecem ter acesso à Filosofia” (KOHAN & WUENSCH, 1999:9). Mas, ao mesmo tempo em que abriu caminho e quebrou tabus nesse campo — e se fosse somente essa a sua contribuição, já seria excelente —, seu programa não deixa de suscitar questionamentos mesmo entre aqueles que consideram possível e desejável introduzir a Filosofia entre as crianças. Nenhum ato pedagógico pode se dar sem uma finalidade ética. Muito menos a Filosofia poderia estar divorciada disso. A Ética, sendo uma necessidade existencial e social para os seres humanos de todos os tempos e igualmente um ramo da Filosofia, que estuda essa necessidade e propõe seus princípios, tem sido objeto de propostas curriculares (vejam-se os PCNs, com seus temas transversais) e de estudos e experiências pedagógicas.

Para Lipman, o próprio desenvolvimento de uma Comunidade de Investigação, dentro de seu método de filosofar com as crianças, é uma proposta ética, desenvolvendo a capacidade de cooperação e interlocução tolerante entre os membros dessa comunidade. E mesmo fora do contexto das ideias lipmanianas, a interdisciplinaridade, que hoje se reconhece como necessária para novos processos educacionais, permite as pontes entre Ética e Filosofia, já naturalmente aparentadas.

O método de Lipman, porém, tem enfrentado algumas críticas procedentes (ver, por exemplo, SILVEIRA, 2001) por se tratar de uma proposta embebida no pragmatismo norte- -americano, com pouca relação com a nossa realidade, e por estar enraizada em uma determinada concepção de mundo, mas pretender-se neutra do ponto de vista teórico. O professor Samuel Skolnikov, da Universidade Hebraica de Jerusalém, põe em questão a própria Ética que se pretende embutir na Comunidade de Investigação. A seu ver, isso descaracteriza o pensamento filosófico genuíno e submete o indivíduo à coletividade: “O pensamento individual não deriva da comunidade, ele pode ser ocasionado ou estimulado pela comunidade, mas é essencialmente diferente de uma investigação conjunta” (SKOLNIKOV, 2000:94).

Outra objeção feita a Lipman, a nosso ver bem mais séria, é que seu método conduziria a um relativismo. Eis uma questão delicada, pois um dos perigos em que pode incorrer a Filosofia para crianças é o de tornar-se uma doutrinação, para a qual elas não teriam defesa. Como escapar do autoritarismo ideológico sem cair na relativização exagerada que leva ao ceticismo? O objetivo do programa de Lipman é o desenvolvimento de “habilidades de pensamento” e, nesse desenvolvimento, pensa ele resolver essa contradição. Comenta, porém, Silveira:

Ora, “avaliar evidências”, “detectar incoerências e incompatibilidades”, “tirar conclusões válidas”, “construir hipóteses”, “empregar critérios”, são todos procedimentos lógicos. […] A saída proposta por Lipman para o seu dilema entre relativismo e absolutismo é infrutífera, pois, ao fiar-se nas ferramentas da lógica para solucioná-lo, acaba por deslocá-lo do âmbito epistemológico para o estritamente lógico e metodológico. A discussão, no entanto, deve ser posta em termos de verdade, e não apenas de validade ou coerência. Como, porém, a lógica não se ocupa da verdade, o dilema permanece insolúvel (SILVEIRA, 2001:168,173).

No caso da Ética, o relativismo (com a abolição de critérios e possibilidade de verdade) pode levar a um indiferentismo moral, que seria o avesso de qualquer educação e, ao mesmo tempo, pode se caracterizar também como uma doutrinação — a doutrina do niilismo pode ser tão dogmática quanto qualquer outra doutrina. (Com isso, vê-se que o risco de doutrinação está sempre presente, mas, se não o enfrentarmos com honestidade, nem poderíamos fazer educação.)

Nesse sentido, temos desenvolvido um trabalho de Filosofia e Ética para crianças, que, em primeiro lugar, leva em conta as especificidades da cultura e dos costumes do povo brasileiro, com sua grande capacidade afetiva, criatividade e religiosidade. Essa inserção em nossa cultura está (por acaso ou não) perfeitamente de acordo com o considerar-se o ser humano como um ser integral, dentro da visão pedagógica dos grandes clássicos da Educação, tais como Comenius, Rousseau e Pestalozzi. Por isso, não poderíamos dissociar jamais a Filosofia de outras áreas do conhecimento, encurralando- a apenas num jogo de lógica formal, mas fazê-la sempre interdisciplinar, voltada para a formação ética e geradora de atitudes concretas.

A criança é, sim, capaz do ato de filosofar, pois, como Comenius, achamos que:

Não é necessário introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o gérmen e fazer-lhe ver qual a sua natureza. Por isso, Pitágoras preocupava-se em dizer que era tão natural ao homem saber tudo que, se fossem apresentadas com jeito a um menino de sete anos todas as questões de toda a Filosofia, com certeza responderia a todas com segurança (COMENIUS, 1999:118).

Assim, qualquer ideia de Filosofia para crianças tem de se basear numa concepção otimista de que o ser humano já traz em si as potencialidades de reflexão crítica e aplicação prática das virtudes morais e de que basta desenvolvê- las com uma orientação pedagógica adequada. Esse pressuposto anula tanto a possibilidade de doutrinação — pois não se quer impor algo de fora, mas extrair algo de dentro — quanto o relativismo, porque esse não é natural entre as crianças, o que poderia evidenciar (excelente objeto para outro estudo) a natureza imanente de certas verdades morais.

A orientação pedagógica de tal projeto não deve lançar a criança numa esfera distante, pois “o filósofo não se afasta de modo algum da realidade cotidiana, mas, sim, das interpretações e valorações cotidianas do mundo […]” (LAUAND, 1988:68). Compreenda-se assim que uma proposta de Filosofia para crianças não pode ter uma receita pronta, apostilada (é essa uma das críticas feitas ao método de Lipman), pois trata-se também de partir do interesse, da realidade e do contexto dos alunos.

Além disso, considerando-se a criança como um ser integral, dentro da concepção de Pestalozzi de que a Educação deve se dirigir às mãos, à cabeça e ao coração (simbolizando a ação concreta, a racionalidade e o sentimento), uma prática pedagógica envolvendo Filosofia e Ética não pode ser apenas algo dirigido à razão. Deve ter raízes na afetividade e na estética, o que é bem mais fácil de se operacionalizar em nossa cultura, pouco afeita à lógica formal de um Lipman, mas bastante sensível ao estímulo afetivo e estético. Nesse sentido, podem ser usados textos poéticos, músicas, vídeos, histórias, peças de teatro para desencadear um processo de reflexão e estimular sentimentos morais. Segundo Rousseau, aliás, o fazer moral baseia-se em sentimentos, e não apenas em princípios racionalizados. Diz ele que “Nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de termos ideias” (ROUSSEAU, 1969:600).

Outro aspecto da proposta é que, dentro dos princípios que vêm se desenvolvendo desde Rousseau, passando por Pestalozzi e chegando mesmo a Piaget, todo aprendizado deve ser ativo, e isso igualmente no campo moral: “É fazendo o bem que alguém se torna bom” (ROUSSEAU, 1969:543). Vejamos o que diz Piaget a respeito:

A “escola ativa” baseia-se na ideia de que as matérias a serem ensinadas à criança não devem ser impostas de fora, mas redescobertas pela criança por meio de uma verdadeira investigação e de uma atividade espontânea. “Atividade” se opõe, assim, à receptividade. A educação moral ativa supõe, consequentemente, que a criança possa fazer experiências morais e que a escola constitui um meio próprio para tais experiências (PIAGET, 1999:20).

Por isso, toda proposta de reflexão filosófica e estímulo ético deve, necessariamente, desembocar em algum tipo de ação concreta, seja pela produção de textos, quadros, canções, teatro, seja por um engajamento dos alunos em trabalhos solidários, campanhas, formação de grupos de trabalho dentro da escola e fora dela.

Experiências práticas

Anos atrás, na década de 1990, realizamos tal proposta numa escola particular em São Paulo (Colégio Nova Era), e, atualmente, cada um de nós a está aplicando separadamente numa escola particular em Jundiaí, a Escola Jean Piaget, e numa escola pública em Bragança Paulista, a Escola Jorge Tibiriçá1. (Os dois projetos têm apenas um semestre; devem, portanto, se desdobrar ainda em muitas outras propostas.)

Entre os objetivos propostos em nosso trabalho, estão:

Despertar o espírito crítico-filosófico, estimulando o debate e o raciocínio.

• Aumentar o horizonte cultural das crianças, trazendo informações que geralmente não são tratadas na escola.

• Integrar o trabalho cultural com o aspecto ético, despertando valores universais, como fraternidade, justiça, solidariedade, não violência, etc.

• Incentivar a participação ativa de todos os alunos, estimulando um ambiente democrático na escola.

• Trazer elementos da Arte-educação como ganchos culturais e como estímulo à produção dos alunos.

• Conectar valores universais com as diferentes formas de fé religiosa, numa abordagem ecumênica.

Para exemplificar os procedimentos adotados, narramos aqui dois projetos paralelos com alunos de primeira a quarta séries, na Escola Jean Piaget, de Jundiaí, e na Escola Jorge Tibiriçá, de Bragança Paulista.

Relato da experiência da Jean Piaget

Na primeira fase, fiz um trabalho de sensibilização para Ética, já introduzindo um início de reflexão crítica a respeito dos grandes temas da virtude, mas não como abstrações. Os debates partiram de situações concretas da vida ou de histórias que provocaram um questionamento dos comportamentos das crianças diante da vida. Nenhuma das nossas reflexões, seja sobre Ética, seja sobre Filosofia, ficou sem um paralelo com a realidade das crianças.

No primeiro bimestre, iniciei o trabalho com o tema Grécia, pois foi lá que nasceram a Filosofia e a Ética como matérias específicas. Estudamos alguns aspectos da cultura grega: a arte, a arquitetura, os jogos, a mitologia, a religião. Esses aspectos foram abordados de maneira simples, para a compreensão das crianças. Ilustrei essas aulas com diversos livros que tinham imagens da Grécia. Mostrei também dois CD-ROMs com obras gregas, fizemos jogos que estavam nos CDs a respeito dessas obras, localizamos a Grécia no mapa. Como encerramento desse trabalho, produzimos cartazes, com colagens de revista, sobre o que é uma ação ética e o que não é. Primeiro, discutimos o nascimento da Ética; depois, analisamos como ela deve ser usada na vida.

Após o término desse tema, iniciamos com a virtude da polidez, contei a história do “por favor”, do Livro das Virtudes. Em seguida, discutimos e realizamos um teatro com as palavras mágicas: por favor, obrigado, dá licença. Depois, lemos e discutimos uma história divertida sobre a virtude dos meninos e criamos uma versão para a virtude das meninas. E fizemos, para encerrar esse tema, mais duas atividades: um cartaz escrito com essas virtudes e uma autoanálise, em forma de pintura, sobre quais são as minhas ações éticas e quais não são.

No segundo bimestre, com as primeiras e segundas séries, a virtude tratada foi a coragem. Narrei uma história de Hércules do livro de Monteiro Lobato Os Doze Trabalhos de Hércules. Depois, contei uma história do Livro das Virtudes, também sobre Hércules. As duas abordavam o caráter da força nos feitos do herói. Ilustrei as aulas, passando um desenho sobre o personagem, chamando a atenção dos alunos para identificar quais eram os aspectos de sua coragem. Em seguida, estudamos a coragem da não violência, ou, como chamamos, a coragem do amor. Utilizei a história de Sócrates, com enfoque nos seus feitos pela justiça e verdade. A partir daí, discutimos as diferentes formas de coragem: a coragem dos fortes e a coragem do amor. Depois, analisamos as situações em que é preciso ter coragem no dia a dia e qual delas nós usamos.

Como encerramento desse tema, cada classe produziu uma história coletiva e desenhos. Reunimos esse material e fizemos um pequeno livro.

Nas terceiras e quartas séries, no segundo bimestre, desenvolvi o tema Vida Após a Morte, escolhido pelas próprias crianças. É certo que esse tema tem dificuldades por ser abordado por diversas religiões de modo diferente. Mas nós o enfocamos à luz da Filosofia, mostrando quais as posições existentes sobre o assunto. Em geral, as pessoas temem falar da morte, pois, em nossa cultura, devido à falta de tradição filosófica, ela está mitificada, e não podemos conversar sobre isso. Mesmo assim, o tema desperta interesse e curiosidade em crianças, jovens e adultos. Não podemos renegar o aspecto espiritual do ser humano, presente em todos os povos e em todas as culturas, e, sem dúvida, com muita enfâse na cultura brasileira.

Feitas as primeiras discussões, contei a história de Sócrates e comentei sobre Pitágoras, dois dos maiores filósofos de todos os tempos. A dedicação de Sócrates à educação ética e filosófica de todos e o seu empenho pela Filosofia são um dos mais importantes testemunhos históricos pelo bem, pela verdade e pela justiça que a humanidade já viu. Tanto assim que muitos filósofos e historiadores estabeleceram comparações da sua importância com a de Jesus. Procurei mostrar, nos seus feitos, além de sua posição de crítica, a de bondade e amor diante de um mundo que aos poucos perde esses valores e esquece a sua dimensão espiritual. E nada melhor do que resgatá-los nessa figura, que foi um dos filósofos que mais enfatizaram esses aspectos.

Realizei diversas discussões com os alunos sobre os seus feitos, sobre a sua postura espiritualista diante da morte, deixando clara a sua crença numa vida após a morte. Narrei a sua história, falando que foi considerado o mais sábio dos gregos pelo Oráculo de Delfos e que foi acusado de corromper a juventude pelos políticos do seu tempo. Não aceitavam as ações socráticas da luta contra a injustiça e a maldade e a sua defesa de que a principal função do filósofo é ensinar os homens a nortearem a vida pela verdade e pela ética. No cárcere, não aceita a fuga, pois fugindo renegaria tudo o que havia ensinado e vivenciado a vida toda. A partir daí, falamos das duas principais correntes que abordam esse tema: os materialistas, que acreditam que a vida se resume à matéria, e os espiritualistas, que aceitam a sobrevivência da alma, e ainda comentei sobre os céticos, que não sabem se existe ou não e ficam na dúvida. Estabelecemos comparações entre a época de Sócrates, da Grécia e sua cultura com os dias atuais, falamos da grande falta de ética que temos hoje em dia e chegamos à conclusão de que ainda precisamos nos inspirar em Sócrates na luta por um mundo mais justo, mais feliz, em que a bondade, a sabedoria e o amor reinem nas relações humanas.

Seguem-se três textos da produção coletiva das crianças:

Existem dois tipos de coragem. A coragem do amor, usada por Sócrates, e a coragem da força, usada por Hércules. A coragem da força, às vezes, pode ser usada para o mal, como na guerra. Mas a coragem do amor nunca pode ser usada para o mal. Nós, crianças, nos achamos corajosas porque ajudamos as pessoas. Algumas vezes usamos a coragem da força quando ajudamos nossos pais a limpar ou empurrar alguma coisa ou quando alguém bate num amigo ou o defende. E usamos a coragem do amor quando ajudamos as pessoas, cuidamos dos irmãos, dos nossos familiares: pais, avós… (1ª série)

Sócrates, em sua vida, usou muito a coragem do amor para ajudar as pessoas a viverem de modo ético. Dava aulas nas praças para todos. Na Grécia, nem todo mundo podia estudar, mas ele ensinava a todos com amor. Nós também usamos a coragem do amor na vida para dar carinho para nossos pais, para cuidar dos nossos irmãos menores, para ajudar a todos os familiares. Ajudamos, na escola, os nossos amigos e professores e também as empregadas. A coragem da força, nós usamos para ajudar a carregar as coisas, para ajudar o pai a arrumar o carro e, algumas vezes, para brigar. Somos corajosos porque ajudamos todo mundo. (2ª série)

Pitágoras inventou a Filosofia; e Sócrates, a Ética. Os dois acreditavam que os homens não são só corpo, mas todos têm um espírito que vive depois da morte. Eles eram espiritualistas. Sócrates ensinava a todos a pensarem, a serem bons e a acreditarem na alma imortal. Sócrates e Pitágoras ensinaram a vida toda as pessoas a serem justas, a lutarem pela verdade, a viverem bondosamente.

Lá na Grécia, na época de Sócrates, as mulheres e os escravos não podiam estudar, só estudava quem era rico. Mas ele dava aula a todos.

Mas nem todos os filósofos são espiritualistas, alguns são materialistas, acham que o espírito não existe. Para eles, quando as pessoas morrem, tudo acaba, e a vida não continua.

Acreditamos na vida pós-morte do mesmo jeito que Pitágoras e Sócrates, o maior filósofo de todos os tempos. Acreditamos por causa da Filosofia e também da religião (4ª série).

Relato da experiência da Jorge Tibiriçá

Comecei por introduzir o cenário da Grécia Antiga falando de algumas “invenções gregas”: a democracia, as Olimpíadas, a Filosofia. A partir do conhecimento das próprias crianças, definimos a democracia e estabelecemos paralelos (semelhanças e diferenças) entre a democracia grega e a brasileira (atual) em relação à participação das mulheres, à existência de escravos e a promessas não cumpridas (a demagogia). Narrei a história de Pitágoras e a invenção da palavra filosofia como amizade da sabedoria. Tudo isso muito ilustrado por livros, pinturas, desenhos e de forma lúdica e interessante, começando todas as aulas com músicas para todos cantarem juntos.

Lancei o desafio nas salas para que me dissessem se existe o bem e o mal e o que seria um e outro e disse que, em seguida, contaria a história de um dos maiores filósofos de todos os tempos, também grego, que tinha se preocupado em se perguntar sobre isso. Colhi ideias como “O bem é praticar boas ações, ajudar os outros, ser honesto”; “[É] tudo o que é bom para o ser humano”; “[É] tudo o que faz a humanidade feliz”.

A primeira constatação feita já em outras ocasiões, e mais uma vez confirmada, é que o relativismo anda distante de qualquer mente infantil. Não há criança que não esteja convicta da existência do “bem” e do “mal”, da “verdade” e da “mentira”, do “certo” e do “errado”. Mesmo contando a história dos sofistas, que diziam não haver essas dicotomias, elas não perdem essa convicção, que precisa até se tornar menos maniqueísta.

A história de Sócrates ganha contornos heroicos para as crianças — e não se poderia querer contar uma história como essa de maneira fria e intelectualista, mas é claro que quem contar dessa maneira como contei precisa ter, como eu, sincera admiração por essa figura, aliás, precisa ter a convicção de que houve e há homens e mulheres na humanidade que podem inspirar admiração e conquistar adesões. Sócrates aparece como o herói que teve a coragem e a serenidade de enfrentar a morte por causa de suas ideias, que eram contrárias às dos sofistas (relativistas e céticos) da época, ideias que favoreciam a corrupção política, a dominação e a injustiça. Sócrates foi o filósofo que se interessou em discutir o que é a virtude, o bem, a justiça e que também viveu esses valores.

Poderia parecer sem interesse para crianças de nove ou dez anos uma história que não tenha fantasias, mitologias e contos de fadas, mas apenas a realidade histórica, embora contada de forma entusiasta e vibrante. Ao contrário, as crianças, em sua generalidade, vibram com Sócrates, interessam-se, perguntam e fazem referências a ele meses e meses depois de encerrado o tema.

O momento da defesa de Sócrates diante do tribunal, sua recusa de fuga, sua serenidade diante da morte, suas últimas palavras — tudo isso deixa as crianças sem respirar, provocando emoção e olhos brilhantes.

Depois dessa parte narrativa e das discussões em torno do tema, passei um trecho do filme Fantasia, de Walt Disney, passado no Monte Olimpo, com a trilha sonora da 6ª Sinfonia (Pastoral) de Beethoven. Identificamos, no desenho, os personagens mitológicos e estabelecemos comparações entre a visão de mundo dos gregos e a nossa (politeísta e monoteísta).

Como encerramento desse projeto, várias aulas foram dedicadas à confecção de pinturas inspiradas na arte grega. Com a colaboração de Liliam Lungarezi, graduanda em Artes Visuais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), mostramos diversas figuras da arte da Grécia Antiga (vasos, esculturas, arquitetura) e propusemos trabalhos em grupo (para estimular a cooperação e observar o comportamento dos alunos nas relações de equipe). O resultado foi brilhante, com o uso de carvão e giz de cera.

O trabalho em equipe em liberdade, apenas com orientação, foi revelador, mostrando a dificuldade de cooperação de alguns grupos, a falta de hábito de discutir para realizar algo, a tendência ao melindre e ao personalismo. Mas, tendo se manifestado esses comportamentos, puderam ser trabalhados adequadamente e, com sucesso, acabando-se as atividades com as classes mostrando umas às outras suas produções.

Esse projeto durou quase o semestre inteiro, já que o apliquei, na maior parte do tempo sozinha, em dez classes (com média de trinta alunos), de terceira e quarta séries.

1 A experiência da Jean Piaget está sendo conduzida por Alessandro César Bigheto, com a matéria Ética e Filosofia, ministrada para pré-escola e Ensino Fundamental de primeira a quarta séries. A experiência da Escola Jorge Tibiriçá é conduzida por Dora Incontri, dentro do projeto de pesquisa de pós-doutoramento na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) Ética, Filosofia, Religião e Arte — um Projeto Interdisciplinar em Escola Pública, com apoio da Fapesp.

Dora Incontri é pós-doutoranda na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Alessandro César Bigheto é pedagogo.

Referências Bibliográficas

BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do Pensamento Filosófico. São Paulo: EPU, 1977. COVELLO, Sergio C. Comenius – a Construção da Pedagogia. São Paulo: Comenius, 1999. INCONTRI, Dora. Pestalozzi – Educação e Ética. São Paulo: Scipione, 1997. KOHAN, Walter O. & KENNEDY, David (Org.). Filosofia e Infância, Possibilidades de um Encontro. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 3. KOHAN, Walter O. & WAKSMAN, Vera (Org.). Filosofia para Crianças na prática escolar. Petrópolis: Vozes, 1998. v. II. KOHAN, Walter O. & WUENSCH, ANA M. (Org.). Filosofia para Crianças. Petrópolis, Vozes, 1998. v. I. KOHAN, Walter O. LEAL, Bernardina (Org.). Filosofia para Criança em Debate. Petrópolis, Vozes, 2000. v. 4. LAUAND, Luiz J. Filosofia, Educação e Arte. São Paulo: IAMC, 1988. MATTHEWS, Gareth B. A Filosofia e a Criança. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PIAGET, Jean. Os Procedimentos da Educação Moral. In: MACEDO, Lino de (Org.). Cinco Estudos de Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo 1996. ROUSSEAU, J. J. OEuvre Complètes. Paris: Gallimard, 1969. v. IV. SCOLNICOV, Samuel. A problemática comunidade de investigação: Sócrates e Kant sobre Lipman e Dewey. (In: KOHAN, Walter O. LEAL, Bernardina (Org.). Filosofia para Criança em Debate. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 4. SILVEIRA, Renê J. T. A Filosofia Vai à Escola? Campinas: Autores Associados, 2001.

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