Edição 128
Matéria Âncora
Fraternidade e fome – campanha da fraternidade 2023
Apresentação

A Campanha da Fraternidade é o modo brasileiro de celebrar a Quaresma. Ela não esgota a Quaresma. Dá-lhe, porém, o tom, mostrando, a partir de uma situação bem específica, o que o pecado pode fazer quando não o enfrentamos. Por isso, a cada ano, recebemos um convite para viver a Quaresma à luz da Campanha da Fraternidade e viver a Campanha da Fraternidade em espírito de conversão pessoal, comunitária e social.
Este ano, com o tema Fraternidade e Fome, somos convocados a considerar a fome como referência para nossa reflexão e nosso propósito de conversão. Temos, sem dúvida, fome de Deus. Desejamos estar com Ele e poder participar de seu amor e de sua misericórdia. Temos fome de paz, fraternidade, verdade, concórdia e tudo mais que efetivamente nos humaniza. Durante o tempo da pandemia, no qual, por medidas sanitárias que buscavam nos preservar, não pudemos ir às igrejas para comungar, sentimos fome do Pão do Céu.
A fome, bem sabemos, é um ato de preservação. É um sinal para que não nos distraiamos quando nosso organismo sente falta do necessário para viver. O que ocorre, porém, quando o alimento não chega a todo ser humano? O que faz uma sociedade ter filhos e filhas a quem, embora busquem, clamem, gritem e chorem, não chega o alimento? Por isso, a fome é também um desafio social, humanitário, uma situação que não se pode deixar de enfrentar, pois a fome de uns — a fome de uma só pessoa! — onera a todos nós, onera a sociedade inteira. Cada ser humano que não encontra o necessário para se alimentar é, em si, um questionamento a respeito dos rumos que estamos dando a nós mesmos e à nossa sociedade. A fome é um dos resultados mais cruéis da desigualdade. Afeta inicialmente os mais necessitados. Atinge, contudo, a todos, diz respeito à sociedade inteira. Essa é a razão pela qual o Papa Francisco, sem rodeios, afirma que “Não há democracia se existe fome”.

E o Brasil sente fome. Milhões de brasileiros e brasileiras experimentam a triste e humilhante situação de não poder se alimentar nem dar aos seus filhos e filhas o alimento indispensável a cada dia. Por isso, a CNBB apresenta, pela terceira vez, o tema da fome para a Campanha da Fraternidade (1975, 1985 e 2023).
Ao falar da vida eterna, Jesus utilizou a imagem do banquete (Mt 22, 2), mostrando-nos que o desejo do banquete eterno deve se traduzir em atitudes de compromisso com uma sociedade em que o alimento esteja em todas as mesas. Jesus teve compaixão da multidão faminta (Mt 4, 14–21). Embora os discípulos apontassem a solução de deixar o problema nas mãos de quem corria o risco da fome, Jesus abre os olhos e o coração desses mesmos discípulos para que não se justifiquem diante da impossibilidade, mas compreendam que a mudança da realidade começa com eles, em escuta ao Senhor, que lhes ordena darem, eles mesmos, à multidão, o que comer. Jesus indica outra maneira de compreender as interpelações que a vida nos traz. Ultrapassando a lógica imediata, Ele aponta para a necessidade de agir conjuntamente, ainda que as dificuldades sejam grandes e os recursos pequenos. Quando acolhemos o mandamento do Senhor, nosso modo de compreender os desafios torna-se outro e o resultado é infinitamente maior.
Que, portanto, esta Quaresma seja vivida em forte espírito de solidariedade. Que nosso jejum abra nosso coração aos irmãos e às irmãs que sofrem com a fome. Que nossa solidariedade seja intensificada. Que saibamos encontrar soluções criativas para a superação da fome, seja no nível mais imediato, assistencial, seja no nível de toda a sociedade. Que efetivamente se cumpra a responsabilidade dos governantes, em seus diversos níveis, concretizando políticas públicas, principalmente as de estado, que atinjam a raiz desse vergonhoso flagelo, garantindo não apenas a produção de alimentos, mas também que eles cheguem a cada pessoa, em especial às mais fragilizadas. Que o Senhor Jesus nos possa um dia dizer: “Vinde […] eu estava com fome, e me destes de comer; […] todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizeste!” (Mt 25, 34 e 40).
Abençoada Quaresma! Intensa Campanha da Fraternidade! Santo caminho até a Páscoa do Senhor, na oração, no jejum e na misericórdia.
Quando acolhemos o mandamento do Senhor,
nosso modo de compreender os desafios torna-se outro
e o resultado é infinitamente maior.”

Introdução ao tema da CF 2023
5. A FOME é um instinto natural e poderoso de sobrevivência presente em todos os seres vivos, é um presente do Criador para a preservação da vida. “É um fenômeno biológico que aciona uma sensação passageira de desconforto, um sinal breve do corpo, que indica a hora de comer.” “Toda criatura tem necessidade de alimentar-se para proporcionar seu próprio desenvolvimento e para manter-se viva o maior tempo possível. Isso vale também para o ser humano, sempre empenhado com a necessidade básica do alimento. Em nossos dias, para muitas populações pobres, a questão alimentar assume aspectos dramáticos, devido a imensas catástrofes naturais e, sobretudo, devido a violências e desigualdades implementadas por prepotentes.” Na sociedade humana, a fome é uma tragédia, um escândalo, é a negação da própria existência. “Na verdade, o alimento para o ser humano não constitui somente uma necessidade natural, mas representa ainda um fator cultural, porque é veículo de relações entre as pessoas, é um princípio de aliança e de comunhão.”
6. Afirmou, o Papa Francisco, nas comemorações dos 75 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO): “Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha. Em grande parte, é provocada por uma distribuição desigual dos frutos da terra, à qual se acrescentam a falta de investimentos no setor agrícola, as consequências das mudanças climáticas e o aumento dos conflitos em várias regiões do planeta. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Diante dessa realidade, não podemos permanecer insensíveis ou paralisados. Somos todos responsáveis”.
A fome é um instinto natural e poderoso
de sobrevivência presente em todos os seres vivos.”
7. A fome é repudiada por afrontar direta e imediatamente todos os princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja (DSI), destacando-se aquele da destinação universal dos bens, pelo qual se crê que “[…] o mundo criado é uma propriedade de Deus, sobretudo, e não do homem, de homem algum. Deus nos coloca como seus colaboradores na ordem da criação. Os bens criados por Ele têm uma destinação universal, e não privada. […] Assim sendo, o uso egoísta e exclusivista das riquezas, esquecendo-se dos irmãos, não é compatível com a fé cristã”. Os bens pertencem ao Reino de Deus (cf. CDSI, n. 57). A fome é um contratestemunho que não reconhece de forma prática a dignidade integral das pessoas, não considera a primazia do bem comum como o conjunto de todos os bens necessários para cada pessoa se realizar humanamente, além de gerar toda uma conjuntura que faz com que a pessoa em situação de fome esteja em menores condições de participação, como se fosse indigente, invisível, correndo o risco de reduzir a solidariedade ao assistencialismo que, embora ajude nos momentos mais agudos, não transforma efetivamente as estruturas de pecado.

8. “Até o século XIX, as misérias que dizimavam populações inteiras tinham, com muita frequência, uma origem natural. Hoje elas são mais circunscritas; porém, na maioria das vezes, derivam da ação humana. […] Nesta época em que o homem, mais que outrora, tem a possibilidade de fazer face às misérias, tais situações constituem uma verdadeira desonra para a humanidade.”
9. “O objetivo Fome Zero no mundo ainda é um grande desafio, mesmo que se deva reconhecer que nos últimos decênios assistimos a um grande progresso. Para combater a falta de alimentos e de acesso à água potável, é necessário agir sobre as causas que a provocam. Na origem deste drama estão, sobretudo, a falta de compaixão, o desinteresse de muitos e uma escassa vontade social e política de responder às obrigações internacionais. A falta de alimentos e de água potável não é uma questão interna e exclusiva dos países mais pobres e frágeis, mas diz respeito a cada um de nós, porque todos, com a nossa atitude, participamos, de um modo ou de outro, favorecendo ou impedindo o sofrimento de muitos irmãos nossos. Todos somos chamados a ouvir o brado desesperado dos nossos irmãos e a adotar todas as medidas para que possam viver vendo respeitados os seus direitos mais elementares.”
10. “Além disso, é doloroso constatar que a luta contra a fome e a subalimentação é obstada pela ‘prioridade de mercado’ e pela ‘primazia do lucro’, que reduziram os alimentos a uma mercadoria qualquer, sujeita a especulações, até financeiras. E, quando se fala de novos direitos, o faminto está ali, na esquina da rua, e pede o direito de cidadania, pede para ser considerado na sua condição, para receber uma alimentação básica sadia. Pede-nos dignidade, não esmola.”
11. O ser humano, contudo, não tem só fome de comida, isto é, necessidade de alimento saudável e nutritivo; ele tem fome de justiça, necessita de relações justas que lhe garantam a sobrevivência; tem fome de cidadania, quer ser respeitado como cidadão, tendo seus direitos e sua participação garantidos; tem fome de beleza — contemplar o belo através da arte, da música ou de uma simples paisagem natural é uma necessidade humana que sacia a fome interior, reidrata a alma, harmoniza o coração —; tem fome de sentido, é racional, precisa compreender as razões dos acontecimentos da sua própria vida e da história da humanidade, a fim de direcionar suas ações; e, ainda mais, tem fome de transcendência, não se contenta, por sua própria natureza incompleta, com as realidades terrenas, deseja o infinito, “[…] tem sede de Deus” (SI 41 [42], 3).
Contemplar o belo através da arte,
da música ou de uma simples paisagem natural é uma necessidade humana
que sacia a fome interior, reidrata a alma, harmoniza o coração.”

12. Pela terceira vez, a fome é tratada pela Igreja no Brasil na Campanha da Fraternidade. A primeira foi em 1975, com o tema Fraternidade é repartir e o lema Repartir o pão, no clima do Ano Eucarístico que precedeu o Congresso Eucarístico Nacional de Manaus, com os mesmos tema e lema, e desejava intensificar a vivência da Eucaristia em nosso povo. A segunda foi em 1985, outro Ano Eucarístico, dessa vez em preparação para o Congresso Eucarístico de Aparecida, com o lema Pão para quem tem fome. Agora, em 2023, logo depois do 18º Congresso Eucarístico Nacional, realizado no Recife, de 11 a 15 de novembro de 2022, com o tema Pão em todas as mesas, a Igreja no Brasil enfrenta pela terceira vez o flagelo da fome, com um lema que é uma ordem de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16). É vocação, graça e missão da Igreja obedecer e cumprir a ordem de Jesus.
13. Não podemos nos esquecer de que a superação da miséria e da fome foi também objeto de reflexão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil na sua 40ª Assembleia Geral, em abril de 2002, quando, ao celebrar o seu jubileu áureo, a CNBB publicou o documento intitulado Alimento, dom de Deus, direito de todos, lançando com ele um mutirão nacional de superação da miséria e da fome.
14. No entanto, os tempos e as realidades mudam, e é preciso, outra vez, confrontarmo-nos com o Evangelho de Jesus Cristo frente a este grande desafio que permanece gritante em nossa sociedade, A FOME.
Ver
a realidade da fome
“Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão.
Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam enfermos.”
(Mt 14, 14)
29. A FOME é uma realidade no Brasil. E este fato não pode ser negado. Ela é o flagelo de uma multidão de brasileiros. Mas, no Brasil, não falta alimento. A cada ano, o País bate recordes de produções, dentre as quais de milho, soja, trigo, cana-de-açúcar, carne. O que então nos falta? Falta-nos convertermo-nos ao Evangelho, olhar com sinceridade as necessidades do outro, aprender a repartir para que ninguém fique com fome, edificar aqui e agora o Reino de Deus que buscamos e que se realizará em plenitude na eternidade.

30. Viver com fome a ponto de perder a própria dignidade, arrastar-se pela rua, revirar o lixo e morrer de fome não é algo natural ou desejado por Deus. No Brasil, a fome não é simplesmente um problema ocasional; é um fenômeno social e coletivo, estrutural, produzido e reproduzido no curso ordinário da sociedade, que normatiza e naturaliza a desigualdade, é um projeto de manutenção da miséria em vista de perpetuação no poder. Já afirmava a nossa escritora Carolina Maria de Jesus: “Quem inventou a fome são os que comem”.
31. A fome não foi criada, mas radicalizada pela pandemia da Covid-19, que enfrentamos desde março de 2020 e que, com certeza, marcará todas as nossas ações nesta década. A fome no Brasil é um escândalo! Um escândalo de proporções inimagináveis. Em nosso País, há 125,2 milhões de brasileiros que nunca sabem quando terão a próxima refeição. Tudo começa com um ato de ver. É preciso fazer como Jesus: “levantar os olhos e ver” a realidade da fome no Brasil.
38. O Direito Humano à Alimentação Adequada é indispensável para a sobrevivência. As normas internacionais reconhecem o direito de todos à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome como pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos. No Brasil, estes direitos estão assegurados entre os direitos sociais da Constituição federal, desde a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010.
39. A alimentação saudável não pode ser considerada apenas uma questão de solidariedade. Ela é um direito. E, como tal, deve ser garantida pelo Estado a todos os seus cidadãos.

O Direito Humano à Alimentação Adequada é indispensável para a sobrevivência. As normas internacionais reconhecem o direito de todos à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome como pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos.”
As causas da fome no Brasil
45. Os fatores climáticos, as guerras e os desastres naturais de todas as espécies, por mais impactantes que sejam, estão longe de constituir as únicas causas da miséria e da fome. Para compreender corretamente essa questão, é necessário considerar o conjunto das suas causas.
46. Uma das primeiras causas da fome no Brasil é a sua estrutura fundiária, ou seja, como a terra foi historicamente e continua a ser distribuída no Brasil. Quando falamos da terra, estamos tratando de um tipo especial de bem econômico, um dom dado por Deus a toda a humanidade. Nos países de antiga ocupação, como, por exemplo, os europeus, as terras rurais foram divididas em pequenas áreas para a produção familiar e o consumo local. Nos países de ocupação mais recente, quando as lógicas econômicas já tinham um direcionamento para a grande produção e para a exportação, como é o caso do Brasil, a divisão do espaço rural foi realizada de maneira diferente e irregular, por meio do estabelecimento dos latifúndios. Essa distribuição da terra é excludente e causadora de enormes desigualdades socioeconômicas. Urge uma justa redistribuição da terra!
52. A fome tem suas causas também em comportamentos morais lamentáveis: a busca egoísta do dinheiro, do poder e da imagem pública; a perda do sentido de serviço à comunidade em benefício exclusivo de pessoas ou de grupos; sem esquecer o importante grau de corrupção, sob as mais diversas formas. Alguns fatores socioculturais aumentam os perigos da fome e da subnutrição crônica: os tabus alimentares, a posição social e familiar da mulher, a carência de formação nas técnicas da nutrição, o analfabetismo generalizado, os partos precoces e, às vezes, demasiados, e a precariedade do emprego.
Consequências da fome
67. “A fome ameaça não só a vida das pessoas, mas também a sua dignidade. Uma carência grave e prolongada de alimentação provoca a debilidade do organismo, a apatia, a perda do sentido social, a indiferença e, por sua vez, a hostilidade em relação aos mais frágeis: em particular as crianças e os idosos.” Historicamente, a fome é um dos maiores destruidores da família, pois a desestabiliza e desestrutura, obrigando-a à separação por meio da migração forçada pela necessidade; gera violência doméstica, violência no campo e na cidade e leva à perda do sentido da vida. É causa do êxodo rural, tão presente em nossa história passada e presente. Os agricultores estão envelhecendo, e os jovens, retirados de suas realidades, não querem mais voltar para o campo e permanecer na terra. As periferias urbanas vão inchando, e os governantes assistem a isso de braços cruzados.

Crianças que sofrem de
insegurança alimentar têm
seu desenvolvimento e
suas perspectivas de futuro
prejudicados.“
70. Há outro efeito da insegurança alimentar que também pode trazer sérios problemas de saúde. É o que os nutricionistas chamam de carga dupla da má nutrição, ou seja, a coexistência do excesso de ultraprocessados e da falta de nutrientes na alimentação. Assim, numa família que passa por uma situação de insegurança alimentar, pode haver indivíduos desnutridos e obesos ao mesmo tempo. O Brasil é campeão mundial em obesidade em crianças e em mulheres em idade fértil.
71. As principais vítimas da insegurança alimentar são as crianças, já que, no caso delas, pode comprometer o crescimento e os desenvolvimentos físico e cognitivo, uma vez que a anemia, que é a ausência de ferro no organismo, pode comprometer o desenvolvimento de órgãos e tecidos e o funcionamento cerebral, afetando capacidades como a memória e atenção, a leitura e a aprendizagem de linguagens como um todo, o que, por sua vez, leva ao mau rendimento escolar. Esse déficit pode ser irreversível em situações de insegurança alimentar grave. Impactos dessa natureza não se resumem ao desempenho acadêmico, mas também afetam capacidades de tomada de decisão e o desenvolvimento socioemocional do indivíduo. Crianças que sofrem de insegurança alimentar têm seu desenvolvimento e suas perspectivas de futuro prejudicados. Ao longo de uma vida, isso pode levar ao abandono dos estudos, a menores perspectivas salariais ou à baixa capacidade de manter um emprego fixo.
ILUMINAR
com a luz da Palavra
“Jesus, porém, lhes disse
‘Eles não precisam ir embora.
Dai-lhes vós mesmos de comer!’”
(Mt 14, 16)“Sim, eu conheço seu
sofrimento” (Êx 3, 7)
116. Segundo a Escritura, a fome sempre foi um flagelo do povo, sentido com grande compaixão por Deus. O Antigo Testamento registra a identidade de um Deus que, a partir do Êxodo, revela-se comunitariamente como o Deus que vê o sofrimento humano e age para sua libertação. São inúmeros os textos que tratam da fome e de sua saciedade, tanto em uma perspectiva metafórica e espiritual — tratando dos anseios humanos por Deus — quanto em uma perspectiva prática, impelindo à consciência da partilha e da solidariedade.
118. Privar o outro ou a comunidade do acesso ao alimento é, portanto, ao lado da escravidão, um dos muitos flagelos que Deus rejeita ao tirar o povo do Egito. Portanto, assim como a rejeição da escravidão se torna um compromisso inerente à Aliança com o Deus que não suporta a escravidão, também a partilha do alimento foi aos poucos se tornando sinal de pertença ao povo de Deus. Não é à toa que a fartura dos alimentos é uma virtude distintiva da Terra Prometida, para a qual rumava o povo no deserto, “terra onde corre leite e mel” (Êx 33, 3). Não se pode deixar de lembrar que, antes de partirem do Egito, Deus havia separado os que lhe eram tementes do restante da população por uma prova essencialmente ligada à partilha de alimentos: a ceia pascal da noite de libertação. Por isso, enquanto escravidão e fome pertencem à esfera do Egito, do seu faraó e da escravatura, a oferta de alimento para todos está ligada à libertação e à fidelidade ao Deus único.
“Dai-lhes vós mesmos de comer!”
(Mt 14, 16)
130. É possível deduzir que o tema da fome de uma multidão não é ocasional em Mateus, mas uma pauta urgente em seu tempo. “Os evangelhos revelam um povo sobrecarregado de dívidas e fome, atormentado pela paralisia física e social e, em geral, desesperado com as circunstâncias vividas”, e isso se deve à condição de pobreza estrutural da Palestina do primeiro século, causada, especialmente, por uma sede de desenvolvimento que não levou em consideração o empobrecimento de uma parcela da população. Os camponeses não tinham condições de arcar com a alta carga tributária imposta pelo Império Romano e, perdendo suas propriedades, eram forçados a migrar para as cidades, nas quais constituíam uma classe de pobres e mendicantes, que eram marginalizados não apenas do ponto de vista social, mas também religioso.

131. À constatação da fome da multidão que os discípulos fazem, Jesus responde com uma ordem, um imperativo: “Dai-lhes vós mesmos de comer! (Mt 14, 16). É o maior ensinamento da narrativa completa de Mt 14, 13–21. Ainda que um primeiro olhar sobre o fato e sua narrativa possa ter fascinado a audiência de Jesus e os leitores de Mateus, desviando-lhes a atenção para o milagre, o centro do ensinamento do Evangelho está na ordem de Jesus. É uma conclamação à responsabilidade. O discípulo que constata a necessidade dos que estão ao seu redor, em virtude do caminho eclesial e da vida fraterna, não pode eximir-se da compaixão e da responsabilidade. A ordem de Jesus é um duplo convite que une interioridade e exterioridade, o espírito e a prática. Aquele que deseja seguir Jesus e, portanto, imitar sua ação precisa aprender isto: a compaixão o impele a agir, assim como a percepção da realidade por parte dos discípulos deverá levá-los a uma atitude.
AGIR
para transformar a realidade da fome
“E MANDOU que as multidões se sentassem na relva. […]
PARTIU os pães e DEU aos discípulos, e os discípulos os DISTRIBUÍRAM às multidões.”
(Mt 14, 19)
157. A FOME nos desafia e desinstala. É preciso agir! Não é possível ficar parado diante do grito da realidade brasileira e do mandamento de Jesus. É a dimensão social da fé que exige de nós engajamento na busca de soluções eficazes para o drama da fome. A realidade da fome chega ao coração do Bom Pastor, e Ele mobiliza os seus discípulos missionários para uma ação pontual que resolva aquele problema, não a partir da lógica do dinheiro ou da indiferença, mas a partir da lógica de Jesus e do seu Evangelho.
158. É essa lógica que motiva a nossa Quaresma, que faz com que nos dediquemos ainda mais à frequente celebração da Eucaristia, à escuta atenta da Palavra e aos exercícios da oração, do jejum e da esmola. Todas essas experiências nos recordam que o pão não é meu, o pão é nosso! É nosso quando o celebramos eucaristicamente, quando dele nos alimentamos na Leitura Orante da Bíblia. É nosso quando rezamos como Jesus nos ensinou e é nosso mesmo quando o renunciamos no jejum para partilhá-lo na esmola. O motor do nosso agir não é outro senão a mística do Seguimento de Jesus, no qual a solidariedade nasce da espiritualidade, do encontro verdadeiro e transformador com o Deus do Reino, Pai nosso, e com o Reino de Deus. “O pedido que repetimos em cada Missa: ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’, obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento” (SCa, n. 91).
159. A caridade não pode morrer entre nós cristãos. Ela é o nosso distintivo. Se não tiver amor, não vale nada (cf. 1 Cor 13, 3) tudo o que fizermos. E o amor-caridade (ágape) nasce da experiência primeira de sermos amados radicalmente pelo próprio Deus. “De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). E transborda em nós quando somos capazes de amar sem esperar nada em troca: “[…] pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu, e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e viestes até mim” (Mt 25, 35 e 36). O agir da CF 2023 se situa no horizonte das obras de misericórdia, pelas quais seremos julgados no último dia.

166. Propostas de AÇÃO PESSOAL: o que eu posso fazer?
- 1. Partilhar do muito ou do pouco que se tem com aqueles que mais necessitam.
- 2. Praticar a partilha na família, na escola, no trabalho, etc.
- 3. Jejuar em atitude solidária com aqueles que pela miséria são obrigados ao jejum.
- 4. Converter o resultado do seu jejum e da sua penitência quaresmal também em alimento para quem precisa.
- 5. Questionar o próprio estilo de vida e de alimentação.
- 6. Ser solidário(a) com os que passam fome aguda — jamais renunciar à solidariedade.
- 7. Colaborar nas campanhas de arrecadação de alimentos de entidades sérias e transparentes.
- 8. Abolir o desperdício de alimentos, estabelecendo práticas de reaproveitamento saudável.
- 9. Realizar uma doação significativa para a Coleta Nacional da Solidariedade, no Domingo de Ramos.
- 10. Participar dos conselhos de direitos (humanos, da criança e do adolescente, da juventude, da pessoa idosa, de saúde…).
- 11. Praticar o voluntariado.
- 12. Envolver-se nos trabalhos e nas ações que já existem na comunidade, como a Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP), o Serviço da Caridade, as Pastorais Sociais, a Caritas, etc.
- 13. Preparar uma refeição saudável e nutritiva no domingo de Páscoa e convidar uma família carente.
- 14. Participar mais ativamente das discussões sociais de políticas públicas.
- 15. Envolver-se na política com espírito cristão, não lavando as mãos como Pilatos nem difundindo a ideia errônea de que política não presta nem é lugar de cristão.
- 16. Tomar maior conhecimento e envolver-se nas inciativas públicas (governamentais ou não) de combate à fome e à pobreza em seu município.
- 17. Apoiar e participar de alguma pastoral social em sua paróquia.

167. Propostas de AÇÃO COMUNITÁRIO-ECLESIAL: o que nós — comunidade-Igreja — podemos fazer?
- 1. A Campanha da Fraternidade propõe anualmente um gesto comum a todos as comunidades. É a Coleta Nacional da Solidariedade, realizada no Domingo de Ramos. Dos recursos arrecadados, 60% permanecem na Diocese e compõem o Fundo Diocesano de Solidariedade (FDS). Os outros 40% são enviados à CNBB, fazendo parte então do Fundo Nacional de Solidariedade (FNS), que, por meio de um conselho gestor, cuida para que a oferta de pessoas e comunidades seja partilhada entre os que mais precisam. A cada ano são recebidos e analisados projetos ligados ao tema da Campanha da Fraternidade.
- 2. Fazer um levantamento — com participação ativa das pessoas e dos grupos da comunidade — das pessoas e famílias que passam fome ou outra necessidade, observando suas condições de vida, questionando o que as levou a essa situação e iluminando essa realidade com a Palavra de Deus.
- 3. Realizar murais, em igrejas, centros de catequese, cozinhas comunitárias, etc., que alertem, com notícias atuais, a respeito da situação da fome na comunidade.
- 4. Articular os meios de comunicação e as mídias digitais de inspiração católica para divulgar ações inspiradoras que já estão sendo feitas na superação da miséria e da fome.
- 5. Promover rodas de conversa com pessoas que já experimentaram na própria pele o flagelo da fome e seminários de partilha do que já está sendo feito, a fim de inspirar novas ações transformadoras.
- 6. Acolher, valorizar e incrementar a prática das hortas comunitárias e outras inciativas em favor de uma alimentação saudável e compartilhada.
- 7. Conectar comunidades eclesiais, paróquias, movimentos, associações e dioceses às experiências de enfrentamento à fome desenvolvidas pelos movimentos populares, abrindo o ambiente eclesial para a partilha de ideias e a implementação de projetos e iniciativas comuns.
- 8. Desenvolver, ao final das celebrações, ações de geração de renda e trabalho cooperado, como pequenas feiras de produção agroecológica e cooperativismo.
- 9. Promover, através de investimento financeiro e pessoal, o Serviço da Caridade e as Pastorais Sociais que atuam diretamente na superação da desigualdade social e da fome.
- 10. Avaliar os serviços caritativos a partir das seguintes questões: o pobre é respeitado em sua dignidade? Ele é apenas beneficiário passivo de ajuda? Qual a sua margem de participação e corresponsabilidade? O serviço prestado guarda algum resquício de superioridade ou prepotência? Junto à ajuda concreta, é feito algum estudo sobre as causas da pobreza no lugar?
- 11. Realizar encontros com catequistas, catequizandos, ministros extraordinários da sagrada comunhão, equipes de liturgia e celebração e agentes das mais diversas pastorais sobre a relação Eucaristia e fome.
- 12. Envolver-se em iniciativas ecumênicas e inter-religiosas de mobilização da sociedade para a superação da miséria e da fome e a promoção da agricultura familiar agroecológica.
- 13. Conhecer e dialogar com experiências que estão sendo feitas nas mais diversas instituições, mesmo as não católicas.
- 14. Motivar os fiéis à participação nos conselhos de direitos (humanos, da criança e do adolescente, da juventude, da pessoa idosa, de saúde…).
- 15. Incentivar o voluntariado em ações humanitárias no campo da assistência.
- 16. Levar pessoas e grupos religiosos para realizar ações concretas em áreas de exclusão.
- 17. Divulgar as boas experiências na promoção do bem-viver.
A caridade não pode morrer entre nós cristãos. Ela é o nosso distintivo. Se não tiver amor, não vale nada.” (cf. 1 Cor 13, 3)

- 18. Fazer eco às vozes que se levantam contra a fome, promovendo o seu testemunho.
- 19. Promover as “sextas-feiras da fraternidade”, a exemplo do que fez o Papa nas “sextas-feiras da misericórdia”.
- 20. Valorizar com planejamento e execução a Jornada Mundial dos Pobres (na semana que precede o 33º Domingo do Tempo Comum) em âmbito comunitário, paroquial, diocesano, regional e nacional.
- 21. Educar para a solidariedade permanente, e não apenas ocasional, por ocasião das grandes catástrofes ambientais.
- 22. Investir e apoiar as Casas de Francisco e Clara que estão surgindo no Brasil, como espaços de acolhida e promoção de ideias e ações, em vista de uma economia inclusiva, a partir da Economia de Francisco e Clara.
- 23. Criar escolas ou grupos de Fé e Política ou de Fé e Cidadania, fundamentados na Doutrina Social da Igreja.
- 24. Cuidar para que as festas das comunidades e paróquias sejam ocasião de promoção de uma alimentação saudável e nutritiva, aproveitando os produtos da terra.
- 25. Examinar se os programas culinários das nossas TVs de inspiração católica estão a serviço da verdadeira nutrição ou se servem ao mercado, deixando de lado os pobres, que nunca poderão fazer suas receitas.
- 26. Propor às TVs de inspiração católica a realização de programas culinários voltados para receitas que permitam aos mais pobres alimentar-se de modo simples e saudável.
- 27. Realizar ao menos uma Semana Social por ano em cada Diocese, vivenciada por todos os movimentos, as paróquias, as associações e os seminários, numa articulação formativa, reflexiva e celebrativa profunda e fecunda.
- 28. Promover sistematicamente, nos diversos níveis da vida eclesial, formações sobre a Doutrina Social da Igreja, não se contentando apenas com introduções isoladas, mas a partir de encontros e escolas formativas mais frequentes, perpassando pouco a pouco seus principais elementos, a fim de que seja compreendida, assimilada e vivida a dimensão social do Evangelho e a Doutrina Social da Igreja seja, de fato, assumida como uma autêntica prioridade pastoral para os nossos tempos.
- 29. Manter abertas as portas de nossas igrejas para o acolhimento imediato e também para o cuidado sistemático dos pobres e necessitados, atendendo ao apelo pastoral da exortação Evangelii Gaudium (n. 2,17, 46–49) e aprendendo com os irmãos e as irmãs que em nosso país já fazem isso cotidianamente.
168. Propostas de AÇÃO SOCIOPOLÍTICA: o que nós — sociedade cidadã — podemos fazer e cobrar daqueles que elegemos para nos governar mediante cargos públicos?

a) Sociedade Civil:
- 1. Despertar as pessoas através de capacitação, a fim de estancar a continuidade da miséria e da fome.
- 2. Propor o tema da fome em associações de bairro; sindicatos; partidos políticos; câmaras municipais, estaduais e federal.
- 3. Ouvir os pobres e famintos.
- 4. Promover o voluntariado no campo da assistência social.
- 5. Realizar pesquisas que levem à produção e comercialização de alimentos sadios, mais baratos e abundantes para a mesa do pobre.
- 6. Fiscalizar a aplicação do orçamento público, especialmente no que tange à ação social.
- 7. Realizar, a partir dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), ações de solidariedade em áreas de grande carência, envolvendo as mais diversas pessoas e instituições da sociedade.
- 8. Organizar grupos de orientação e educação alimentar, economia doméstica, horta em casa, etc., oferecendo dicas práticas para conservar alimentos, para prepará-los mantendo o valor nutricional e para comprar sem gastar muito.
- 9. Promover audiências públicas que discutam a situação da fome, suas causas e consequências e, sobretudo, as soluções para esse flagelo.
- 10. Desenvolver atividades interdisciplinares nas escolas sobre o tema da fome.
- 11. Organizar hortas comunitárias, envolvendo as pessoas aposentadas.
- 12. Cuidar nas festas populares e das escolas para que haja comida saudável e nutritiva e se aproveitem os produtos da terra.
b) Governo Municipal:
- 1. Implementar políticas públicas municipais eficazes para erradicação da fome.
- 2. Incentivar a produção diversificada de alimentos na agricultura familiar.
- 3. Investir na alimentação escolar, uma vez que ela é a única refeição saudável de muitas crianças.
- 4. Valorizar a compra de alimentos da agricultura familiar para merenda escolar.
- 5. Promover o abastecimento popular: a comida produzida no campo precisa chegar às periferias sem muitas mediações.
- 6. Ampliar os mercados populares de alimentos e as feiras livres populares, investindo numa logística de armazenagem, transporte, conservação, etc. através de políticas públicas.
- 7. Combater os lixões ilegais, em que as pessoas vivem em situação análoga à escravidão, e dar a quem lá frequenta condições dignas de habitação, emprego e alimentação.
- 8. Estimular o pequeno produtor e o pequeno comércio.
c) Governo Estadual:
- 1. Implementar políticas públicas estaduais eficazes para erradicação da fome.
- 2. Investir na alimentação escolar, uma vez que ela é a única refeição saudável de muitas crianças.
- 3. Incentivar a produção diversificada de alimentos na agricultura familiar.
- 4. Promover o abastecimento popular: a comida produzida no campo precisa chegar às periferias sem muitas mediações.
- 5. Estimular o pequeno produtor e o pequeno comércio.
d) Governo Federal:
- 1. Priorizar a vida de todos os cidadãos aos interesses econômicos e às dívidas públicas.
- 2. Implementar políticas públicas de Estado eficazes para a erradicação da fome.
- 3. Investir no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), uma vez que a merenda escolar é a única refeição saudável de muitas crianças.
- 4. Retomar os programas de aquisição de alimentos e os estoques públicos reguladores e estratégicos, empresas públicas que controlem o abastecimento, pois a inflação vem da demanda e da especulação.
- 5. Criar uma agência nacional que regule a alimentação, garantindo uma alimentação saudável ao povo brasileiro.
- 6. Garantir uma política de preços para a cesta básica que seja acessível a toda a população.
- 7. Incentivar a produção diversificada de alimentos na agricultura familiar.
- 8. Estimular o pequeno produtor e o pequeno comércio.
- 9. Realizar uma justa reforma do sistema tributário nacional que não pese sobre os mais pobres, mas promova a Responsabilidade Social das grandes fortunas e do rentismo.
- 10. Corrigir o valor per capita repassado pelo Fundo Nacional de Educação (FNDE) para os municípios, a fim de ampliar a capacidade das escolas de prover a alimentação escolar e assegurar uma melhor qualidade dos alimentos adquiridos.
Referências
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) / Campanha da Fraternidade 2023: Texto-base. Brasília: Edições CNBB, 2022.
Livro texto-base: págs. 6, 7, 8, 14, 15, 16, 17, 24, 27, 30, 34, 41, 42, 60, 61, 62, 63, 66, 67, 80, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90.