Edição 128

Professor Construir

Fraternidade e fome: você tem fome de quê?

Rosangela Nieto de Albuquerque

“Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16)

A fome é uma violência que afeta 811 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, existe uma estrutura histórica que, apesar de uma considerável diminuição no percentual, ainda afeta uma significativa parcela da população, cerca de 15,5%.

Quando se fala na violência da fome, é preciso mencionar os fatores que causam essa violência, compreender que é um panorama de desigualdade social, de pobreza, conflitos, crises econômicas, guerras e má distribuição dos alimentos.

Certamente, as consequências da fome trazem mazelas significativas de problemas de saúde e de educação e impactos econômicos, que muitas vezes são irreversíveis. A pobreza corresponde à condição de impossibilidade de acesso às necessidades humanas elementares, o que também nos remete ao fator identitário.

A construção do sujeito em situação de pobreza extrema é coberta por uma invisibilidade de existência. No que se refere à identidade, para a elite global extraterritorial, ela é construída e uma mera questão de escolha eventual e postiça. Portanto, a comunidade da elite global é antagônica à comunidade dos fracos, dos que têm fome… Ela responde a necessidades inteiramente diferentes. A comunidade dos ricos promove a fluidez do consumo e a liberdade. A cultura para ela transita pela sobreposição e por convenções revogáveis. Não há nenhum compromisso da sua parte com alguma comunidade; para ela, a comunidade ideal é aquela que se dissolve tão logo é formada. A identidade então, nesse contexto, deve ser flexível e estar sempre passível de reelaboração e desgaste.

Desse modo, a vida se torna um “[…] colapso do pensamento, do planejamento e da ação no longo prazo”
(BAUMAN, 2009, p. 9).

O mundo perpassa por uma crise jamais vista no seio da modernidade, as várias fomes… Elas representam e sinalizam a necessidade de um olhar específico para a humanidade, pois as consequências para as futuras gerações serão críticas. Essas ações podem determinar a inviabilidade da preservação da vida humana no planeta. Segundo Bauman (2001), a fome no Brasil encontra terra fértil no individualismo, pois a pós-modernidade é fortemente influenciada pelo individualismo.

O mundo perpassa por uma crise jamais vista no seio da modernidade, as várias fomes…
Elas representam e sinalizam a necessidade de um olhar específico para a humanidade, pois as
consequências para as futuras gerações serão críticas.”

Para Bauman (2001), vivemos em tempos de modernidade líquida; isto é, tudo perde a solidez que o caracteriza, portanto o que é líquido se esvai rapidamente em segundos, como a água que não podemos represar nas mãos, pois é impossível conter um líquido senão em frascos. Certamente, isso nos faz refletir que estamos inseridos numa existência que não vivencia a realidade da vida de forma duradoura, mas de forma fluida, fugaz. Observamos isso no comportamento, nos hábitos e nos próprios relacionamentos humanos que não duram muito tempo.

Então, isto é a modernidade? É isto que estamos vivenciando? Sim, ela transita pelo processo de destruição criativa, que desenraiza o velho para reenraizá-lo de outra forma. A modernidade hoje é caracterizada, justamente, pela dissolução das forças ordenadoras que permitem ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas sociais modernas (BAUMAN, 2001). Foram os padrões sociais que se tornaram liquefeitos, como a cidadania, a classe, o Estado-nação.

Rocha (2001) nos traz uma reflexão sobre o homem moderno, que vive na era do plástico: “[…] dele deriva certo pragmatismo do descartável” (ROCHA, 2001, p. 20). Para o autor, vive-se na modernidade uma cultura niilista e uma crise de valores transcendentais.

Para Rocha (2001, p. 73), “[…] reinam o consumismo no lugar da sobriedade, o estresse no lugar da vida organizada e harmoniosa”. A modernidade conduz a uma existência vazia. Certamente, há fome de ser e de existir… Há necessidade dos bens indispensáveis a uma vida plena, que não podem ser comprados com dinheiro. Há fome de ser sujeito.

Os valores primordiais, como o companheirismo, a amizade, o amor, a autoestima, o respeito mútuo, que são intangíveis por natureza, não podem ser adquiridos no mercado; são construídos socialmente. É preciso que a população tenha uma vida sadia, não sofra as mazelas sociais para que esses valores se mantenham.

Precisamos refletir sobre a pergunta: eu tenho fome de quê?

Certamente, não é somente fome de passar fome do estômago, não é só viver de comida. A necessidade humana é maior e mais ampla do que a fome de comida; portanto, vivenciamos a fome simbólica, que permeia a fome de dignidade (qualidade moral que infunde respeito, consciência do próprio valor); de identidade (a invisibilidade de quem tem fome); de justiça; de moradia digna; de saúde; e das jornadas de trabalho mais humanas, que impossibilita o acesso ao lazer e aos bens culturais. Fomes legítimas, que constituem os direitos de uma sociedade.

Considerações finais

A fome dói, a fome adoece, a fome mata, as várias fomes extirpam a dignidade…

A falta de políticas públicas, a produção de refugo humano promovida pela modernização é, sem dúvida, uma triste e dolorida realidade que temos com a geopolítica da miséria, da crise humanitária.

E, quando falamos de fome, entendemos a alimentação humana pela dinâmica entre o alimento (natureza) e o corpo (natureza humana), não só a fome do estômago; portanto, é necessário que os “alimentos” sejam transformados em formação de sujeitos, em gente, em cidadãos saudáveis.

A crise humanitária não é de agora…. foi e é uma construção a médio e longo prazos, elaborada através de uma “modernidade líquida que transita pela civilização do excesso, da superfluidade, do refugo e de sua remoção” (BAUMAN, 2003, p. 120). Certamente, uma “produção de ‘refugo humano’, ou melhor, de seres humanos refugados […] é um produto inevitável da modernização e um acompanhante inseparável da modernidade”.

Vivenciamos muita fome… várias fomes… Eu tenho fome de humanidade… E você?


Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Universidad Tres de Febrero), pós-doutoranda em Psicologia, Doutora em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, psicanalista clínica, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), autora de projetos em Educação e da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia Clínica como projeto social e autora e organizadora de treze livros nas áreas da Educação e da Psicologia.
E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_____. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

_____. Arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Entrevista com Zygmunt Bauman. Tempo social. São Paulo, v. 16, n. 1, 2004.    

 UNICEF. Situação mundial da infância, 2001. Brasília, Unicef, 2001. 
          
TOLOSA, H. C. Pobreza no Brasil: uma avaliação dos anos 80. In: Veloso, J. P. R. (Org.) A questão social no Brasil. São Paulo: Nobel, 1991.
        
ROCHA, S. Pobreza no Brasil. O que há de novo no limiar do século XXI? [artigo publicado em Economia, revista da Anpec, v. 2, n. 1, janeiro/julho de 2001, p. 73-106]. 
       
MONTEIRO, C. A. A dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil. São Paulo. Estudos Avançados, v. 9, n. 24, p. 195-207, 1995.
        
MONTEIRO, C. A. (Org.) Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. São Paulo: Hucitec – Nupens/USP, 2000.

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