Edição 128

Profissionalismo

Fraternidade e fome

Nildo Lage

O que é fome? Quem nunca teve consegue descrevê-la?

A ciência, que tem resposta para tudo, afiança com caução: fome é um efeito fisiológico incitado no organismo pela carência de ingredientes nutricionais. O impacto dessa deficiência é de tal dimensão que a grelina — hormônio polipeptídico suscitado pelo estômago, cujo desígnio é atuar como combustível do metabolismo energético por meio da deglutição de alimentos — é comprimida pela ausência de mantimentos.
Já que a ciência nos elucidou o que é fome, vamos aferir o seu impacto na sociedade! Pois temos ciência de que o planeta pós-pandemia reiniciou a rotação mais esfomeado e, mesmo com o recuo de dois anos no seu fuso horário, não ousa precipitar a rotação, com receio de se deter sob as sombras das ameaças de uma nova pandemia.

Contudo, quem tem fome sabe disso? Acredito que não! Porque a fome é tão cruel que o estado da insegurança e nutrição no mundo assinala números que aterrorizam, e, por ser um problema de ordens econômica e social, os gestores do planeta não conseguem promover a distribuição de renda numa proporção que atenue um caos miliário.

Para agravar a crise, a intensificação dos conflitos, como guerras civis e internacionais, aliada a fatores climáticos, como secas intensas, impede a prática da agricultura; sem contar que enchentes assoladoras varrem tudo e arremessam continentes — como Ásia e África — num patamar que preocupa os órgãos internacionais, e o decrescimento da produção de alimentos influencia na ascensão do índice da fome.

Os números são abissais. Mais de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. A África e a Ásia concentram a grande parcela desses famintos, expondo um cenário desolador e, o mais agravante, sem horizonte para sair do problema, pois todos os fatores favorecem a sustentação desse patamar: secas, enchentes, conflitos internos e internacionais, que abarrotam campos de refugiados, onde famílias abandonam tudo e partem em busca de paz e segurança, elevando o gráfico da pobreza e da desigualdade social.

O mapa da fome esboça, na legenda, uma injustiça social agenciada pela atrocidade de gestores que asfixiam vidas — a exemplo do Djibuti, na República do Djibuti, última colônia a se desprender do domínio francês na África, cuja população não atinge 900 mil habitantes — e que, além dos contrastes socioeconômicos, mantêm o país numa linha de miséria absoluta.

O menor país da África Subsaariana, um altiplano quente e árido, com vastas cadeias montanhosas, é entrecortado por lagos de águas salgadas, a chamada Terra de Toth, dividida entre as tribos somalis Issa e Afar, que sobrevivem, há mais de mil anos, comercializando peles em troca de especiarias chinesas, egípcias e indianas.

Mais de setenta e seis por cento da população se amontoa na zona urbana em meio a doenças, fome, violência e uma taxa de desemprego que ultrapassa os sessenta por cento, tornando a nação dependente dos donativos internacionais para, assim, equilibrar a balança comercial que sobrevive dos movimentos do porto da capital. E, se não fossem subsídios externos, a situação seria ainda mais drástica.

O clima é um desafio, de difícil adaptação. Quem desembarca no país recebe, como primeiro impacto, o choque térmico, por ser o ambiente mais quente e árido do mundo. Tais fatores impedem práticas agrícolas, fazendo da importação a única porta de entrada de alimentos; e, sem produção que atenda ao consumo interno, o alastramento da miséria é inevitável, chegando a uma dimensão assombrosa, que alça o índice de uma realidade tão atroz que a desumanidade furtou à essência humana.

O caos acende calafrios ante a decomposição humana que se resume em mulheres, homens e crianças que mal conseguem manter-se de pé devido à desnutrição.”

Nesse cenário artificial, a vida humana simplesmente se agita de um lado para outro, retorna ao ponto de partida, num vai e vem ininterrupto, onde não se vive, afronta-se as investidas da morte, numa realidade vegetativa. O caos acende calafrios ante a decomposição humana que se resume em mulheres, homens e crianças que mal conseguem manter-se de pé devido à desnutrição.

A realidade se confunde com as passagens bíblicas de 2 Reis 6:26-29: “Um dia, quando o rei de Israel inspecionava os muros da cidade, uma mulher gritou para ele: ‘Socorro, majestade!’. O rei respondeu: ‘Se o Senhor não socorrê-la, como poderei ajudá-la? Acaso há trigo na eira ou vinho no lagar?’. Contudo, ele perguntou: ‘Qual o seu problema?’. Ela respondeu: ‘Esta mulher me disse: — Vamos comer o seu filho hoje e amanhã comeremos o meu! Então cozinhamos o meu filho e o comemos. No dia seguinte, eu disse a ela que era a vez de comermos o seu filho, mas ela o havia escondido”.

É essa a realidade que salienta o cotidiano de um povo que se habituou a se relacionar com as dificuldades, as dores, a fome, as doenças e com a própria morte.

Fome: um colapso humanitário

Mudanças climáticas, guerras, catástrofes, conflitos, inconstâncias políticas e econômicas são ações impiedosas que deixam um rastro de aniquilamento, salientando a sua face macabra. A fome condensou uma crise humanitária a ponto de instituições políticas e sociais não conseguirem debelá-la para anteparar a transgressão dos Direitos Humanos, como no caso do Iêmen, que, em sete anos de guerra, foi devastado, provocando a falência não apenas de empresas, mas instigando o colapso humano, com vidas sendo assoladas juntamente com usinas, prédios, escolas, hospitais, arremessando mais de 20 milhões no corredor da fome, o que posicionou o país na pior crise humanitária do planeta.

Ante tantos exemplos, é preciso um despertar universal. Fome não é trailer de um filme de terror! É realidade, e não podemos fechar os olhos como se estivéssemos com um controle remoto na mão e mudássemos o canal. Combater a fome e a desigualdade social no século da Geração Fast Food é o maior desafio dos governos mundiais.

Nessa trajetória, fraternidade e solidariedade se convertem em ferramentas fomentadoras de alimentos, porque os efeitos da fome não apenas amofinam o humano, mas fortalecem um capitalismo que se infiltra como vírus para atingir o propósito de se tornar absoluto, salientando que a falta de amor pelo outro é uma haste para apoiar uma miséria insustentável.

Se a fraternidade não sensibilizar os gestores e, assim, redirecionar olhares para o bolsão da miséria que se cunhou para acolher os excluídos de alimentos, cuja sobrevivência se estabelece em disputar, em lixões, com cachorros e urubus, as migalhas descartadas da mesa do capitalismo, auferirá cunho de pandemia.

Pois a fome, incitada pela desigualdade social, dilata uma injustiça de tamanha grandeza que a indigência se detém para dar passagem à miséria, estimulando a indústria alimentícia a acionar mais e mais as suas máquinas para produzir, e, por mais que produza, a parcela de famintos segue a mesma ascensão.

Combater a fome e a desigualdade social no
século da Geração Fast Food é o maior
desafio dos governos mundiais.”

Nesse processo, o grande vilão — o desemprego — arremessa famílias às ruas para mendigar o pão de cada dia. E o submundo das ruas se tornou palco para exibir os desníveis sociais, onde olhares são afugentados, portas cerradas com um “Não tenho nada a ver com isso!”. Se essa é a regra, para que falarmos de fraternidade?

Não importa onde ou como estamos. Se voltarmos o olhar para a linha do horizonte social, todas as setas sinalizam para o mesmo despenhadeiro: a miséria!  O incrível é que, do lado de lá, o Éden — indústria e agronegócio — produz cada vez mais! Do lado de cá, o bolsão da miséria contempla o desperdício.

Se há desperdício, por que tanta fome? Mau gerenciamento, que bloqueia a justiça na distribuição? Problema econômico? Como encontrar o ponto de partida num país que não cria oportunidades para os menos favorecidos? De quem é a responsabilidade?

O dardo volve e se detém no vilão econômico. Não tem jeito, a culpa é da globalização, que não desacelera suas máquinas e ostenta o hipercapitalismo, que difunde pobreza e fome, e, mesmo com o adiantamento assombroso do campo técnico-agrícola, falta comida para uma parcela dantesca.

As implicações dessa deficiência estão à mostra nas ruas: os glutões correndo contra a obesidade, e os famélicos — já esqueléticos — cambaleando até uma lata de lixo, impelidos pela esperança de que os concorrentes — ratos, cachorros e urubus — sejam parceiros e permitam compartilhar os descartes da mesa do capitalismo.

Essa disparidade social promove o alastramento da fome não apenas no Brasil, mas em toda a Terra. O avanço é de uma magnitude que até as potências econômicas caíram nas suas garras — tanto que, nos Estados Unidos, o número de moradores de rua se eleva a cada dia —, e encontrar a saída para matar tanta fome é o grande desafio.

No Brasil não é dessemelhante.
No seio do “gigante pela própria natureza”, a desigualdade, excepcionalmente social, é histórica. E ela não é um fenômeno. É agente desenvolvido no laboratório da própria sociedade de direito, que não consegue combater a bactéria contrafação, que maneja pobreza, miséria e fome como ferramentas eleitoreiras.

O que falta? Justiça? Humanidade? Solidariedade? Fraternidade? Amor? Ou é deficiência de tudo? O que tem que ser feito? Debelar o desperdício, para que sejam rompidas a distância entre classes e raças e as barreiras da desigualdade, por meio da justa distribuição de renda, e para que o desperdício e a fome não permaneçam como conjunturas dicotômicas, que fazem do cidadão um ser conservado em condições sub-humanas, cuja rotina é peregrinar, muitas vezes, mendigando, para angariar alimentos.

O surpreendente nesse processo que vem amofinando o humano é como a fome se agrava no Brasil. Em 2022, atingiu um patamar tão elevado que o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil salienta que somente 4 entre 10 famílias obtêm alimentação. São nada menos do que 33,1 milhões de pessoas em estado de vulnerabilidade alimentar.

Se adicionarmos esse montante às pessoas que passam fome no resto do mundo, o total é mais de quatro Brasis que despertam de manhã, não fazem um desjejum e perambulam sem a certeza de que terão algo para comer no almoço.

É estridente! O alarme da fome não desliga! E fome é crise humanitária! Não adianta os gestores engessarem. A razão de tanta fome, além do impacto dos dois anos da pandemia de Covid-19, que provocou o alastramento da crise econômica, é a ineficiência de políticas públicas, que agenciou a elevação do nível das desigualdades sociais, estabelecendo que os excluídos gritem: “Por que, no celeiro que abastece o mundo, há tanta fome?”.

Para encontrar a resposta, não é preciso esquadrinharmos as regiões do País à procura do vilão, basta analisarmos os fatores que negociam as desigualdades socioeconômicas e a pobreza e aliá-los às crises econômicas e políticas que visualizaremos o primeiro retorno: o campo, cujos recursos naturais não são manejados adequadamente.

Os impactos desses reflexos são vistos nas ruas, que se tornaram anfiteatro de uma realidade cruel, cujo roteiro exibe as mazelas sociais. Crianças em situações econômicas de risco são podadas do direito à própria educação, pois abandonam o saber para defender o seu bem mais precioso: a vida.

E você, tem fome de quê? Não diga: “De nada!”, pois todos temos fome de algo! Assim, seja honesto e responda: a sua fome é só de alimento? Não? Nesse caso, a sua fome pode, verdadeiramente, não ser de alimentos! Nem mesmo de saber!

É fome de quê? Sei lá? É isso, a sua fome não é orgânica nem fisiológica, e, para esses necessitados, pão, arroz, feijão não suprem a deficiência de nutrientes sociais.

A fome emocional tem inúmeros motivos para exigir que seja saciada, até mesmo depressão, angústia,
ansiedade e, por que não, felicidade, que eleva a impressão de exultação extraordinária.”

Se não quer encarar a fome — do outro —, vamos fazer vista grossa e falar de outras fomes? Pois fome nem sempre é de comida. Aquele abastado que cruza o caminho de um insignificante famélico, muitas vezes, estabelece que o estômago grita. Tão somente, grita por gritar, não por alimentos que tenham sustança, mas alimento social.

Todavia, ao transitar num meio onde comida é oferecida como complemento, é impossível não ser acossado pela fome específica. Essa espécie de fome, de tão exigente, estabelece pratos peculiares para agradar ao paladar, e não ao estômago, que pode estar cheio.

O fato é que essa fome fisiológica conduz a outra fome: a emocional, e esta decreta tão somente um motivo: uma conquista. Ganhamos e vamos empanturrar para que o estômago se sinta consolado, porque a fome emocional tem inúmeros motivos para exigir que seja saciada, até mesmo depressão, angústia, ansiedade e, por que não, felicidade, que eleva a impressão de exultação extraordinária.

E sua fome é de momento? Do tipo, vi, gostei… Não tem jeito, bateu aquela fome? Que fome? Fisiológica? Emocional? Não! É fome situacional! Aquela que basta passar em frente a uma lanchonete que o aroma de bolos, doces e salgados aguça o faro, atrai os olhos, que se esbugalham ao se depararem com aquele sanduichão, um bolo irresistível. O estômago grita: estou com fome!

Falar de comida é interessante! Vamos começar de novo? Você tem fome de quê? De amor, carinho, afeto, solidariedade ou fraternidade? Sendo assim, o que é fome, se temos uma lista para saciar?

Só que, no estômago vazio, o retorno é automático, e, se desejar verdadeiramente saber o que é fome, pergunte no fim do dia ao que dormiu de barriga vazia! Porque a fome que estamos enfocando é esta mesma: deficiência de nutrientes orgânicos! Fome que podemos matar no outro com um simples ato de amor e solidariedade pelo próximo.

cubos