Edição 130
Construindo mais conhecimento
Função Executiva na construção da leitura e da escrita: importância, desafios e pré-requisitos necessários para o letramento
Cristiane Botelho da Fonseca e Vera Lucia Monteiro de Siqueira
Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo discutir o processo de desenvolvimento e a importância das Funções Executivas (FE) e do letramento atrelados às habilidades cognitivas e ao processamento da leitura e escrita, fundamentalmente. A Neuropsicopedagogia é uma ciência transdisciplinar, esteada nos conhecimentos da Neurociência justaposta à Educação, agregada às áreas da Pedagogia e Psicologia Cognitiva, que evidencia todo o funcionamento das áreas cerebrais do sistema nervoso, bem como a aquisição da aprendizagem, e corrobora com subsídios qualitativos e enriquecedores para a composição desta pesquisa, cuja temática está intrinsecamente conectada a essa ciência. O principal foco é demonstrar que as Funções Executivas, desenvolvidas e estruturadas desde do início da vida das crianças, podem contribuir significativamente para a compreensão da leitura, ultrapassando o conceito de que as escolas vêm produzindo “ledores”, capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes dificuldades para compreender o que tentam ler (leitores).
Palavras-chave:
Funções Executivas, Letramento, Habilidades Cognitivas, Leitura e Escrita, Neuropsicopedagogia.
1. Introdução
Ler e escrever um texto é introduzir uma conjuntura discursiva. Aliás, essa conjuntura discursiva se origina desde o momento que observamos a capa, a ilustração, o título, o nome do autor… É essa conexão que se constitui entre autor e leitor que edifica o sentido de qualquer texto diante a realidade em que vive, pois vai além do reconhecimento de palavras. Mais do que isso, é compreender o que se reconhece.
Desse modo, esse processo de leituralização e Funções Executivas (FE), quando ocorre simultaneamente, proporciona um caminho de sucesso, segurança e autoestima, pois aprender a ler consiste em colocar em conexão dois sistemas cerebrais presentes na criança bem pequena: o sistema visual de reconhecimento das formas e as áreas da linguagem.
De fato, essa temática vem sendo muito discutida, em função de existir muitas queixas de professores e responsáveis sobre dificuldades na leitura e escrita de seus alunos e filhos. Essas contestações, na maioria das vezes, geram conflitos, descontentamentos, baixa autoestima nas crianças que, antes mesmo de qualquer análise médica ou de equipe multidisciplinar, já estão sendo rotuladas como pessoas com algum transtorno, distúrbio, dificuldade ou doença relativos à não apreensão do processo da leitura e da escrita.
No entanto, entender e fazer entender que leitura não é uma habilidade inata é um processo complexo, porém muito significativo. Ela depende de um processo intensivo e sistemático de aprendizado focado na forma das letras, nos grafemas, na relação específica do fonema com a palavra escrita e a definição desta, concomitantemente associada com a ativação de uma rede de áreas cerebrais, em especial o córtex pré-frontal, o córtex frontal e parietal, que necessitam de estudo, de conhecimento[1].
2. Metodologia
Este estudo se baseou em referências bibliográficas de autores renomados como Paulo Freire, Edwiges Zaccur, Stanislas Dehaene, Magda Soares, Alessandra Gotuzo Seabra, Newra Tellechea Rotta, Rudimar dos Santos Riesgo, Fernando César Capovilla, Simaia Sampaio, entre outros, com o objetivo de apresentar e enfatizar, para os profissionais de educação e as famílias, a importância das Funções Executivas e do letramento.
3. Revisão de literatura, resultados e apresentação de dados
As crianças são inseridas no fabuloso mundo do aprender a ler e escrever no auge da maturação cerebral infantil, e esse fato se torna um dos maiores marcos na vida de uma criança.
Durante todo o início do ano letivo, as crianças vão regressando ao ambiente escolar repletas de esperanças, perspectivas, expectativas, alegres por rever seus amigos, curiosas por conhecer os novos professores e as novidades que a unidade escolar preparou para a sua chegada e para todo o ano letivo. Inseridas nesse grupo infantil estão aquelas que farão parte dos anos iniciais, que estão motivadas a compreender e apreender um novo código que proporcionará a entrada ao mundo da leitura, ao acesso independente ao mundo letrado.
A apreensão de um novo código se torna mágica para o universo infantil da faixa etária entre 6-7 anos. As crianças são inseridas no fabuloso mundo do aprender a ler e escrever no auge da maturação cerebral infantil, e esse fato se torna um dos maiores marcos na vida de uma criança, desde que todas as áreas cerebrais estejam preparadas e motivadas para tal.
A maturação e o processamento neuronal associados com o reconhecimento das palavras são extremamente complexos, o que torna o processamento da leitura e da escrita desafiante. Vai além do reconhecimento das palavras: é necessário automatizar esse processo para permitir a fluência da leitura, ou seja, é quando a criança consegue atingir um nível de precisão e rapidez em que a decodificação do texto acontece sem esforço e a atenção é voltada para a compreensão, percebendo que o desenvolvimento desse processamento da leitura e da escrita dependem das Funções Executivas potencializadas qualitativamente, uma não acontece sem a outra[1].
Além das áreas responsáveis pelo reconhecimento das letras, dos grafemas e dos fonemas, a fluência leitora depende também das FE (controle inibitório, atenção seletiva, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho). A memória de trabalho, por exemplo, que é utilizada para reter informações importantes para uma tarefa por um período de tempo curto, possui uma capacidade máxima de cerca de sete itens[1, 4].
A fluência leitora e a capacidade de memória de trabalho possuem uma relação bidirecional; assim como a capacidade de memória de trabalho restringe os níveis de fluência, a leitura regular também promove melhoria dos níveis de memória de trabalho. A falta de fluência leitora associada com a baixa capacidade de memória de trabalho acaba diminuindo o interesse pela leitura, que, por sua vez, impede melhoras na memória de trabalho[1, 2, 3, 4].
Ainda, transferir os conhecimentos adquiridos em nível de linguagem oral para a linguagem escrita é um acontecimento de maior complexidade cognitiva para todas as pessoas que estão inseridas nesse processo de letramento. E, nesse nível de complexidade cognitiva, pode-se afirmar que, de acordo com estudos de muitos autores, as Funções Executivas estão inseridas por possuírem múltiplas habilidades e estão vinculadas a outras funções da cognição humana, como o raciocínio verbal, a resolução de problemas, o planejamento, a atenção, a habilidade de organização, a memória, a flexibilidade cognitiva, entre outros.
Diante ao exposto, as FE possuem a fórmula, quando bem desenvolvida desde muito cedo nas crianças, de promover a autonomia, o sucesso e o comportamento planejado, com atitudes que auxiliem o bem-estar da saúde mental e física, que, consequentemente, permitirá a execução de tarefas, das simples às mais complexas, de forma linear, organizando os pensamentos e as emoções, adaptando-se a fatores ambientais internos e externos para atingir o objetivo final[5].
Nesse sentido, é se transformar, permitir-se, apropriar-se do mundo letrado e, ao mesmo tempo, possuir todos os componentes das Funções Executivas bem desenvolvidos. Desse modo, pressupõem-se também a valoração das práticas sociais em seus diversos níveis e setores, a utilização dos bens culturais apropriados pelas crianças e, fundamentalmente, a oportunidade de se comunicar, pois o objetivo desta pesquisa vem acordar com as palavras do educador Paulo Freire[6]: “[…] a leitura do mundo precede sempre da leitura da palavra, e a palavra desta implica a continuidade da leitura daquele” e “[…] antes de ensinar uma pessoa a ler as palavras é preciso ensiná-la a ler o mundo”.
As FE e o letramento estão intrinsecamente ligados à viabilização do acesso do educando ao universo dos textos que circulam socialmente e à conscientização de que, através da leitura e da escrita, podem-se adquirir conhecimentos que promoverão mudanças interpessoal e intrapessoal que interferirão no comportamento, como pontua Vygotsky quando afirma que todas as funções relacionadas ao desenvolvimento infantil podem ser observadas em duas situações: primeiramente no âmbito social (interpessoal) e depois no individual (intrapessoal)[7].
O domínio das FE e da língua, oral e escrita, é essencial para atingir o êxito total do desenvolvimento referente ao processamento da leitura e da escrita. É nesse contexto que as pessoas interagem umas com as outras; e com as crianças não seria diferente, tanto que, através dessas habilidades, elas trocam informações, opiniões, verdades, o que aprenderam, suas vitórias, seus ganhos e suas perdas, entre outros fatores determinantes[2, 8]. Nesse sentido, é fundamental o papel da escola de estar presente nessa proposta do fazer desenvolver, do fazer garantir, do fazer intermediar, do fazer conquistar, do fazer “ser”, pois, como afirmado nos Parâmetros Curriculares Nacionais, é dever da escola assegurar a todos os seus alunos o ingresso aos saberes linguísticos, fundamentais para a realização dos direitos e deveres do indivíduo, direitos estes intransferíveis[14].
Ainda nessa perspectiva sobre a importância do equilíbrio das FE, o domínio da leitura e da escrita e o papel fundamental da escola, cabe destacar o período da Educação Infantil, em que são realizadas, nas tarefas diárias, atividades que desenvolvem as habilidades executivas, que, como já vimos, são primordiais para estabelecer a base que norteia o letramento, ativando todo o cérebro da criança (principalmente o lobo parietal, que tem suas funções lincadas com a aprendizagem, possibilitando a estruturação da lateralidade e da espacialidade e conferindo à criança o poder de discriminar letras parecidas espacialmente e de compreender o que está a aprender, pela área parietotemporal), além de motivar a comunicação, a psicomotricidade, a linguagem oral e escrita, a criatividade, a socialização, as noções matemáticas e do corpo humano, entre outros. Desse modo, transforma o desafio do aprender a ler e escrever num processo lúdico e inspirador, mesmo que se enfrente um desafio enorme pela complexidade de passar os conhecimentos adquiridos do nível da linguagem oral para a linguagem escrita[2, 3, 4, 8].
Cada novo desafio leva a criança a novas descobertas, e, desse modo, as FE entram em ação, podendo ocorrer em estimativas diferenciadas, dependendo do nível de desenvolvimento executivo que aquela criança possui. Mas sempre que acontecem progressos com caminhos difíceis para atravessar, caminhos estes fundamentais, como o processamento da leitura e da escrita, essas funções são ativadas e entram em ação[2, 3, 4, 8].
O repertório executivo está sendo sempre elencado, e isso é notório quando uma criança está associando um fonema (som) a um grafema (letra), aderindo a importância de muitas sílabas em uma palavra, identificando e reconhecendo a partir de sua primeira sílaba, conseguindo manter memorizado o primeiro parágrafo para o próximo a seguir, e assim sucessivamente. Isso significa que estão fazendo seu papel e que as habilidades necessárias para o controle inibitório (parar para poder prestar atenção), a atenção seletiva (prestar atenção, selecionar e focar) e a memória de trabalho (capacidade de manipular as informações temporariamente e associá-las ao que já foi aprendido, mantendo-as em mente enquanto for necessário) estão fluindo para garantir o processamento da leitura e da escrita[2, 3, 4, 8].
Para que o processo da leitura e da escrita ocorra de forma leve e qualitativa, com o auxílio dos componentes das Funções Executivas desenvolvidas, faz-se necessário assegurar e inserir algumas novas práticas no cotidiano escolar, bem como familiar, como pontuar diferença entre a fala e a escrita; fazer da tecnologia uma aliada; atuar como mediador entre a linguagem, o conteúdo e o aluno; promover uma cultura leitora; inovar e se qualificar. Não se escreve como se fala, então se faz necessária a adequação de termos e estruturas frasais, respeitando características dos gêneros textuais e incluindo a sinalização de aspectos pragmáticos detectáveis sem os recursos de que dispomos na fala[9].
Desse modo, é perceptível que, cada vez mais, estudos e observações clínicas e escolares tragam evidências de relação das FE com o processamento da leitura e da escrita, além de promover pesquisa quanto às dificuldades que poderão ocorrer ao longo do processo, como os transtornos específicos de aprendizagem (com prejuízo na leitura e na expressão escrita), entre outros fatores.
Dessa forma, os educadores são os principais modeladores e estimuladores das FE à medida que fazem a mediação das múltiplas aprendizagens informais e formais no árduo e longo processo de letramento[2, 9].
Assim, estimular o processamento executivo nas crianças para que elas possam interagir social e emocionalmente resultará no desenvolvimento cognitivo qualitativo. Desse modo, pode-se promover essa motivação através do brincar, evitando as agendas cheias de cursos e atividades formais; apresentar naturalmente o mundo da leitura e da escrita, desenvolvendo interesse espontâneo e curiosidade sobre os livros; ensinar canções que aumentam gradativamente em detalhes, que, consequentemente, estimulam a memória de trabalho; incluir, no planejamento da rotina familiar e escolar, dramatizações que irão auxiliar no desenvolvimento da flexibilidade cognitiva e diálogos que ressaltem a hora de cada um falar, que também auxiliam na evolução da flexibilidade mental; motivar a contação de histórias com a participação de alunos distintos, cada um acrescentando uma parte, em construção coletiva; promover jogos de categorização, de stop ou que requeiram respostas rápidas; atividades de educação física com circuitos, pois estimulam a flexibilidade cognitiva e o controle inibitório à luz da psicomotricidade (as habilidades motoras são precursoras e mediadora das FE); desenvolver tarefas de organização e planejamento de atividades; entre outras atividades dinâmicas, enriquecedoras e preceptoras de construto das áreas cerebrais[1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13].
Logo, as FE são além de para a escola! São para a vida, e é necessário cuidar bem dessa riqueza. Nesse sentido, pode-se afirmar que ter acesso ao letramento e ao processamento da leitura e da escrita unidos às Funções Executivas, simultaneamente, é um dos melhores estímulos naturais.
4. Conclusões
Este artigo referencia a importância do desenvolvimento das FE para o processamento qualitativo da leitura e da escrita, destacando que esse processo bem preparado permite às crianças, em sua essência, ultrapassarem as barreiras do decodificar letras e sons e participarem da leitura do mundo, inserindo-se como cidadãs.
Os educadores e a família têm papel fundamental para tal resultado! Faz-se necessário refletir sobre as Funções Cognitivas, em especial as FE, que estão intrinsecamente ligadas ao mundo mágico da leitura e da escrita, sobre o que essas funções representam e como podem promover melhores aprendizagens aos seus alunos e filhos pelas possibilidades de compreensão, atenção, memorização, flexibilização, organização, rotina, entre outros, tornando-se donos da sua própria linguagem, da sua própria escrita e da sua própria história[5, 9].
Logo, percebe-se que o funcionamento executivo é fundamental para uma aprendizagem estimatória e, desse modo, requer um ciclo contínuo entre contextualização, significação e sistematização. E os educadores não podem permanecer indiferentes aos novos desafios e às novas conquistas e descobertas para desenvolver positivamente a formação de sujeitos leitores e escritores. De fato, instituir novas práticas em sala de aula com conhecimento teórico substancial e aplicar o desenvolvimento das FE na rotina escolar permitirão que a escola seja um local de descobertas, de realizações e, sobretudo, do aprender a aprender com alegria[5].
Destarte, cada vez mais, vemos pátios de escolas mais numerosos, recheados de crianças curiosas, ativas, criativas e energicamente disponíveis para conhecer o mundo! E cabe ao educador, à família, a quem convive com essas crianças repletas de vida motivá-las para que cresçam, desenvolvam-se e evoluam, tornando-se leitoras e escritoras proficientes na própria língua, que saibam pensar “dentro e fora da caixa” com autonomia, segurança e criatividade.
Vera Lucia Monteiro de Siqueira é acadêmica do curso de Pós-graduação Lato Sensu em Neuropsicopedagogia Clínica da Faculdade Censupeg 1 e professora orientadora dos cursos de Neuropsicopedagogia da Faculdade Censupeg 2.
Cristiane Botelho da Fonseca é mestranda em Neurociências e Educação e cursa Especialização em Autismo e Intervenção em ABA, em Neuropsicologia da Educação e em Psicologia e Educação.
E-mail: crisbotelhofonseca@yahoo.com.br
Referências
[1] DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso, 2012.
[2] SEABRA, Alessandra Gotuzo; DIAS, Natália Martin. Avaliação neuropsicológica cognitiva: atenção e funções executivas. São Paulo: Memnon, 2012. v. I.
[3] SEABRA, Alessandra Gotuzo; DIAS, Natália Martins; CAPOVILLA, Fernando César. Avaliação neuropsicológica cognitiva: leitura, escrita e aritmética. São Paulo: Memnon, 2012. v. III.
[4] DIAS, Natália Martins; MECCA, Tatiana Pontrelli. Avaliação neuropsicológica cognitiva: memória de trabalho. São Paulo: Memnon, 2012. v. IV.
[5] MOURA, Claudio Burlas de. Funções Executivas: fundamentos da aprendizagem e do comportamento. Santa Catarina: Clube de Autores, 2018.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
[7] VYGOTSKY, L. S.; COLE, M. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: 1998.
[8] CARDOSO, C. O.; SEABRA, A.; FONSECA, R. Funções Executivas: o que são? É possível estimular o desenvolvimento dessas habilidades?, 2016.
[9] SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020
[10] https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 40602016000400053&script=sci_arttest.
[11] https://www.pepisc.bvsalud.org/sielo.php?script=sci_arttex&pid=S0103-84862014000300002.
[12] https://www.pepisc.bvsalud.org/sielo.php?script=sci_arttex&pid=S0103-84862018000200005.
[13] ZACCUR, Edwiges; SAMPAIO, Carmem Sanches; PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal [Orgs.]. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011.
[14] BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEF, p. 1 –23, 2000.