Edição 43
Espaço pedagógico
“Há de se cuidar da vida” O segredo da convivência com o semi-árido brasileiro
Na apresentação do livro Água de Chuva — o Segredo da Convivência com o Semiárido Brasileiro, temos:
“Não temos capacidade para modificar o semi-árido, tornando-o uma região úmida, mas temos a possibilidade de mudar o nosso jeito de viver nele, nossa cultura em relação à natureza. E tudo começa numa atitude simples: recolher água da chuva. Chove até bastante na região, mas de forma desordenada. Ao colher, guardar e usar com cuidado a água das chuvas, estamos reorganizando a vida, criando melhores condições para viver nessa região. E, agindo assim, testemunhamos que somos filhos e filhas de Deus, assumindo a missão de cuidar da terra, cultivando- a com o carinho que a mãe merece.” Pastor Ervino Schmidt, secretário do Conic, e Dom Raimundo Damasceno Assis, secretário da CNBB.
Essas palavras se tornaram uma provocação para alguns professores. As perguntas que nos fazemos a cada planejamento (Que aluno quero formar? Que sociedade penso construir?) nos inquietaram e nos direcionaram para um novo olhar para o semi-árido. Aprender/ensinar que um novo olhar para o semi-árido pode fazer diferença responde à pergunta: “Que sociedade e que aluno, agente transformador de realidades, queremos formar?”.
Culturalmente, nos habituamos a ver a região como um lugar ligado a flagelos, a miséria, sem solução e com a causa maior: a seca. Diante de uma grande seca, Dom Pedro disse: “Venda-se o último brilhante da coroa imperial, contanto que um só cearense não morra de fome e de sede”. E, como D. Pedro, muitos governantes, não conhecendo a realidade geográfica e econômica dessa parte do Brasil, não organizaram um projeto para a convivência com o semi-árido.
Conhecendo o semi-árido
Esse espaço geográfico foi ocupado pelos homens, e a história de mais de 500 anos ali foi construída. Desde que essas terras foram tomadas dos indígenas pela cobiça da colonização européia juntamente com a indústria das secas, essas ações trouxeram muita miséria ao lugar, e, na mentalidade da nação, foi se disseminando a idéia de pobreza extrema que só sobreviveria de caridade. A Sudene, na década de 1950 e no início da década de 1960, organizou um debate institucional sobre a região com projetos que incluíam industrialização, reforma agrária, irrigação e migração dirigida. Mas veio o golpe militar e impediu que o conjunto de iniciativas de desenvolvimento acontecesse.
Cercas, favores e votos
Como explicar que tenha sido criada e mantida durante tanto tempo a imagem de que o semi-árido brasileiro é uma região seca e relativamente inabitável, causador de uma miséria invencível? São muitas as causas, mas sua compreensão poderá tornar-se mais concreta se partirmos de uma apresentação do que é geograficamente esse semi-árido.
Uma área imensa e diversificada
O semi-árido brasileiro é um dos maiores do planeta em extensão geográfica e em população. Tem perto de 868 mil quilômetros quadrados; abrange o norte dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, o sertão da Bahia, de Sergipe, de Alagoas, de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Ceará, do Piauí e uma parte do sudeste do Maranhão. Vivem nessa região mais de 18 milhões de pessoas.
Em termos gerais, é semi-árido um território em que há deficiência e/ou irregularidade de chuvas, fazendo com que a evaporação seja superior à precipitação. Geralmente, nessasáreas, há ocorrência de secas periódicas.
Em condições normais, chove mais de mil milímetros. Issoé muita água em qualquer parte do mundo, um índice privilegiado em comparação com outras áreas semi-áridas. O problema do semi-árido brasileiro é que o cristalino está à flor da terra, praticamente. O solo é muito raso, a retenção de água subterrâneaé muito difícil. Normalmente se tem pouquíssima água retida, porque o run off (escoamento), como dizem os ingleses,é muito forte. A água cai e corre. Se furar um pouco, encontrase rocha cristalina, rocha matriz. Portanto, os solos capazes de reter água mesmo não são muito fundos. Lençóis freáticos, só em certas regiões há, isso tudo com brechas e com rupturas. Em alguns lugares, dentro da rocha cristalina há uma falha grande, onde se encontra água boa e pura. Lá no Piauí e em outras áreas do Nordeste, a rocha granítica matriz se rompeu, acumulou e tem uma piscina de água retida guardada. É uma região muito especial: se for estudada bem, trabalhada bem, desenvolvida, pode ser florescente.
Algumas outras áreas estão em processo intenso de degradação, constituindo o polígono da seca, em que a população sofre muito mais quando as chuvas se tornam mais raras. Mas existem verdadeiros oásis dentro da região, com terras úmidas e que guardam a água como esponjas o ano inteiro.
Essa rápida caracterização nos indica que o desafio central do semi-árido é o armazenamento e o uso adequado da água das chuvas. Existem rios, temos água subterrânea, foram construídas grandes barragens, existem áreas de irrigação com água captada de rios ou de poços artesianos. E, como chove relativamente bem neles, é possível guardar com facilidade o precioso presente.
ASA Brasil — quem é e como surgiu
A Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA) é um fórum de organizações da sociedade civil que atua em prol do desenvolvimento social, econômico, político e cultural do semi-árido brasileiro.
A ASA congrega, atualmente, cerca de 750 entidades dos mais diversos segmentos, como das igrejas católica e evangélica, ONGs de desenvolvimento e ambientalistas, associações de trabalhadores rurais e urbanos, associações comunitárias, sindicatos e federações de trabalhadores rurais, movimentos sociais e organismos de cooperação internacional públicos e privados.
No período de 15 a 26 de novembro de 1999, o Recife foi sede da 3ª Conferência das Partes da Convenção de Combateà Desertificação e à Seca (COP3), patrocinada pelas Nações Unidas. Na ocasião, a sociedade civil organizada e atuante na região do semi-árido brasileiro, reproduzindo a experiência da RIO-92, promoveu o Fórum Paralelo da Sociedade Civil à COP3. Dele, participaram diversas entidades dos cinco continentes, e o seu programa contou com vários eventos, como seminários, exposições, encontros, oficinas, conferências, exibições de vídeos, apresentações artísticas e culturais. O Fórum provocou grande repercussão, dando visibilidade às questões do semi-árido brasileiro.
A ASA, criada em julho de 1999, teve um papel decisivo na coordenação desse processo, vindo a consolidar-se como espaço de articulação política da sociedade civil em fevereiro de 2000. A base de sua constituição é a Declaração do Semi-Árido, documento que sintetiza as percepções dos grupos participantes da ASA em torno do semi-árido. Na ocasião, surgiram as primeiras discussões sobre a possibilidade de se acionar o Governo Federal para que apóie a iniciativa de tornar a cisterna uma realidade presente em todas as pequenas propriedades rurais do semi-árido.
Programa 1 milhão de cisternas (P1MC) nas escolas
Próximo ao centenário de Dom Helder Camara (7 de fevereiro de 2009), o Instituto Capibaribe foi desafiado: cem cisternas em cem lares do semi-árido no centenário do Dom. Procuram-se parcerias com mais escolas, e estas são essenciais. Uma rede de escolas públicas e privadas, juntamente com a Cáritas NE-II, Habitas, organizou uma agenda coletiva para 2008/2009, quando captar recursos não será o essencial, mas formar uma geração com uma nova mentalidade — um novo olhar, uma nova convivência com o semi-árido.
Alunos do Colégio Auxiliadora
Alunos do Instituto Capibaribe
Alunos do Instituto Helena Lubienska
A Cáritas NE-II, em novembro de 2008, celebra a Semana de Solidariedade Dom Helder Camara, quando terá início o projeto com apresentações culturais. Cada escola, de acordo com suas características, se organiza em torno desses temas: cisternas e semi-árido. A rede de parceria para esta proposta solidária está aberta para as escolas que queiram participar, e é só acessar um dos endereços eletrônicos:
• Ana Tereza Ferreira – ananais2005@yahoo.com.br
• Lêda Telles – ledamariatelles@yahoo.com.br
• Hamilton, Helena, Ângelo, Rubem, Everaldo, Janaína – www.caritasne2.org.br / comunicacao@caritasne2.org.br / caritasne2@caritasne2.org.br ou secretario@caritasne2.org.br
• Andréa Perotti – andreaperotti@habitatbrasil.org.br
Sugestão para 2009 – planejamento escolar
“… que a luta pelas cisternas seja um processo educativo e prático que apresse as mudanças políticas indispensáveis…”
Competência: compreender a convivência com o semi-árido e colaborar na melhoria dela através da captação da água.
Habilidades: identificar os problemas do semi-árido brasileiro, confrontar convivências, identificar aspectos como direitos do cidadão a água, construindo uma rede de solidariedade.
Objetivos específicos
• Identificar a paisagem natural do semi-árido.
• Identificar os problemas ambientais e humanos do semi-árido.
• Identificar o clima e a freqüência das chuvas.
• Identificar a formação vegetal.
• Identificar processos de desertificação na região.
• Identificar as unidades de medidas usadas e necessárias para a construção das cisternas.
• Historiar as grandes secas e as suas seqüelas.
• Estudar a água no semi-árido.
• Estudar o P1MC e sua ação no semi-árido.
• Conhecer a biografia de Dom Helder Camara.
• Conhecer a Cáritas e suas ações.
• Identificar as tradições do semi-árido.
Metodologia
I – Aula-passeio
• Visitar o semi-árido buscando entrevistas com moradores que possuam cisternas e com outros que ainda não foram beneficiados.
• Anotação das principais características do(s) ambiente(s) visitado(s).
• Fotografar as diversas paisagens ou filmar, identificando e explicando o porquê da imagem.
• Entrevistar a população para conhecer os principais problemas na saúde, moradia, educação e outros.
• Observar o solo, a fauna e a flora.
II – Seminários
• Conteúdos: desertificação, fauna e flora da região, troca de experiências com outras escolas.
Lembrar sempre
• O acesso à água de qualidade, assim como sua manutenção,é um direito de todo cidadão e um dever do Estado.
• Desmistificar a compreensão sobre a fatalidade da seca, popularizando o conceito de convivência com o semi-árido.
• Sensibilizar para a importância da cisterna, construindo uma consciência coletiva responsável nos estudantes.
• Divulgar o P1MC.
• Promover a multidisciplinaridade presente na interação entre as diversas disciplinas.
Depoimento
“Vivi toda a minha vida carregando água em tempo de seca. Se fosse contar as horas gastas nesse vai-e-vem, dariam dias, semanas, meses de minha vida. Indo e vindo, lata de água pesando nos meus braços, roubando meu tempo, levando minhas forças, minha juventude, desfazendo minhas ilusões, minando nossas esperanças. Mas nunca me entreguei. Não somos de nos entregar, nós aqui do Sertão. Jamais!
Foi nessas idas e vindas que criei cinco filhos, quatro meninas e um menino. Foi nesse afã de sobreviver que eles também aprenderam o valor da água e o peso que representa sua falta. Peso físico, carregando as latas de água nas suas cabecinhas; peso emocional, pois a luta pela água lhes despoja os doces momentos da infância e da juventude, de que outros dispõem para brincar, jogar bola, soltar pipa. Foi assim que os vi crescendo, virando mulheres e homem, saindo de casa, seguindo seus próprios caminhos, construindo seus lares. E lá restei eu sozinha, quando meu marido também se foi deste para o outro mundo. Durante horas, ficava olhando a vida lá fora, pela janela do rancho. Sol, seca, chuva, sol. Verde, cinza, cinza, verde. Água lá longe. E, passando dos 50, parecia que os baldes ficavam mais pesados ainda.
Um dia, meu velho pai veio com a trouxa dele lá pra casa, pois já não dava mais conta de se cuidar sozinho. Foi bom pra ele e bom pra mim. Mas também chegou o dia no qual ele não pôde mais se levantar da cama, e eu tive que ficar cuidando dele. As rugas do seu rosto ficavam ainda mais visíveis quando eu voltava do barreiro com a lata de água, depois de uma hora de caminhada. Ele só me olhava e dizia: “Um dia, minha fia, inda vou construí uma cisterna pra tu não precisá mais carregá água”. E eu sorria por dentro. Sorria e calava.
Passaram-se mais alguns meses e meu velho pai acabou falecendo, sempre repetindo aquela promessa de que um dia iria construir uma cisterna para mim. E já tinha até quase esquecido isso quando…, num santo dia, não é que aparece lá em casa o sindicato e um técnico de não-sei-de-onde, falando na construção de cisternas na nossa comunidade? Dizia que a gente não precisaria mais carregar água nem depender de ninguém e que só com a chuva daria para encher as tais de cisternas de blocos. E fiquei ainda mais surpresa quando o técnico me disse que não precisava mostrar nenhum documento nem lhe ficar devendo favor algum. Não acreditei naquilo, mas… Não custava muito ver para crer. Além do que, não tinha nada a perder, ainda mais na minha idade. Só tinha a ganhar.
E assim foi. Escolheram o lugar, cavaram o buraco, veio o material, fizeram os blocos, e a cisterna começou a tomar forma. Não conseguia acreditar nos meus olhos! Esses olhos que já haviam visto tanta coisa, mas nenhuma como aquela. Ajeitaram as calhas, e lá estava ela prontinha, branquinha, linda, parecendo um milagre do Padim Ciço. Não pude conter a torrente de lágrimas que me rolou pelo rosto. Lágrimas contidas durante anos. Lágrimas de felicidade, de natureza verdejando na primavera. De vida nova, de sertão renascendo. E me lembrei da promessa de meu velho pai: “Um dia inda vou construí uma cisterna pra tu!”.
(Depoimento de Josefa Cabral do Nascimento, 56 anos, da comunidade de Rangel, município de Jassanã, Rio Grande do Norte.)
Depois desse depoimento, um convite:
Coração de estudante, abrace este projeto; professores e professoras, planejem conosco, porque há de se cuidar da vida, há de se cuidar do mundo.
Vivendo o espírito do Natal nessa perspectiva, percebamos que a estrela brilhará neste nosso sofrido semi-árido, e uma mulher dará à luz um menino que hoje e sempre proclamará: QUE TODOS TENHAM VIDA E VIDA EM ABUNDÂNCIA!
Escolas participantes do projeto:
• Escola Recanto
• Colégio São Luiz
• Colégio da Políca Militar