Edição 132
Espaço pedagógico
Inteligência artificial e educação: entre a demonização e a inevitabilidade
Marcos de Andrade Filho
O ChatGPT alcançou a marca de 100 milhões de usuários ativos mensais em janeiro deste ano. Isso faz dele o aplicativo de consumo que cresceu mais rapidamente na História, segundo dados da agência Reuters, apenas dois meses após o seu lançamento, em novembro de 2022. Esse movimento exige uma discussão sobre se as Inteligências Artificiais (IAs) são um fenômeno irreversível em nossa vida ou se, em verdade, merecem a demonização que não raro vêm sofrendo por parte de vários setores, sobretudo da Educação.
Enquanto alguns enxergam a IA como uma ameaça ao desenvolvimento do raciocínio crítico e ao valor do ensino presencial, outros reconhecem seu potencial para promover a personalização do aprendizado e impulsionar o desenvolvimento de habilidades críticas. Nesse sentido, a própria Unesco já se antecipou, lançando, no último mês de abril, um guia de boas práticas para o uso do ChatGPT na Educação Superior.
Ao longo da História, temos visto “previsões apocalípticas” em relação a avanços tecnológicos. Foi assim com o advento da Internet, dos e-books, do ensino a distância e, mais recentemente, do Ensino Remoto Emergencial durante a pandemia de Covid-19. Em todos esses casos, a tecnologia foi inicialmente alvo de críticas e temores infundados. Até mesmo figuras famosas por sua criticidade e grau de ceticismo, como o historiador Leandro Karnal, da Unicamp — que chegou a gravar um programa para seu canal no YouTube desafiando os limites do ChatGPT —, reconheceram os potenciais da ferramenta, a despeito das necessárias críticas.
O fato é que a realidade frustrou os pessimistas: a Internet não acabou com as pesquisas e a leitura, os
e-books não eliminaram os livros, e o ensino presencial não foi substituído pelo ensino a distância. Ao contrário, a tecnologia tem sido uma aliada valiosa — mesmo que de circunstância —, enriquecendo o processo educacional, porque proporcionou ampla gama de recursos e ferramentas de complementação do aprendizado, estimulou a criatividade, motivou o engajamento, disponibilizou o acesso à leitura e à informação e dinamizou o processo de ensino-aprendizagem, tornando-o mais dinâmico e envolvente até na hora mais difícil de nossa história recente.
Ora, se a tecnologia na Educação ainda não foi além, é porque muitos atores dos processos educacionais insistem ou em não os socializar ou preferem “pintar” essas ferramentas com chifres e tridente, negando aos estudantes maiores chances de explorarem diferentes perspectivas e se aprofundarem em áreas de interesse específicas. E isso empobrece o que deveria ser um ambiente rico e diversificado para a aquisição de conhecimento e desenvolvimento das habilidades desses alunos.
Esse cenário nos leva à necessidade de apresentar uma perspectiva tão crítica quanto mais obtemperada sobre o tema, destacando os valores e potenciais das IAs na Educação, ao mesmo tempo que reconhecemos a necessidade de cautela e acompanhamento constante de seus limites práticos e éticos: há privacidade e proteção de dados? Quais os vieses existentes a fim de evitar uma “discriminação algorítmica”? Como garantir transparência e responsabilidade tanto da parte das empresas quanto da dos usuários?
Diante desse aparentemente irrefreável avanço das IAs na Educação, encontramo-nos em um momento crucial para refletir e avaliar seus efeitos. Por um lado, as IAs têm o potencial de oferecer recursos de ensino personalizados, adaptando-se ao ritmo e às necessidades individuais dos estudantes; elas podem, sim, auxiliar os professores na identificação de lacunas de aprendizagem e no fornecimento de feedbacks mais direcionados. Por outro lado, no entanto, é importante reconhecer que as IAs ainda têm limitações, como falta de contextualização e compreensão complexa, entraves na análise de dados subjetivos, dependência de dados de treinamento, restrição à chamada data de corte, etc., mas isso não nos autoriza a profetizar o fim dos tempos.
É importante reconhecer que as IAs ainda têm limitações, como falta de contextualização e compreensão complexa, entraves na análise de dados subjetivos, dependência de dados de treinamento, restrição à chamada data de corte, etc., mas isso não nos autoriza a profetizar o fim dos tempos.”
É bem verdade que uma das grandes dificuldades da maioria dos processos educacionais humanos da atualidade é que nós passamos décadas de estudo formal sendo “ensinados” a buscar respostas para perguntas, às vezes, mal formuladas; porém, somos pouco instruídos a como perguntar bem, como indagar com qualidade e como arguir de modo a extrair o melhor das fontes de informação de que dispomos.
Esse paradigma educacional começa a sofrer um câmbio definitivo com a ascensão de IAs a exemplo do ChatGPT. É preciso, finalmente, ensinar a arguir com qualidade e a verificar, com exatidão e idoneidade, as respostas fornecidas. Ou seja, a futura — mas já tão presente — Educação 6.0 precisa também formar bons prompters em todas as áreas. Curiosamente, o filósofo grego Sócrates, famoso por sua habilidade em formular excelentes perguntas, nunca nos foi tão caro e nunca esteve tão vivo. O exercício do bom prompter é, também, um exercício de maiêutica em que o interlocutor é uma máquina que “aprende”.
Chegamos a um ponto de inflexão histórica em que é preciso vir a público dizer o óbvio: as IAs não substituirão os professores, mas têm claro potencial para complementar sua atuação. Por mais que pareça desnecessário, vale reafirmar aqui que a interação humana é insubstituível e essencial para o desenvolvimento integral dos estudantes e que as IAs devem ser constantemente monitoradas e avaliadas para garantir a qualidade do ensino e a ética em sua utilização.
Porém, como não vamos enfrentar previsões sombrias sem apontar os papéis dos principais atores dos processos educacionais — e isso inclui você, leitor(a) —, reconheçamos que as disparidades socioeconômicas na Educação brasileira têm um impacto significativo no papel de universidades, poder público, escolas, famílias, professores e estudantes em relação às IAs na Educação.
O poder público desempenha um papel crucial na redução das disparidades sociais e no acesso equitativo à educação de qualidade, garantindo políticas educacionais que promovam a inclusão digital e o acesso às tecnologias, incluindo a IA, para todas as escolas e estudantes, independentemente de sua localização e condições socioeconômicas.
No mesmo diapasão, as universidades têm a responsabilidade de preparar futuros professores para enfrentar os desafios da era digital e incorporar a IA em suas práticas pedagógicas. É fundamental capacitar os futuros docentes no uso adequado das IAs na sala de aula, desenvolvendo habilidades digitais e pensamento crítico sobre as potencialidades e limitações da tecnologia.
Já as escolas enfrentam o desafio de adaptar suas práticas e infraestrutura para incorporar a IA de forma eficaz, fornecendo suporte aos professores e buscando estratégias que promovam a inclusão digital e a equidade no acesso às tecnologias, enquanto as famílias passam a precisar assumir mais um importante desafio: o desenvolvimento de habilidades digitais de seus filhos e a conscientização sobre o uso responsável da IA.
Por mais que pareça desnecessário, vale reafirmar aqui que a interação humana é
insubstituível e essencial para o desenvolvimento integral dos estudantes.”
Os professores, por seu turno, têm um papel central na integração da IA no contexto educacional, utilizando-a como ferramenta complementar, personalizando o ensino e analisando dados para identificar lacunas de aprendizagem — talvez aquele “professor mediador” (de que nos fala Lev Vygotsky em seu pensamento sociointeracionista) precise se abrir para o fato de que, agora, ele é um “mediador da mediação”.
Por fim, mas em lugar não menos importante, os estudantes também têm um papel ativo em sua própria formação no tocante ao desenvolvimento de habilidades digitais, compreendendo os benefícios e as limitações das IAs e colaborando com os professores para um uso ético e eficaz dessa nova tecnologia que já deixou de ser tendência para se tornar uma espécie de “caminho sem volta”. Mas é evidente que não conseguirão ir longe se os demais atores demonizam aquilo que eles entendem como “vida real” e que, de fato, já é a vida real deles e de todos nós!
Naturalmente, a reflexão deve ser constante: precisamos estar abertos ao diálogo e à reflexão perene sobre o uso das IAs na Educação. É necessário avaliar os impactos reais das IAs nas práticas pedagógicas, considerando as questões éticas, a equidade no acesso e o desenvolvimento do pensamento crítico. À medida que a Educação avança para novos paradigmas, é preciso reconhecer que as IAs já são uma realidade incontestável em nosso processo de formação. Cabe a nós, como sociedade, aproveitarmos os benefícios que essa tecnologia nos oferece, ao mesmo tempo que nos mantemos vigilantes e atentos aos desafios e às limitações que ela apresenta.
Antes de demonizar a IA e quem a utiliza, é essencial discutir como essa ferramenta poderosa contribui para a transformação da Educação e de todos os seus atores: professores, alunos, famílias, gestores.”
Mais do que gastar energia tentando adivinhar futuros obscuros, parece ser mais vantajoso a nós, educadores do século XXI, preocuparmo-nos com dados como os revelados no último mês de maio pela TIC Kids Online, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) — organização responsável pela produção de indicadores e estatísticas sobre o acesso e o uso da Internet no Brasil —, segundo os quais, entre as habilidades informacionais, a proporção dos usuários de 11 a 17 anos que relataram saber escolher quais palavras usar para encontrar algo na Internet foi de 77%, mas o percentual dos que reportaram que sabiam verificar se uma informação encontrada na rede estava correta foi 20% mais baixo. A situação se agrava quando o assunto é a privacidade dessas crianças e desses adolescentes na rede.
Não lhe soa como muito mais proveitoso, leitor(a), pensar em como educar essa “Geração Prompter” a ser uma “Geração de Prompters Críticos”?
Mas, enquanto isso, o que vemos é grande parte da sociedade e da comunidade acadêmica voltar esforços para engendrar a narrativa de que a Internet e as IAs são um mal em si mesmas, em vez de centrar forças na busca por estratégias que elevem o percentual de crianças e jovens críticos o suficiente para usar de maneira idônea e produtiva a vasta gama de recursos tecnológicos disponíveis em prol de sua própria formação e do progresso das comunidades em que estão inseridos, o que se revela, no mínimo, um contrassenso.
A chave está em desenvolver uma abordagem equilibrada, crítica e consciente, na qual a interação humana continue sendo valorizada e o pensamento crítico seja aprimorado.”
Ora, de acordo com a perspectiva sociointeracionista de Vygotsky, o desenvolvimento não ocorre apenas pela acumulação de experiências, mas, principalmente, por meio das interações com as diferenças, isto é, o aluno aprende por meio de imitação, concordância, oposição, estabelecimento de analogias e internalização de símbolos e significados no contexto social e historicamente situado (Cf. Martins, 1997, p. 120); logo, é imperativo reconhecer que as IAs são, agora, parte desse novo contexto sócio-histórico.
Caro(a) leitor(a), estamos apenas no início de uma transformação irreversível do modo como ensinamos e aprendemos. Imagine, por exemplo, como você aprenderá nos próximos meses… e nos próximos anos… É provável que os seus netos aprendam e exerçam profissões que sequer existem hoje.
Portanto, antes de demonizar a IA e quem a utiliza, é essencial discutir como essa ferramenta poderosa contribui para a transformação da Educação e de todos os seus atores: professores, alunos, famílias, gestores. A chave está em desenvolver uma abordagem equilibrada, crítica e consciente, na qual a interação humana continue sendo valorizada e o pensamento crítico seja aprimorado por meio da utilização responsável das IAs.
Assim, será possível garantir uma incorporação ética e equitativa da IA de modo a promover o desenvolvimento integral dos estudantes desta quadra do século, sem perder de vista o valor da interação humana e do pensamento crítico, aproveitando ao máximo as novas potencialidades e garantindo a esses estudantes um futuro bem mais luminoso do que as telas diante das quais eles estão agora, neste mesmo momento em que você lê este texto.
Marcos de Andrade Filho é professor, escritor, membro da União Brasileira de Escritores (UBE) e mestrando em Educação na Universidad Europea del Atlántico (Santander, Espanha).
E-mail: marcos.andrade@superapprova.com.br
Referências
CETIC.BR. Survey on Internet use by children in Brazil: ICT Kids Online Brazil 2021. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2022.
KARNAL, L. Leandro Karnal desafia o ChatGPT. [Vídeo] YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OONpZy0sTqo. Acesso em: 04 jul. 2023.
MARTINS, J. C. Vygotsky e o papel das interações sociais na sala de aula: reconhecer e desvendar o mundo. São Paulo: FDE, 1997. p. 111-122. (Série Ideias n. 28). Disponível em: https://ria.ufrn.br/jspui/handle/123456789/1518. Acesso em: 03 jul. 2023.
REUTERS. ChatGPT sets record for fastest-growing user base – analyst note. Disponível em: https://www.reuters.com/technology/chatgpt-sets-record-fastest-growing-user-base-analyst-note-2023-02-01/. Acesso em: 04 jul. 2023.
UNESCO. ChatGPT and Artificial Intelligence in higher education: quick start guide. Disponível em: https://www.iesalc.unesco.org/wp-content/uploads/2023/04/ChatGPT-and-Artificial-Intelligence-in-higher-education-Quick-Start-guide_EN_FINAL.pdf. Acesso em: 04 jul. 2023.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
_____. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.