Edição 15

É dia...

Ler e o universo

Luciano Pontes

Sabiam que o universo é feito de versos, versos singulares, versos plurais? Versos únicos, de tantas versões que o universo tem. Como um som que puxa uma letra, uma letra que puxa uma palavra, uma palavra que puxa uma frase, uma frase que puxa um verso. E é de um verso a outro que vamos juntando, num exercício contínuo de colar pedaços, unindo versos, frases, parágrafos, trechos, páginas, capítulos de uma história que se lê cotidianamente.

É por isso que o universo é pleno de histórias: histórias siderais, celestiais, terrenas. E sabem como as histórias nasceram?

(…) As histórias vieram ao mundo porque Deus se sentia só. (…) Porque o vazio, no início dos tempos, era muito escuro. O vazio era escuro porque estava abarrotado de histórias e nem uma única história conseguia se salientar das outras. As histórias estavam, portanto, sem forma, e o olhar de Deus passeava pelas profundezas, à procura, em busca de uma história. (…) Então, Deus criou os seres humanos com o pó da terra e soprou em suas narinas o alento da vida. E os seres humanos se tornaram almas viventes. (…) e, à medida que foram criados, de repente, todas as histórias que acompanham o fato de ser totalmente humano também ganharam vida, milhões e milhões de histórias. (…) Deus não se sentia mais só. Não eram as histórias que estavam faltando na criação, mas, sim, e de modo mais específico, os humanos expressivos que pudessem contá-las.1

É exercendo o direito de ser criador, de ser humano expressivo, como nos diz Clarissa Pinkola, que se ergue o universo leitor. A própria leitura do universo se transparece quando nos colocamos como personagem principal, o melhor amigo do mocinho, sonhando em ser princesa à espera de um príncipe, ser detetive ou mesmo viver o papel de observador. Celso Sisto (2001) diz:

Quando criança, queremos o brinquedo, os bichos, outras crianças, o doce, a fantasia. Somos jovens e queremos a aventura, a ação, a prova, o desafio, o ato heróico, o primeiro amor, o riso. Somos adultos e queremos tudo. Somos velhos e queremos tudo de novo.2

A construção de um universo leitor e da leitura perpassa por esses estágios de “quereres” de que Sisto fala. Gira num rodízio de compreensões e necessidades individuais e coletivas.
Drummond, esse grande humano expressivo, escreve: “Eu, sozinho, menino/ entre as mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé./ Comprida história/ que não acabava mais (…)/ Eu não sabia que/ a minha história era mais bonita que/ a do Robinson Crusoé”.3

As histórias levam o leitor ao encontro com seu verso único, seu próprio universo. E esse processo de reconhecimento da identidade individual se dá, também, ao ler as histórias de outros que escreveram e contaram. Nesse caso, as histórias servirão como espelho para afirmação ou dúvida. É lendo o universo do outro que damos conta do universo da leitura. Para Jonas Ribeiro (2002), “Ler significa tirar férias da realidade e refugiar-se numa praia de encantamentos, significa abandonar um olhar antigo e lavar as vidraças das retinas para o sol do conhecimento e a lua da ficção entrarem”.4

É na obra literária que o sol do conhecimento e a lua da ficção de que nos fala Ribeiro se encontram num eclipse. É quando as partes dos versos se encaixam, formando o uni-verso da leitura e do leitor. É o que também nos afirma Lajolo (2001):

A literatura é porta para variados mundos que nascem das várias leituras que dela se fazem. Os mundos que ela cria não se desfazem na última página do livro, na última frase da canção, na última fala da representação nem na última tela do hipertexto. Permanecem no leitor, incorporados como vivência, marcos da história de cada um.5

Acredito que, só assim, nós, leitores, seremos capazes de unir versos, ler e contar histórias. Capazes também de olhar e ver a nós próprios, o outro e o universo, que pode caber na palma da mão.

1 ESTÉS, Clarissa Pinkola. O Jardineiro que Tinha Fé. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 2 SISTO, Celso. Textos e Pretextos da Arte de Contar Histórias. Chapecó: Argos, 2001. 3 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Sentimento do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1998. 4 RIBEIRO, Jonas. Colcha de Leituras. São Paulo: Elementar, 2002. 5 LAJOLO, Marisa. Literatura — leitores e leituras. São Paulo: Moderna, 2001.

Luciano Pontes é ator e escritor. Escreveu o livro Ouvindo as Conchas do Mar, que foi ilustrado por André Neves e publicado pela Editora Paulinas. Atualmente integra o elenco do programa Doutores da Alegria – Recife.

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