Edição 25
A fala do mestre
Mário Souto Maior: Como Viveu um Cabra da Peste
“Filho de pai comerciante, Manuel Gonçalves Souto Maior, e de mãe fazendeira, Maria da Mota Souto Maior, nasci no dia 14 de julho de 1920, na cidade de Bom Jardim, Pernambuco, pelas mãos de sinhá Aninha, velha comadre muito conhecida e respeitada em toda a região. Fui um menino como todo menino nordestino. Chupei dedo, cacei passarinho e lagartixa com baladeira, joguei castanha na calçada, furtei goiabas e cajus, brinquei de Lampião e de Antônio Silvino com frutos de jurubeba, tomei leite ao pé da vaca e comi muito nambu assado na Fazenda Taperinha, do meu avô materno Presciliano da Mota Silveira.”
A infância em Bom Jardim, cidade do Agreste pernambucano, rendeu a Mário Souto Maior profundos conhecimentos sobre cultura popular. Das recordações e dos costumes de menino criado no interior foi que o autor buscou inspiração para sua obra, cujas linhas gerais abordam, predominantemente, a temática folclórica. Sua produção é uma autêntica caricatura da sabedoria popular nordestina.
As heranças familiar e cultural conduziram Mário à busca do conhecimento de seu povo. Por conseguinte, ele elabora um conglomerado de diversas formas do saber, através de uma narrativa singular e de fácil compreensão, seja para a pessoa menos letrada, seja para o grande intelectual. Seu traço marcante consiste na capacidade de escrever com clareza e simplicidade, utilizando-se de uma linguagem coloquial, lúdica e divertida.
INFÂNCIA DE MATUTO
Os tipos populares marcaram profundamente as memórias de Souto Maior. Nas ladeiras de Bom Jardim, ele se sentia num mundo só seu. Pessoas presentes no cotidiano da cidade, como Seu Chico Gordo (da padaria), seu Antônio Lulu (dono do cinema), Chico Preto (vendedor de bolos e doces), mereceram destaque na obra do autor. As recordações de um “carnaval de um menino matuto”, com o impreterível desfile do Maracatu Dois de Ouro, das traquinagens infantis e até mesmo da relação mítica de Mário Souto Maior com o Diabo foram por ele retratadas de maneira cômica e relevante.
Começou os estudos em Bom Jardim, Pernambuco, na escola particular da professora Santinha e, quando já sabia ler, passou a freqüentar a escola do professor Valpassos. Estudou durante oito anos no Colégio Marista do Recife, onde concluiu o ensino primário e fez o secundário até junho do último ano colegial, quando pediu transferência para o Colégio Carneiro Leão, no qual continuou o curso pré-jurídico.
MORANDO NO RECIFE
“Em 1930, meu pai, um matuto inteligente que falava sem tropeçar na gramática, apesar de só haver cursado a escola da vida, entendendo que a instrução era muito importante para que seus filhos não vivessem no mundo das trevas, comprou uma casa na Rua do Hospício, no Recife, na qual se instalou com a família, passando os dias em Bom Jardim, cuidando de negócios de seu comércio, só convivendo com a família nos fins de semana. Matriculou os filhos no Colégio Marista, na Avenida Conde da Boa Vista.”
O Recife era, para ele, uma cidade grande onde conhecia apenas os colegas de colégio, que, terminadas as aulas, voltavam para suas famílias. Levou uma adolescência solitária, vivendo somente com seus livros, seus sonhos, sua saudade.
O LITERATO
Em 1933, aos treze anos de idade, Mário Souto Maior “inventou” de ser poeta. Seu primeiro livro se chamava Minhas Poesias. Desde cedo, ele já queria mostrar seus feitos ao mundo. Copiou um poema do livro e endereçou ao jornalista Carlos Leite Maia, responsável pelo suplemento infantil Mano Mais Velho, de um dos matutinos da cidade do Recife. Teve sua obra publicada, para orgulho próprio e da família. O sucesso foi tamanho que outros poemas foram divulgados no mesmo suplemento.
AMOR PELA LEITURA
Uma das paixões de Mário Souto Maior era a leitura.
Foi ao ler os livros do escritor e historiador paulista Paulo Setúbal, pertencentes ao professor José Cardoso, que o então jovenzinho decidiu criar o Grêmio Literário Paulo Setúbal juntamente com amigos. O Grêmio teve vida movimentada, porém curta. Enquanto durou sua atuação, circulou o boletim mensal Ouro de Cuiabá, com apenas duas ou três edições.
ACADEMIA DOS NOVOS
Em 1938, junto com os amigos Guerra de Holanda, Pelópidas Soares e Isaac Schachnik, fundou a Academia dos Novos, que tinha a finalidade de reunir jovens amantes dos livros. Entre a juventude letrada do Recife, circulou três números do boletim Geração, com poemas e artigos dos participantes da Academia. Segundo os jornais e críticos literários da época, Mário tinha começado bem suas primeiras publicações de Meus Poemas Diferentes.
No mesmo ano, mandou uns haicais para a revista Esfera, do Rio de Janeiro, e teve a satisfação de vê-los publicados. Também conseguiu se corresponder com o grupo Clã, do Ceará, enviando vários artigos e poemas que foram publicados por jornais de Fortaleza. Passou também a colaborar assiduamente com o Correio de Catende, semanário dirigido pelo jornalista José Soares.
UNIVERSO SENTIMENTAL
Estudando no Recife, em colégios somente para rapazes e praticamente sem vida social na capital, só quando chegavam as férias em Bom Jardim é que ele podia dar vazão ao romantismo de adolescente. Certa vez, quando, num domingo, caminhava para a missa, uma menina chamou-lhe a atenção, por sua graça e beleza. Era Carmen, a futura esposa e companheira de toda a vida. Sua “cachaça”, como ele mesmo dizia. Casaram-se na capelinha de São Sebastião, no município de Bom Jardim, no dia 23 de dezembro de 1943.
A REALIZAÇÃO DO SONHO
“E os filhos foram aparecendo. Cada filho que nascia era uma alegria, uma esperança; um, dois, três, quatro, cinco, seis e sete. Seis e sete porque foram gêmeos. Assim nasceram Fred, Gise, Jane, Lis, Jan, Glen e Ed, filhos que nunca me deram um só desgosto; só me deram alegria. Sempre lastimei não poder dar aos meus filhos, além do amor de pai, uma melhor situação de vida.
E meus filhos foram me dando netos. Carolina, Érica, Marcelo, Bruno, Lucas e Eduardo. E como é bom ser avô. Não me lembro quem foi que disse que ser avô é ser ‘pai com açúcar’.
Hoje eu me considero um homem realizado. Tenho minha esposa — que muito me tem ajudado em tudo —, meus filhos e meus netos. E todos com saúde e felizes.
Obrigado, meu Deus. Eu não mereço tanto.”
Secretário da prefeitura
A primeira realização de Souto Maior foi instalar uma biblioteca pública na cidade, sob sua administração. Exerceu o cargo de secretário de 1940 a 1944.
Enquanto trabalhou na prefeitura, redigiu para as revistas Renovação, de Vicente do Rego Monteiro, e Nordeste, do grupo cearense Clã. Também publicou contos na revista carioca Vamos Ler.
Trocando o sonho pelo feijão
“Tive de me dedicar de corpo e alma, durante alguns anos, ao exercício de minha profissão, para ganhar o sustento da família. A essa altura, abandonei, por completo, durante um longo período, as minhas veleidades literárias, que passaram a hibernar, no limbo da memória, trocando, como no romance de Orígenes Lessa, o sonho pelo feijão.”
O Ginásio de Bom Jardim: outro sonho
Na Escola Normal Santana, em Bom Jardim, Mário Souto Maior ministrou aulas de Geografia e Ciências Naturais. Constatou que apenas as moças da cidade estavam tendo, naquela época, oportunidade de estudar. Surge daí a idéia de instalar o Ginásio de Bom Jardim, com a finalidade de tentar dar também aos rapazes da cidade um futuro de oportunidades e dignidade.
Em 1957, passou a lecionar no Ginásio de Bom Jardim e a dirigi-lo. Em 1964, foi nomeado para exercer o cargo de Inspetor Federal de Ensino, ao mesmo tempo em que lecionava na Escola Normal Santana e advogava nas comarcas da região.
Uma mudança no destino
Em 1967, o Ministério da Educação extinguiu a função de Inspetor de Ensino e determinou que os diretores de colégios e ginásios ficassem à disposição da Inspetoria Seccional do Ensino Secundário, no Recife. Com a nova resolução, Mário Souto Maior se viu diante de um dilema: deixaria todas as atividades e uma vida economicamente estruturada em Bom Jardim e iria viver no Recife, exercendo o cargo de Inspetor de Ensino do Ministério da Educação? Havia uma motivação convincente que muito contribuiu para que ele optasse pela mudança para a capital: conferir a continuação dos estudos para seus filhos.
Participando do sonho de um gênio
Quando Mauro Mota deixou a direção do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Fernando Freyre o sucedeu, e Mário Souto Maior foi nomeado diretor-administrativo. Foi também chefe do Serviço de Intercâmbio Cultural, ficando sob sua responsabilidade os trabalhos da editora do Instituto. Exerceu, ainda, as funções de procurador-assistente, lotado na Procuradoria Geral da então autarquia, como substituto eventual de Frederico Pernambucano de Mello, titular efetivo.
Naquele tempo, era publicado o Boletim do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, uma revista que contava com a colaboração dos pesquisadores da instituição e de fora dela, brasileiros ou estrangeiros. Mário Souto Maior sugeriu a mudança do nome da revista para Ciência e Trópico, cuja diretoria ficou sob seus cuidados de 1973 até 1975.
Em 1976, tornou-se pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
Nasce um folclorista
Em certa ocasião, o escritor Mauro Mota recebeu uma solicitação de Claribalte Passos, diretor da revista Brasil Açucareiro, editada pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, do Rio de Janeiro, pedindo dez trabalhos sobre folclore. Convidado a colaborar com os trabalhos para a revista, Mário Souto Maior colocou no papel, após quase vinte anos sem escrever, o texto Brincando de Folclore, que, depois, foi rebatizado como Três estórias de Deus quando fez o mundo.
A partir daí, outros pequenos estudos foram publicados com boa aceitação, e Souto Maior passou a recolher tudo o que podia sobre as crendices da maternidade no Nordeste. Esse trabalho deu à luz uma das maiores obras do escritor: Como Nasce um Cabra da Peste, a sua primeira pesquisa folclórica. O livro foi publicado logo em seguida com a ajuda e o intermédio de Mauro Mota, Sylvio Rabello e Gladstone Vieira Belo, em 1969. Nascia, assim, um folclorista.
E MÁRIO “SE ENCANTOU”
Mário Souto Maior costumava dizer que o ato de falecer era “se encantar” nos céus. No dia 25 de novembro de 2001, chegou a vez dele se encantar. Homem honesto, esse ilustre pernambucano, além de deixar um legado de conhecimentos humanistas, soube tratar bem da difícil arte de viver, encontrando a felicidade em sua simplicidade.
Respeitado como um dos maiores folcloristas de seu tempo, Souto Maior recebeu, durante sua vida e após seu “encantamento”, diversos prêmios e homenagens, como um lutador na busca do saber e do conhecimento. Um verdadeiro “cabra da peste”.
Este texto foi gentilmente cedido por Jan Souto Maior, filho de Mário Souto Maior.
Maiores informações pelo site:
http://www.bvmsm.fgf.org.br