Edição 27

Professor Construir

MARISE GUSMÃO: UMA EDUCADORA ESPECIAL

ENTREVISTA:

entrevista1) Na sua concepção, como a sociedade vê o deficiente?
A grande parte da sociedade vê o deficiente com preconceito, apesar de fazer uma propaganda onde o discurso diz contrário. A sociedade vê o deficiente com olhos diferentes, pois eles são olhados de uma forma diferente, por não terem o retrato da perfeição. A sociedade é o reflexo da concepção de que ser normal é ser perfeito mas, já existem sinais de que está havendo mudanças: percebo que há movimentos neste sentido. Sempre existirá o preconceito, pois os olhos não metem; mesmo que a palavra diga não, o olhar diz sim. A sociedade não precisa aceitar o deficiente, é preciso receber. Enquanto a palavra aceitação for atrelada ao ato de inclusão, nunca poderemos dizer que não somos preconceituosos. Respeito é algo inerente a todos os homens, sujeitos da sociedade. Os deficientes precisam ser vistos e olhados como pessoas. O respeito às suas necessidades é que é específico aos deficientes. Como pode o deficiente ser olhado de um jeito diferente, se o mundo social que vivemos é tão desigual. Sabe por que o deficiente não sabe lidar com a diferença? Porque eles não sabemos subtrair-se como pessoa, por não saber ser menos!

2) Como se deve tratar um deficiente?
Quanto mais ele for tratado igual, respeitando as suas limitações, mais eles superam obstáculos. Quanto mais são valorizados, mais saudáveis serão suas escolhas. Muitas vezes, as pessoas dizem para as pessoas especiais que não vêem eles como deficientes. Isso é uma afirmação de projeção e transferência, pois na verdade não é o deficiente que tem dificuldade de lidar com sua deficiência, são as outras pessoas que não sabem viver com a deficiência dos outros. Deve-se tratar o deficiente de forma igual: com dignidade, respeito e amor.

3) Como você acha que a sociedade entende a inclusão?
Infelizmente grande parte da sociedade está confundindo a inclusão com passe livre. Se fala tanto em inclusão, mas não se sabe incluir. A sociedade pensa que a inclusão é só uma permissão para que eles participem da vida, para que eles fiquem e convivam. Mas como incluir, se não são respeitados, se suas necessidades não são supridas, se não há apoio para que o projeto de inclusão alcance os objetivos esperados? É COMO SE FOSSE ASSIM: você pode entrar, pode ficar, mas eu não sei o quê fazer por você!
Muitos políticos usam a condição de deficiente para mobilizarem a opinião pública, querendo transformar a inclusão em plataforma de campanha, como meio de subir ao pódio, para conseguir o voto do povo. Inclusão é uma questão de respeito humano e social.

4) Quem foi Marise Gusmão da Fonte antes e depois do acidente?
Ah! Antes eu era uma pessoa que apenas vivia, hoje, uma pessoa que desafia o preconceito e discriminação para viver a inclusão social, sem precisar pedir permissão. Houve uma mudança em mim, de corpo e coração: hoje sou diferente, pois sou portadora de deficiência, mas sou uma pessoa muito melhor, Sou uma pessoa especial porque resolvi transformar a tristeza da perda em força, coragem e escolha pelo reencontro com a vida, o outro lado da dor. Perdi o retrato da perfeição, mas não desisti da vida, reagi, desejando mais sabedoria, mais felicidade e novos sonhos.

5) O que mudou na sua vida?
Eu era professora, era destra, tocava violão, cantava, fazia músicas com os conteúdos escolares, ensinava tocando e cantando, dava cambalhotas, jogava queimado com meus alunos, voleibol e até futebol. Hoje eu continuo sendo professora, agora só posso escrever com a mão esquerda, porque perdi 2/3 do antebraço direito, sou canhota pela força do destino. O que mudou na minha vida é que hoje eu faço as coisas de uma forma diferente e outras deixei de fazer. Hoje eu toco de uma forma diferente, só se alguém me emprestar a mão direita, aí nós tocamos juntas; eu canto, pois tenho minha voz, faço músicas, pois tenho inspiração, ensino cantando, ainda jogo queimado, jogo voleibol porque descobri que posso dar o saque com o pé. Mas não dou mais cambalhotas, Mas hoje eu sou muito mais guerreira do que antes, muito mais batalhadora, pinto tecidos, coisa que antes não fazia….agora faço muito mais do que antes, embora deixe de fazer outras, por ter limitações. Eu era uma professora especial por educar com afeto e hoje sou muito mais especial, pois sou deficiente, e sou especial por mais um motivo.

6) Que experiência negativa marcou a sua vida?
A experiência negativa que marcou e marca é o preconceito e a discriminação. Uma experiência negativa que me marca muito é não ser aceita para ser professora de escolas particulares, porque não tenho 2/3 do antebraço direito. Participei de uma seleção numa escola de filosofia “cristã” , bem conceituada aqui no Recife. Eram doze candidatas: fiz a prova escrita e passei. Preparei minha aula para o teste de regência, mas não fui chamada. Quando perguntei por que não me chamaram, disseram-me que eles resolveram dar a vaga para a professora que se inscreveu primeiro. Mas uma amiga, que participava da seleção, me disse que todas estavam lá, menos eu. Perguntei se estava sendo discriminada, a coordenadora disse que não, mas eu fui sim. Depois que me tornei especial, minha experiência profissional e competência deixou de ser um fator importante, deixou de existir. Meu currículo é escolhido, telefonam para eu comparecer, mas depois que me vêem, mandam um telegrama dizendo que meu currículo não foi selecionado. Como pode? Pode: é o preconceito! Esta é a minha experiência negativa que marcou a minha vida!

7) E a positiva?
A experiência positiva foi participar de uma oficina de teatro, agora no mês de janeiro, com 50 anos, sendo deficiente, e ter convivido com jovens tão especiais, por serem desprovidos de qualquer preconceito, que me receberam, conviveram comigo, sem o olhar da diferença. No final da oficina, apresentamos uma peça e foi uma experiência ímpar, maravilhosa. Atuei sem medo de mostrar, nem me lembrei que não era perfeita! Isso me conscientizou que posso ir em busca de tudo que desejo. Quando tenho coragem de arriscar e enfrentar, a oportunidade vem e eu descubro que posso fazer e viver meus sonhos. Quando me tornei deficiente descobri que não podia fazer muitas coisas que antes fazia, mas passei a traçar novos sonhos, os sonhos que poderia fazer. O que mais me marcou nessa experiência positiva foi ouvir do diretor de teatro, José Pimentel, que eu tinha muito talento. Ele acordou em mim mais um desejo para buscar, para escrever mais um passo da superação.

8) A Revista Construir apresenta você como uma educadora especial. Como você recebe isso?
Eu sou uma educadora especial porque sou uma educadora portadora de deficiência e sou especial porque não fugi da luta, sou atuante, não pedi para ser incluída, eu me incluí, pois sei que sou capaz, porque posso mostrar com os meus movimentos de vida que as pessoas deficientes podem chegar lá, onde desejam chegar. A Revista Construir me apresenta como uma educadora especial em dois sentidos. Sou especial, principalmente porque sou atuante, criativa, uma pessoa que rompe barreiras, por ser uma educadora faz a diferença sendo diferente, por dentro e por fora. Sou especial porque ensino com amor! É por isso que escolhi o tema “Afetividade” para a minha monografia, no curso pós-graduação: para dizer que com o olhar atento, com afetividade, com amor, a gente pode construir alguma coisa para o outro. Sinto-me muito lisonjeada por ser reconhecida assim, uma educadora especial. Sou mesmo muito especial, em muitos sentidos da minha vida. Estou mostrando que sou EFICIENTE….a letra D se perdeu no caminho de luta, força e coragem de saber ser DEFICIENTE….porque dentro dessa palavra há todas palavras que falam tudo de nós:
No DEFICIENTE há um ENTE CIENTE de que pode ser capaz, DECENTE e EFICIENTE e que tem FÉ em si mesmo: ESPECIAL DE VERDADE!
Todas essas palavras estão dentro da palavra deficiente, isso faz muito sentido, não é mesmo? Acho que a palavra deficiente diz tudo! Eu recebo isso como um dia muito especial!

9) Que mensagem você deixaria para os leitores e educadores?
Deixo uma mensagem de humanidade e sensibilidade, para que acreditem no potencial de seus filhos ou alunos especiais, pois são pessoas capazes de aprender. Os alunos especiais podem deixar os pais e professores admirados, com a sapiência da igualdade, pois todos os alunos aprendem no tempo deles. Deixo uma mensagem para as mães dos especiais: aceitem as limitações dos seus filhos e respeitem o tempo deles, só assim farão muito mais e melhor por eles. Quando se espera muito deles, nada virá, pois está sendo cobrado do que não tem para dar. Quando se espera quase nada deles, mas é estimulado, ele surpreenderá. Todos nós temos alguma limitação, e a pior limitação é não saber amar! Professores, não tenham medo do desafio em educar um aluno especial, pois eles aprenderão muito mais, juntos com os alunos ditos “ normais”. Se os deficientes convivem só com deficientes, serão limitados juntos, nada mais. Mas é preciso abraçar essa idéia. É preciso que acreditemos na potencialidade dos alunos especiais, pois eles são capazes de atingir metas, respeitando as suas limitações, o seu tempo, o seu ritmo e o que eles desejam aprender.

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