Edição 61

Professor Construir

Na janela do contar: professor e contador, herança de um mesmo lugar?

Ana Carolina Lemos
Antônio Almeida

Se os padeiros fazem pão, nós, os contadores de histórias, também fazemos um outro tipo de pão, para alimentar as almas, para saciar uma fome bem mais sutil (Jonas Ribeiro – escritor e contador de histórias).

A trama textual que aqui será tecida não tem como fio essencial convidar para o intelecto, para o teórico, para a razão didático-pedagógica. O texto aqui pontilhado buscará tecer o convite ao convívio com a urdidura primeira do contar em território escolar. Para um repensar da prática já abordada por professores que se aventuram em contar. O convite aqui desenhado pede que as malas cognitivas sejam esvaziadas para receber a inquietação que provocaremos: quem conta não é professor, quem conta é contador. Ofícios distintos, diferentes identidades, diferentes percepções!

A tessitura aqui proposta será guiada pela linha da nossa experiência com o lugar da história, com o lugar do contar, com o lugar da escola. Com o lugar que gera endereços e encontros com o encantar. O convite segue livre da pretensão do domínio da verdade, mas pretende compartilhar nossa genuína verdade na arte de contar, ofício com estatuto próprio de importância e desafio. E, como missão essencial de cada texto, desejamos que a interação seja guiada pela descoberta das cartas que se abrem em novas perspectivas e propósitos. E, como carta esperada pela razão poética, aqui teceremos…

Iniciaremos com os fios que dizem que a memória do contar desenha trilhas no coração da voz de cada história como ferramenta necessária para infinitas descobertas nas lembranças de quem conta. Com o laço da memória das histórias, um ofício é reconhecido e legitimado: contador de história. E o ofício do contar passa a ser talhado por essa memória que pode ser herdada, adquirida, emprestada, visitada, habitada. Como moradia sem prazo, hospedagem sem cronologia, baú de encantamento. E, assim, os povos foram agregando a herança repassada pelo contar. E essa perspectiva de herança individual e coletiva compartilhada leva a pensar que o ofício do contar, além de milenar, é traço nosso. Traço cotidiano. Os contadores chegaram à humanidade antes do tempo escolar como forma de tecer ensinamentos, de trocar verdades, olhares, comunhão. Um manto de sabedoria era tecido, e cada um colhia o fio que estava pronto para colher, sem imposições e regras. Nas rodas de contação, nos tempos de antigamente, o silêncio não era solicitado, ele chegava com a permissão suave da história, do contador e dos ouvintes. O lugar escolhido para contar tinha o cheiro do encantamento, independentemente de o chão ser de terra, barro ou madeira. E, assim, as histórias vinham pelo gesto oral do contar, sem texto, sem livros, sem a palavra escrita. E a história, após ser contada, era herança a se compartilhar. E o “Era uma vez” passou a ser habitante do vocabulário da humanidade, como alfabetização genuína que ecoa como um “Bom-dia” em reverência às histórias, ao contar, ao imaginar. E essa noção de herança, de visitação cotidiana ouvida ou contada, facilita a consciência e a certeza de que o contar é um exercício nosso, fácil e simples. Que pode ser compartilhado e habitado num misturar de lugares, profissões e intenções.

O ato de contar é belo quando o contador dedica-se ao exercício com respeito e cuidado, sem negligenciar seus fundamentos essenciais: respeitar a história, a plateia, a clareza, que a história é libertária e pede singulares gestos para recebê-la, sem eleger um comportamento-padrão e sem ter a função de definir conduta e moral, pois ela deve é provocar o outro com cuidado e respeito. É importante, então, acordar que cada ação profissional guarda seus mandamentos, seus juramentos, suas verdades e seus respeitos. E o contador de história guarda e revela a matiz do contar quando sabe ouvir as pegadas de cada esquina que precisa ser antes conhecida. Como visitante de um lugar desconhecido que surge com endereço nas mãos, na busca do lugar certo. O contador genuíno vai ao lugar primeiro, visita, passa um tempo como hóspede do lugar da história e pede licença para trazer outros visitantes/hóspedes. Antes de aventurar-se, faz-se conhecedor do lugar, conhece abismos, pontes, cavernas, o canto mais confortável; tem acesso à bagagem narrativa e, assim, sem precisar nomear os convidados, vai tecendo a aventura dos descobrimentos que seguem pelo enredo, pelos personagens, pelo cheiro, pelo sabor de cada história. Desse modo, a viagem para o encantamento é belamente vivida. E aquele que convida (o contador) também devolve a plateia ao lugar do real, com o gesto que estimula conforto em ouvir. Assim se faz o ofício do contador. A contação de história não deve gerar uma intenção didática, mas proporcionar uma relação de conforto.

E, com o trançar de todas essas verdades, chegamos ao tempo do lugar da escola. Lugar onde a palavra é senhora primeira nas vestes da didática, da aprendizagem. Lugar de livros, lugar de histórias. Lugar onde o professor se aventura em contar… Mas, quando o professor não se despede do endereço do ensinar, das trilhas pedagógicas, dos conteúdos escolares, dos questionamentos sem fim, ele apresenta o endereço errado da história. Enquanto ele remeter a história para o destinatário/aluno, e não para Marias, Joãos, Gabrielas, Antônios e Carolinas, endereços e destinatários estarão em lugares opostos. E, assim, o guia primeiro, o imaginário, fica buscando atalhos, pontes para salvar o visitante perdido. Não encontrar a porta da história desperta uma inquietação pela busca que tende a gerar um desconforto que afasta o destinatário do lugar prometido: o encantamento.

E, assim, nos despedimos dos traços primeiros aqui escritos, que nos aproximam de um tema tão inquietante e que segue tecendo a pergunta que guia o texto aqui proposto: professor e contador são heranças de um mesmo lugar?

Mas, antes de virar a próxima folha da carta, desenharemos um silêncio entre nós…

Pausa para pensar em tudo o que foi dito. Quais as concordâncias e diferenças vistas por seu olhar? O que a sua prática em escola desenharia como resposta para nossa pergunta/provocação?

Continuando…

Chegamos ao tempo das outras folhas da carta, lugar que fará uma trama com as palavras que escrevem o endereço certo para o encontro com o contador e o contar: história, gesto, voz e olhar. Trama essencial para o tempo de enamoramento que segue…

E das lendas que se erguem na oralidade, atravessando caminhos, enveredando por grutas, montanhas, mergulhando nos mares nascidos no olhar das princesas cheias de esperança, nas mãos do “tudo começa aqui” e até o “felizes para sempre”, há um convite que nos fascina e se desdobra no abraço da escolha. A história, com asas de afeto, nos escolhe, nos acalanta, e, ao ler/escutar, nós somos amamentados em um seio, às vezes milenar, e cheio de vida. Os gestos se firmam em corpos que se erguem diante da emoção e dão voz a um tempo longe dos pontinhos do relógio… O som do tempo que nasce entre o pôr do sol e as ondas do mar nos ouvidos de quem escuta histórias.

Fica um berço erguido sobre o sorriso do olhar que se espalha nos horizontes, e os olhos crescem e ficam no tempo de um pensamento, que pula de paraquedas e nos traz uma carta recheada de ternura. As histórias se misturam e tragam os ingredientes que as mãos humanas não conseguem conter e que se derramam como poesia entre os dedos dos leitores e passam a pertencer a quem deseja engravidar delas.

A sedução vem através dos olhos, num espaço criado para encantar a vida. Então, fica aqui um lembrete: o gesto, o olhar e a voz vivem juntos numa sinestesia poética capaz de abarcar todas as dores, os amores, os suspiros, as alegrias e as reflexões advindos do universo da contação. Um lugar de regalo, com gosto de doce em casa de avó e que se espalha pela boca e pelos sentidos, trazendo à vida um pedaço de bolo bem delicioso, que será comido em silêncio e dentro do coração de cada ouvinte…

Ainda é importante viver a acolhida que vem com o tom da voz — a entonação que marca os diferentes tempos na história — e que se casa com os gestos e com as mãos singelas do olhar na costura de cada palavra que se gera ao ser degustada no contexto da contação.

E, assim, definimos como resposta à indagação que nos guiou, ofertando como nossa genuína resposta que contador e professor não habitam a herança do mesmo lugar e desenhamos que:

A contação de história não deve gerar uma intenção didática, mas proporcionar uma relação de conforto, com traços de uma aprendizagem simbólica.
Não é possível viver duas profissões ao mesmo tempo, cada uma tem seus instrumentos, endereço e tempo certos.
A contação de história no contexto escolar tem a missão de promover o ouvir, o criar, o recriar, o contar. Um bom ouvinte é motivado a ser um bom habitante das terras das palavras, das imagens. Transita melhor pelo universo da linguagem escrita e falada.
A história é lugar de embarque/desembarque rumo à viagem literária, imaginativa, criativa.
O contador é guardador de uma herança milenar.
Quando a história chega ao solo escolar, é preciso desfazer as fardas e reconhecer as fadas como vestimenta para o encantamento, o que propicia o encontro com a subjetividade de quem conta e de quem ouve.

Com base em nossa prática pelo território do contar em escola, surgiu a intenção de compartilhar nossas ideias. Daí surgiu, no ano em que caminhamos (2011), a I Formação de Contadores de História em Contexto Escolar, que tem como objetivo qualificar profissionais que atuem no contexto educacional para reconhecer e redimensionar o potencial existente no universo narrativo, permitindo a leitura da relação entre o contar, o ouvir e a criação de história com a aprendizagem, com a ação mobilizadora das histórias literárias e humanas.

Ana Carolina Lemos é psicóloga, arteterapeuta, mestranda em Ciências da Linguagem (Unicap), contadora de história, coordenadora da I Formação de Contadores de História em Contexto Escolar e da VIII Formação de Contadores de História para o público em geral do Grupo Zumbaiar de Contadores de Histórias, com experiência em contação de história no contexto escolar, psicoterapêutico e prisional. Endereço eletrônico: anacarollemos@uol.com.br.

Antônio J. de Almeida Júnior é professor de Língua Portuguesa da American School of Recife, educador especial (Fafire), especialista em Produção e Interpretação de Texto (UFPE), psicomotricista relacional (Ícone/Ciar/Facho), estudante de psicanálise, professor da Facig e da pós-graduação da Facottur, contador de histórias e coordenador da I Formação de Contadores de História em Contexto Escolar. Endereço eletrônico: antonioalmeida.port@gmail.com.

 

Tecendo indicações bibliográficas:

A Palavra do Contador de Histórias
Gislayne Avelar Matos
Editora: Martins Fontes

Acordais: Fundamentos Teórico-poéticos da Arte de Contar Histórias
Regina Machado
Editora: DCL

Contos de Fada e Realidade Psíquica: A Importância da Fantasia no Desenvolvimento
Glória Radino
Editora: Casa do Psicólogo

Ouvidos Dourados: a Arte de Ouvir as Histórias (…Para Depois Contá-las…)
Jonas Ribeiro
Editora: Ave Maria

Contar e Encantar
Cléo Busatto
Editora: Vozes

O Ofício do Contador de História
Gislayne Avelar e Inno Sorsy
Editora: Martins Fontes

A Gramática da Fantasia
Gianni Rodari
Editora: Summus Editorial

O Violino Cigano e Outros Contos de Mulheres Sábias
Regina Machado
Editora: Cia. das Letras

Textos e Pretextos sobre a Arte de Contar Histórias
Celso Cisto
Editora: Positivo-Livro

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