Edição 85

Matérias Especiais

O não como símbolo de respeito e dignidade do professor

Rosangela Nieto de Albuquerque

Na escola, as crianças estão sem limites. Há o desinteresse dos pais na participação escolar, observa-se que as crianças e os adolescentes estão sem acompanhamento em casa em virtude da necessidade de os pais trabalharem e exercerem sua profissão. Neste paradigma de pós-modernidade, há a ausência dos pais e a falta de disponibilidade para dar atenção aos filhos, que, muitas vezes, passam tempo demasiado ligados ao computador, à televisão ou à internet. Muitas famílias estão tercerizando a educação dos filhos e delegando a avós, tios, creches e escolas o seu papel primário de formação ética e constituição desse sujeito. Nesse contexo, a escola passa a assumir-aceitar responsabilidades que deveriam ser partilhadas. E, nesse novo paradigma, os professores permitem-assumem-aceitam a responsabilidade da educação da criança em seus vários papéis; estes, gradativamente, vêm sendo impostos pela escola, que, quando pública, carece de políticas públicas inclusivas e de ensino de qualidade e que, quando particular, fundamenta-se em empresa-escola.

Diante de tantas dificuldades, os professores indagam o que fazer, sentem-se sozinhos na árdua tarefa de educar e, quase como um grito de desesperança, sentem a necessidade de dizer não, como um pedido de socorro, um não simbólico, num grito de dignidade que grita em favor de seu aluno, um grito de dignidade em favor da criança, que, sem escola de qualidade, rompe seus sonhos.

O não do professor vem permeado de significados, um grito por causa da falta de estrutura nas escolas, de uma política pública voltada para uma educação para todos e com uma práxis pedagógica de aprendizagem significativa; um grito por causa da falta de um Plano Nacional de Educação real, não utópico, que permita colocar em prática o objetivo de formar cidadãos críticos. Um grito por causa da falta de preparação do professor para lidar com a educação inclusiva e integrativa, tendo diversas dificuldades na práxis pedagógica. Certamente, o professor, com o grito sufocado, precisa dizer não, pois sente que a sua identidade está se deteriorando e o seu pertencimento à profissão, de ensinar e educar-instruindo, esvaece-se. A relação de pertencimento à profissão docente, hoje, na pós-contemporaneidade, não é somente a função de ensinar, mas de assumir as diversas funções frente àquela criança — seu aluno. Assim, o professor está se sentindo cansado, desesperançoso.

Em nome do dito “O professor deve ser um educador”, passou-se a exigir dele várias funções. Ele deve ser um educador doméstico (dar as orientações primárias — que são funções da família), deve cuidar da saúde física e mental dos alunos, ajudar a colocar limites, enfim, até, “se possível”, participar da orientação religiosa de seu aluno.

No aspecto cognitivo, a exigência democrática de ensinar a todos, com suas singularidades e com uma abordagem plural, faz com que os professores tenham que construir uma reengenharia na dinâmica de lecionar; trabalhar com as dificuldades específicas, com as modalidades de aprendizagem, com o ritmo de aprendizagem de cada aluno; compreender as diversas psicopatologias da aprendizagem; e saber lidar com elas na prática e num contexto plural. Assim, os docentes sentem um esvaziamento de sua identidade profissional.

As pesquisas clínicas e didáticas enfatizam a modificabilidade da identidade ensinante. Reuven Feuerstein afirma que o professor, nesse paradigma, deve ser um mediador e promover uma aprendizagem significativa; certamente deve enxergar além da transmissão de conhecimentos. A dinâmica das aulas deve se voltar para o pensamento dos alunos ao tratar dos conteúdos para o desenvolvimento cognitivo, e não ter como fim si mesma.

A práxis pedagógica exige uma renovação do papel do professor em uma nova sociedade que está permeada por muitas informações e facilidades de acesso ao conhecimento, até mesmo sem a figura do professor. Observa-se, no entanto, que, sem o papel do professor — mediando os conhecimentos, corre-se o risco de estes serem vistos como efêmeros e descartáveis.

A escola mudou sua identidade e permitiu-tomou-aceitou para si esses novos papéis, e os professores não tiveram saída, assumiram também responsabilidades que não lhes pertenciam.

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A nova configuração docente

Com essas transformações biopsicossociais, nas últimas décadas a escola vem assumindo, praticamente sozinha, um papel que, em princípio, não deveria ser só seu: o de educar seus alunos não somente para a cidadania, mas na formação geral (cognitiva, afetiva, emocional, orgânica, social). Essa responsabilidade foi sendo despejada sobre a instituição escolar por uma série de motivos. Sabe-se que o fruto dessas transformações emergiram da sociedade em transição; assim, os valores formativos, éticos e familiares estão em transformação.

Estabeleceu-se uma nova configuração docente; certamente a relação do professor com sua profissão tem um significado excepcional, pois, ao se referirem a ela, os docentes mencionam a paixão, o laço emocional, que é um componente fundamental na prática docente. Os professores cumprem a sua função munidos de uma formação técnica que inclui o laço emocional-afetivo ao trabalho. Essa peculiaridade do fazer docente envolve o campo de relações com seus alunos e a própria “missão” de educar. No entanto, esse fazer docente pós-contemporâneo exige demandas de atividades sem fim, que vão além das horas contratadas pelas escolas.

A educação escolar mudou. Se compararmos a educação brasileira de hoje com a de 30 anos atrás, certamente houve uma melhora, mas, se compararmos com o que se exige hoje da educação, sem dúvida regredimos bastante. Os professores sentem-se como nadando contra a maré. É como se avançássemos ficando para trás. As exigências educacionais crescem numa velocidade maior do que a educação pode acompanhar, os pais sentem dificuldades em orientar seus filhos e muitas vezes terceirizam o seu papel. Hoje, há uma visão psicologizada da educação: pais, professores e educadores se preocupam demais com o emocional da criança e hesitam em dizer não, pois ela poderá ficar com algum “trauma”, ou então pela possibilidade de abalar sua autoestima. Assim, não sabem como lidar com situações de limites. Muitos pais se tornam superprotetores, o que impede o desenvolvimento da autonomia; outros deixam claro que, devido ao tempo reduzido com os filhos, preferem não fazer exigências, negligenciando, muitas vezes, a formação ética dos filhos.

Nesse contexto, os pais, com seu tempo reduzido, passam fugazmente pela sua responsabilidade de educar. Há os que se portam com demasiado autoritarismo, porque “necessitam educar”; há os que assumem a postura inversa, são excessivamente permissivos ou ausentes e não promovem um desenvolvimento equilibrado. As famílias também delegam à escola a formação ética, e o professor “assume” mais um papel: o de dar limites e orientar valores.

Aqui, não se pretende colocar a culpa nas famílias, nos pais, que também têm suas dificuldades, mas se propõe encontrar um ponto de equilíbrio. É necessário dividir a tarefa de educar, delimitar as responsabilidades e construir um tripé escola-aluno-família com uma boa convivência social. A tarefa não pode ser “árdua” somente para a escola, somente para o professor. Não é fácil educar, há que se buscar caminhos de aproximação com a família para partilhar responsabilidades e formar cidadãos respeitosos, participativos e críticos.

professora_aluno_Depos_optO não do professor

O tratamento dado ao professor, o excesso de trabalho, a insegurança do vínculo profissional, a nova configuração de que o aluno é cliente vêm provocando um colapso na autoestima do professor. Ele acaba esquecendo que seu trabalho envolve um grande poder: o de educar, de criar vínculos afetivos, de construir cidadãos.

A configuração contemporânea e os baixos salários fazem com que os professores corram de uma escola para outra, impedindo-os de pensarem e criarem. O cenário de competitividade e insegurança construído pela sociedade individualista e consumista faz com que os laços de integração, compartilhamento, solidariedade e apoio entre os colegas se fragilizem, estabelecendo um panorama de solidão. Assim, o não tem feito parte da enunciação do professor, este, como o mais primitivo dos pensamentos, como um grito de socorro.

Embora seja um cenário complexo, observar o estado de angústia produzido pela forma de dizer não foi uma nova forma de viver as relações no ambiente escolar. O não é o grito de dizer: não somos escravos, não queremos uma servidão voluntária, queremos nosso descanso e lazer, queremos nosso direito de liberdade, queremos respeito e dignidade.

O grito do professor representa não à falta de respeito, não para a nova configuração de assumir o papel de mãe, de pai, de psicólogo, de enfermeiro, de religioso, de médico. O grito é da busca da identidade de seu papel fundamental de ensinante, de instrutor, de facilitador da aprendizagem. O professor clama por respeito e dignidade, e seu mecanismo simbólico é o grito de basta, é o grito de não.

professora_alunos_sala_optConsiderações finais

A escola, nos últimos anos, tem proporcionado ao docente um desânimo, um cansaço e a evasão antecipada de muitos professores. O desgaste físico, emocional e de imagem social contribuíram para uma desvalorização significativa. O professor estava sufocado de tanto dizer sim, de permitir, aceitar e assumir responsabilidades que não são suas, talvez pelo discurso ameaçador da dispensa — é preciso cortar custos —, pelo aumento de número de alunos em classe, pela política educativa que se transformou num exercício contabilístico, pelo excesso de trabalho burocrático. A sensação de desesperança e indignação resume o não enfático dos professores que sentem a dignidade atropelada.

Ser professor é, sem dúvida, a profissão mais linda do mundo!

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação (Pós-Doutora em Educação), Pós-Doutoranda em Psicologia Social, doutoranda em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, professora universitária dos cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora dos cursos de pós-graduação em Educação, psicopedagoga clínica e institucional, analista em Gestão Educacional, pedagoga. Autora de projetos em Educação, da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia como projeto social e de três livros: Neuropedagogia e Psicopatologias, Psicoeducação e Neuropsicologia.

Contato: rosangela.nieto@gmail.com

Referências

CANEVACCI, M. (Org.). Dialética da família: gênese, estrutura e dinâmica de uma instituição repressiva. São Paulo: Brasiliense, 1981a.

_____. Dialética do indivíduo: o indivíduo na natureza, história e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1981b.

SOUZA, A. M. M.; DEPRESBITERIS, L.; MACHADO, O. T. M. A mediação como princípio educacional: bases teóricas das abordagens de Reuven Feurestein. São Paulo: Senac, 2004.

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