Edição 120

Como mãe, como educadora, como cidadã

Paulo Freire e dona Zélia, minha mãe

Zeneide Silva

Provavelmente dona Zélia, minha mãe, sequer tivesse ouvido falar no método e na obra de Paulo Freire, até mesmo porque naquele tempo ele estava exilado no Chile, construindo o que seria a base da sua pedagogia. Mas a verdade é que minha mãe, mesmo sem saber, e seguindo apenas sua vontade e intuição, utilizava nas suas aulas uma metodologia que poderia, sim, ser considerada freiriana. E foi nessa escola informal, que funcionava no quintal da nossa casa, no bairro dos Bultrins, em Olinda, estado de Pernambuco, que eu descobri que queria ser professora e herdei de dona Zélia todo o amor por essa profissão.

No começo dos anos 1970, eu ainda não tinha completado nem 10 anos de idade, mas já auxiliava minha mãe nas aulas, brincando, contando histórias para as crianças, e testemunhava seus alunos serem alfabetizados, educados; com o máximo respeito às suas subjetividades e compreensão das suas realidades. No turno da noite, ensinava adultos. Havia muitas empregadas domésticas e pedreiros, a maioria morava na Comunidade da Esperança, popularmente conhecida como Favela do Pei-bufe, que ficava bem pertinho da nossa casa. Eu via minha mãe trazer palavras do contexto de cada um para o processo de alfabetização e me impressionava com a rápida aprendizagem e com a transformação na vida de todas aquelas pessoas. Das panelas e temperos aos tijolos e enxadas, cada aluno ia se preenchendo de sentido. Quando percebiam, já estavam assinando o nome, escrevendo cartas, lendo e fazendo contas também. Era visível a gratidão dos alunos por minha mãe; mesmo sem condições de ensinar, recebia a visita deles, que falavam dos filhos, de sua vida, um novo emprego, uma casa melhor, um carro que conseguiu com o emprego novo, e ela abraçava todos com carinho fraternal e dizia: “Eu sempre falei que você iria vencer”. Mamãe cobrava um valor simbólico como mensalidade, mas nunca deixou de receber ninguém na sua Escola Nossa Senhora das Dores, e tratava a todos igualmente, dedicava-se por completo à educação integral dos seus alunos — outro ponto que aproximava sua prática pedagógica da metodologia de Paulo Freire. Quando chegava algum aluno sem sandália para estudar, ela tirava a nossa, dava-a e dizia: “Vocês têm outro sapato, ele não”. Há uma cena da qual me lembro com muito carinho: duas alunas chegaram na escola com muitos piolhos. Mamãe combinou com a mãe das crianças que não viessem buscá-las no horário normal, pois ela iria colocar um remédio três vezes por semana nos cabelos das meninas para aliviar a coceira.mae_filha_lendo_sentadas_shutterstock_728106682_Africa_Studio

Os resultados eram visíveis, e, de aluno em aluno alfabetizado, sua história foi se espalhando. Sua escola recebia cada vez mais gente. Rapidamente, ela virou sinônimo de excelência, e os alunos que se formavam tinham entrada garantida nas escolas públicas mais exigentes da região sem precisarem fazer nenhum tipo de teste: “Foi aluno de dona Zélia, então vai ficar, já está aceito, nem precisa fazer exame de admissão!”.

Cresci me espelhando nesse exemplo. Quando minha brincadeira de ensinar virou profissão e entrei na faculdade, encontrei a obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e reconheci imediatamente as lições cotidianas da minha mãe naquela pedagogia tão revolucionária. Que orgulho senti! Não me restou nenhuma dúvida de que aquele mestre era um farol que reuniu em si a luz dos saberes e experiências de tantos educadores populares anônimos como minha mãe, ele deu uma forma e espalhou pelo mundo. Acima de qualquer coisa, dona Zélia, Paulo Freire e tantos outros “heróis” da educação eram humanistas e sabiam que a verdadeira aprendizagem é um processo de troca, em que o contexto sociocultural não pode ser deixado de fora, pelo contrário, é um ingrediente imprescindível na formação dos indivíduos, seja qual for sua área de atuação.

Neste ano, quando celebramos o centenário do nosso ilustre patrono da educação, as memórias daquele galpão-escola da minha infância se acenderam. Era tudo muito simples: quatro pilastras de madeira segurando o teto; nas quatro mesas e seus bancos compridos, conviviam crianças e adultos ávidos por aprender a ler, escrever, fazer contas, mas, principalmente, movidos pela esperança de conquistar dignidade, de se sentir protagonista da sua própria história. Numa mesma mesa, sentavam aquela que já dominava a escrita e aquele que não dominava e ainda aquele que não tinha sapato e aquele que vinha de motorista para as aulas de reforço. Com o tempo, percebi que o trabalho da minha mãe era uma prova viva do sucesso da Pedagogia Paulo Freire e que eles estavam completamente conectados, ainda que um nem soubesse da existência do outro.

Nos anos 1990, tive a honra de conhecer pessoalmente o mestre, no começo da minha jornada como educadora, e mais uma vez encontrei as lições de dona Zélia nas suas sábias palavras. Guardo os dois bem juntinhos no pódio mais alto das minhas referências profissionais e, com exemplos como esses, sinto-me no dever de nunca deixar seus ensinamentos serem esquecidos. Por isso, aproveito todas as oportunidades que tenho para ser porta-voz das suas ideias e seus ideais. Como dizia Paulo Freire: “A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Ser agente dessa transformação é o que busco e é o que me move até hoje.

O pensamento freiriano ganhou ainda mais sentido e força na atualidade, quando muitas famílias foram obrigadas, pela pandemia da Covid-19, a se reinserirem no processo de educação das crianças e dos adolescentes. A formação tecnicista vigente se mostrou insuficiente para dar conta desta nova realidade. Como diz o autor indígena Ailton Krenak em seu livro mais recente, “Nós não podemos mais continuar atendendo a esse pedido do mercado de formar profissionais, de formar técnicos, de formar gente apenas para operacionalizar o sistema”. A escola foi convocada a se reinventar, e ficou nítido que o futuro vai exigir engajamento e integração dos educadores com os pais, para lidar com os desafios, cada um assumindo seu papel na construção de seres verdadeiramente humanos. Como mãe e educadora, sei que temos muito trabalho pela frente, mas ainda bem que podemos contar com as sábias lições de Paulo Freire; e eu, particularmente, vou ter sempre dona Zélia como exemplo vivo de que uma educação para a liberdade é possível. Na minha mente, já tratei de promover o encontro de Paulo Freire com minha mãe e, de mãos dadas com eles, sigo acreditando que a educação é o caminho para um mundo melhor.

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