Edição 72
Lá Vem a História
Professor Joãozinho Orvalho
Celso Antunes
No interior do Estado da Bahia, onde vivia, qualquer conceito de escola possível abrigava classes multisseriadas. E nem poderia ser diferente. Em regiões extremamente pobres, distantes das cidades industriais e mais desenvolvidas desse estado, quando no espaço rural do município existia uma sala e na mesma era possível abrigar alunos de diferentes séries, isso já era considerado um luxo. Luxo ainda maior era, entretanto, encontrar professora ou professor que se habilitasse a lecionar naquelas lonjuras. Mas Joãozinho, ou professor Joãozinho Orvalho, como exigia ser chamado, não reclamava das limitações e nem mesmo de na sua sala abrigar níveis diferentes de aprendizagem e de conhecimento. “Sua” escola era peculiar; e seu jeito de ministrar aulas, diferente.
Quando seus alunos chegavam para as aulas, não encontravam carteiras enfileiradas, um professor sisudo, à frente da sala, a ditar lições. Ao contrário, naquela estranha escola não havia salas de aula e nem classes; não por limitação, mas por convicção de Joãozinho Orvalho, que não aceitava que crianças ficassem rigidamente sentadas durante tempo infinito, ouvindo coisas de quem se acredita dono do saber. Em vez disso, Joãozinho Orvalho dizia sempre que “Escola é lugar de vida e de trabalho”. Fiel a esse conceito, fazia de seus alunos uma pequena comunidade, que, em atividades diversas nesse contexto, aprendia a viver e, sobretudo, conviver. Aprendiam cooperação, solidariedade, apoio, ajuda e descobriam que ninguém sabe tão pouco que nada tenha a ensinar ao outro e que ninguém saiba tanto que dispense ajuda.
Além disso, na escola de Joãozinho Orvalho a distribuição do tempo era diferente da maior parte da existente em outras escolas. Não existiam horários segmentados para abordar diferentes matérias, e, em cada dia, o professor propunha um desafio, no qual meninos e meninas deveriam trabalhar em alguma ocupação doméstica de valor coletivo e, logo após, perguntar sobre todos os aspectos que giravam em torno desse desafio, até progressivamente conquistarem graus mais amplos de percepção sobre as relações humanas, sociais, econômicas e políticas, que o professor individualmente acompanhava e anotava. Dessa maneira, na segunda-feira, por exemplo, o desafio poderia ser construir uma horta, e, nesse empenho, os alunos compartilhavam tarefas e colecionavam dúvidas para, em interessante e participativa assembleia, aprender coisas implícitas no problema superado. Joãozinho Orvalho, nessas horas, não se fazia de rigoroso e nem de bonzinho, buscava essencialmente sempre ser justo, porque, segundo dizia, a democracia se constrói com justiça e se aprende a garantir, não se recebe como prêmio de autoridade instituída. Ao chegarem terça-feira, os alunos não sabiam o que exatamente os esperava, mas, com extremo cuidado, Joãozinho Orvalho organizava-se, planejando se o desafio ainda estaria na horta, na adubação, na cerca que a protegia ou se estaria na cozinha, na costura, no trabalho com madeira ou outras muitas atividades que reproduziam as ações fundamentais da vida.
Os alunos eram divididos em grupos, segundo suas idades, mas essa divisão não era rígida; nem os grupos, impermeáveis. E, de acordo com a necessidade de maior ou menor esforço democrático, eram deslocados para outras tarefas. Todos sabiam que a escola existia para que aprendessem a fazer, visto que é fazendo que na verdade se aprende. Quando interpelado por algum inspetor que pela escola passava, reclamando sobre o cronograma e a programação dos conhecimentos que deveria ter ensinado, Joãozinho Orvalho justificava-se explicando que, se valendo de atividades domésticas como princípio, os conhecimentos interdisciplinares resultariam em “produtos” das formas de ação social. Na escola, não deveria existir sala de aula, e sim laboratórios improvisados onde, ao se produzir para todos, se descobre os segredos da linguagem, os mistérios do cálculo, gera-se demanda de curiosidade e busca de respostas. Por acaso no preparo de uma boa horta não existe Matemática? Geografia? Será que no passado não se produziam alimentos e a horta recontava a História? Havia melhor forma de ensinar a linguagem que no “garimpo” das palavras necessárias para descrevê-la? Será que em trabalhos de carpintaria não é necessário aprender o cálculo, a divisão? Joãozinho Orvalho reafirmava que aprender é sempre descobrir, indagar, experimentar, associando sempre o processo produtivo com o sonho por uma ação coletiva.
O que aconteceu com a escola de Joãozinho Orvalho? Subsiste em tempos de internet ou, a bem do serviço público, foi o mestre demitido? Ainda vive ou já morreu? Difícil responder, pois nem mesmo se sabe se Joãozinho Orvalho existiu. Talvez seja ficção brasileira, inspirada em um certo John Dewey, que, com 92 anos, em 1952, abandonou a vida corpórea em Nova York e foi construir suas escolas em espaços distantes do céu.