Edição 51

Relato muito especial de uma professora muito mais que especial

Relato muito especial de uma professora muito mais que especial

Antônia Nolay de Lima Moreira

Ilmo(a). Sr(a). Redator(a),

A velhice tem a faculdade de nos colocar naquela fase que não chamaria de inocência, mas que permite que se diga também que “o rei está nu”.

Após 43 anos consecutivos em sala de aula, fui aposentada compulsoriamente por haver completado 70 anos em 2005, porém continuo envolvida na Educação e com vivência suficiente para ter a certeza de que o problema da má qualidade do ensino não é tão somente de ordem financeira e falta de qualificação, como afirmam os especialistas do ramo. Vivi, direta e indiretamente, com três momentos educacionais, a começar com o relato de minha avó.

Ela morava na fazenda, e meu bisavô, muito rígido, achava que mulher não era para aprender a ler, mas para desenvolver habilidades domésticas. Certa ocasião, o arcebispo primaz do Brasil mandou pedir a meu bisavô para ele hospedar um padre que estava tuberculoso, e o médico havia receitado ar puro e alimentação mais natural. Assim, chegou o padre à fazenda. Vendo a vontade de minha avó para aprender a ler, ele pediu permissão a meu bisavô para lhe ensinar. Consentido, o padre ficava na cabeceira da mesa; e minha avó, na outra extremidade, para, segundo ele, evitar contágio. Com uma vareta e um lenço na boca, ensinou minha avó a ler e escrever. Letra linda, bem traçada, escrevia sem erros, com coesão. Fazia versos bem metrificados e rimados.

Minha mãe morava numa pequena vila. Com uma professora contratada pelas famílias locais, aprendeu a ler, pintar e tocar piano. Minha mãe tinha uma letra linda, escrevia corretamente, obedecendo a todas as exigências gramaticais. E mais, quando ela lia histórias ou outro texto qualquer para nós, ia substituindo palavras menos usadas pelas de uso coloquial. Amplexo, por exemplo, ela lia abraço; se era ósculo, ela lia beijo. Eu ficava intrigada como era que ela sabia tanto. Achava engraçado.

Muito competente e superexigente, minha professora primária da rede pública não nos dava trégua. Havia um boletim diário em que iam registradas as notas de todas as atividades do dia: conta, caligrafia, ditado, leitura, escrita, matérias, desenho e procedimento. Ai de nós se chegássemos com uma nota inferior a oito ou com menos de dez em comportamento.

Todo dia tinha dever de casa, copiado à mão pela professora ou por nós, a depender da atividade. Lembro-me de umas férias de São João cuja tarefa foi fazer um diário. Fomos à fazenda de meu avô, e, toda tarde, minha mãe colocava-nos para relatar os acontecimentos do dia. Havia uma professora leiga, Inácia, que ensinava os filhos dos pobres. A sua eficiência era tamanha que muitas famílias de posse colocavam os filhos lá para serem alfabetizados.

As professoras eram pessoas simples, não viviam no luxo, não havia consumismo. Casa modesta, mobília simples, vestido de manga, sem decote, sem joias, exigência da Secretaria de Educação. Até hoje, quando as charges enfocam uma professora, buscam o modelo dos professores antigos.

Minha professora dizia que os políticos só se lembravam delas quando iam discursar e diziam: “O que sei, aprendi com minha professora primária”.

Ganhavam realmente pouco, porém nunca deixaram de cumprir bem o seu dever por causa de salário.

Quando comecei a ensinar, ganhávamos pouco, muito pouco, mas o nosso trabalho era sério. Como não havia máquinas nem mesmo manuais, tudo era escrito com giz, se no quadro, e com caneta, se no caderno, o que tornava o nosso trabalho mais árduo. Íamos para casa com muitos cadernos, que nossos alunos nos ajudavam a levar. Em casa, escrevíamos as tarefas do dia seguinte, para serem feitas em sala e em casa. Trabalhávamos satisfeitas, empenhadas em realizar um bom trabalho, e nossos alunos saíam sabendo.

Minha experiência permite-me dizer que a competência consegue- se também estudando sozinha, buscando, dominando o assunto que se vai ensinar no dia seguinte. A competência está em nossa vontade; o domínio cognitivo está no intelecto. Sem o casamento dos dois, não há aprendizagem. E é comum ouvir pessoas lastimando o fracasso da aprendizagem de hoje, concluindo com a mesma fala que já parte do senso comum: “Antigamente, os professores ensinavam mais, e os alunos saíam sabendo”.

Tudo isso vem à minha mente quando vejo a realidade da Educação dos anos 1970 para cá. Quando eu ainda trabalhava, nas reuniões de coordenação ou em encontros pedagógicos em que alguém colocava o salário como responsável pelo desestímulo do professor, eu rebatia e ainda rebato, usando o mesmo argumento: quando fomos trabalhar na Educação, sabíamos quanto íamos ganhar e quais eram nossos deveres e direitos; logo, não fomos enganados. E por que aceitamos? Se não estávamos satisfeitos, procurássemos o órgão empregador e discutíssemos com ele nossas propostas ou então pedíssemos demissão e procurássemos outro emprego que estivesse no nível de nossas expectativas. O que não devíamos fazer nunca era oferecer um ensino de má qualidade, porque os alunos não tinham culpa de nada, e a sociedade estava nos pagando, cumprindo, portanto, sua parte no acordo.

Sempre que falamos em má qualidade de ensino, nunca paramos para avaliar, com bastante objetividade, como se desenvolve realmente o processo em sala de aula, que tem como meta a aprendizagem, do Fundamental às universidades. Huberto Rohden, em seu livro Educação do Homem Integral, classifica o professor em professor-educador e professor- instrutor. Existe, porém, uma outra classificação de professor que não se enquadra em nenhuma das duas: a que eu chamo de professor-contracheque. O professor-contracheque não faz faculdade para adquirir conhecimentos, competências e habilidades. Ele quer apenas um certificado que lhe garanta um melhor salário e um status como portador de nível superior.

Seus objetivos profissionais resumem-se, portanto, em não deixar de assinar o diário e em fazer a prova para entregar o resultado à coordenação, garantindo, assim, sua folha de pagamento. Não prepara com objetividade a aula nem precisa entrar e sair da sala no horário; não precisa cumprir a carga horária, para a qual há muitas justificativas; não abraça os objetivos da escola nem participa de seus projetos com aquela vontade de ver tudo acontecer com sucesso. Usa a tecnologia para facilitar seu trabalho, não a aprendizagem, como passar filme e mandar por e-mail seminários para os alunos prepararem, dispensando, desse modo, sua ida à faculdade. Uma ex- aluna minha contou-me indignada que ficou sem um dia de aula (quatro aulas da mesma matéria) na faculdade porque a professora se esqueceu de levar as transparências (morava em outra cidade). Foi incapaz de dar, pelo menos, uma parte da aula, concluiu a aluna.

O professor-contracheque não cria empatia com os alunos; ao contrário, é impaciente e intolerante, além de submisso aos seus desígnios. Vê, nas avaliações, a oportunidade de resolver suas diferenças e não admite interferência do coordenador nem do diretor. É aquele que diz aos alunos que precisam de sua ajuda: “Vocês já estão perdidos comigo”.

O professor-contracheque não respeita nem ama a si mesmo, por isso não respeita os seus alunos nem os ama. É como uma professora disse a um aluno que reclamou porque ela saiu no fim do primeiro horário de uma aula dobrada: “Saio, sim, e daí? Quando chegar no fim do mês, o dinheiro cai na minha conta, meu filho”.

Vejo uma falha no processo de seleção de profissionais em Educação, que implica a falta do sucesso de sua prática. Para trabalhar na Educação, o profissional precisa possuir um sentido de humanidade, uma vontade de ver acontecer a aprendizagem. Não deveriam faltar, em um currículo, de maneira mais consistente, não importa qual a especialização, matérias como Filosofia, Psicologia, Didática e Artes. Sem falar no desenvolvimento das inteligências inter e intrapessoais, inclusive no Nível 3, mesmo como mestre, dou tor, ou pós-doutor, já que não é o cientista que é um ser humano, é um ser humano que é cientista. Por que só a Pedagogia precisa dessas matérias? Ou se prepara um ser humano ou se admite um ser desumano. Há dois inimigos do homem e da Educação: o orgulho e a vaidade. Aliás, Lau Tsu tem um aforismo para fazer refletir sobre esses entraves da perfeição: “Se os rios e os mares reinam sobre todos os riachos, é porque ambos sabem manter-se em níveis inferiores. Por isso, reinam sobre todos os riachos”.

Não são títulos que nos colocam no topo da pirâmide, são as nossas ações. Um professor tem que ser uma pessoa que conheça um pouco de seu aluno para saber o que pode ou não pode esperar dele, ou ainda como exigir dele. Tem que possuir empatia, ser ético e humano, porque os conteúdos garantem a sobrevivência, atendem às necessidades profissionais, mas é a formação ética e humana que prepara o aluno para ser trabalhador, ter inteligência desenvolvida e viver coletivamente organizado. Como diz Capra, ao criticar o behaviorismo: “O estímulo-resposta pode dar certo em rato, mas não em gente, porque gente pensa”. Pensa e é dominada pelas emoções. É preciso que aquele que se propõe a ser professor esteja preparado para ajudar o aluno a conviver com as emoções — causa de muitos fracassos escolares e de todos os conflitos —, a fim de que, além da competência, o aluno também seja capaz de criar o mundo com que todos, inclusive o próprio professor, sonham e merecem.

Acredito que um excelente conteudista que não desenvolveu qualidades humanas que funcionem como suporte na formação integral do aluno não está apto para ser um educador, porque educar é, antes de tudo, um ato de amor. Diz-nos Gurdjieff: “De nada adianta encher uma pessoa de conhecimento se faltarem a ela energia e vontade de aprender”. E o ser humano sabe como fazer isso muito bem, quando quer. Se o professor acha que educação é problema da família, ou ele deveria procurar outra profissão ou os objetivos do sistema educacional precisam ser revistos, porque, sendo a sociedade um espaço público, no qual, queiramos ou não, vivemos e convivemos, o problema de um é problema de todos. Concordo com Einstein quando ele afirma que todo problema tem solução, é só mudarmos as regras.

Se nós tivéssemos a visão da ecologia profunda como os índios da tribo americana, realizaríamos um in’owkin para discutirmos o problema da Educação brasileira em todos os aspectos, em sua integralidade, já que, como já dissemos, no mundo da interrelação, o problema de um é problema de todos, seguindo a pedagogia de Jeanette C. Armstrong e a metodologia de Daniella Neadows (Alfabetização Ecológica de Capra).

Às pessoas que discordam, eu pergunto: por que a nossa sociedade está tão violenta, tirando a paz, o prazer de viver de todos? Há outra resposta que não seja o individualismo, o desamor, a falta de respeito? Se o cidadão deixar de viver de teoria e puser em prática o que aprendeu, verá que sua felicidade, sua paz, sua maneira de viver e seu amor dependem da felicidade e da compreensão dos outros. E não é com falta de cortesia, desafeto, desrespeito e indiferença que se conquista a paz.

Quem pode ensinar tudo isso à sociedade se não os detentores do conhecimento: uma pessoa que não se sintoniza com essa melodia pode fazer parte da sinfonia educacional? A educação está assentada sobre três pilares: escola, família e sociedade. Se um dos três falha, os outros se desequilibram, conforme pensamento da tribo okanagan. Logo, os que estão sadios, têm, por obrigação, de dar sustentação ao que está em dificuldade.

Está na hora de aprendermos, em vez de apontar os erros dos outros, que só um dedo aponta, a olharmos os três dedos que ficam apontados para nós e, para não vermos, cobrimos com o polegar. Se o professor quiser se ver sem dificuldades, perceberá que quem mais se beneficia em sala de aula é ele, porque tem tudo para conquistar os valores que aperfeiçoam sua individualidade, únicos bens que ele possuirá eternamente.

Tenho certeza de que o professor-educador irá entender minha reflexão; o professor-instrutor irá refletir sobre ela. E quanto ao professor-contracheque, assim como eu usei de toda a franqueza para dizer a verdade, mesmo sendo difícil de abordar, ele também tem o direito de reagir com a mesma sinceridade que eu, embasando-se em suas verdades, como eu fiz. Mas é preciso que alguém tenha a coragem de dizer que não há roupa mágica vestindo sua majestade. Em verdade, “o rei está nu”.

E ninguém melhor do que uma velha de 74 anos, que viveu e trabalhou com seriedade e responsabilidade suficiente, para saber que, como diz Sri Aurobindo, educar é ajudar a despertar o que está adormecido dentro do aluno à espera de quem o estimule a fazer eclodir.

Para finalizar, uma coisa eu aprendi na minha prática: nós devemos preparar uma aula com todos os objetivos voltados para a aprendizagem; é como se, sabendo que o tempo não retorna, o que tivermos de fazer, façamos com a maior seriedade naquele momento, pois, na Educação, avaliamos conteúdos, nunca a aprendizagem. Conhecimento não se mede, se usa. O retorno do nosso trabalho, só temos quando nossos alunos se tornam profissionais e encontram-se conosco, nos cumprimentam sorrindo ou nos dão um abraço e dizem aquela frase gratificante que não se compra, se conquista: “Professora, obrigado! O que sei hoje, agradeço à senhora”.

Certa de que fiz o que minha consciência vem exigindo, encerro minhas reflexões fazendo minhas as palavras de João XXIII: “O futuro do mundo está confiado à juventude. Mas onde os ideais não inflamam o coração e não firmam a vontade, ali começa a velhice e a decrepitude”.

Atenciosamente,
Antônia Nolay de Lima Moreira

cubos