Edição 132

Mensagem inicial

Relógio

Legrand

O colégio onde eu estudava, quando era menina, costumava encerrar o ano letivo com um espetáculo teatral. Eu adorava aquilo, porém nunca fora convidada para participar, o que me trazia uma certa mágoa interior.

Quando fiz onze anos, avisaram-me que, finalmente, ia ter um papel para representar. Fiquei felicíssima, mas esse estado de espírito durou pouco. Escolheram uma colega minha para o desempenho principal. A mim, coube uma ponta, de pouca importância.

Minha decepção foi imensa. Voltei para casa em prantos. Mamãe quis saber o que se passava e ouviu toda a minha história, entre lágrimas e soluços. Sem nada dizer, ela foi buscar o bonito relógio de bolso de papai e colocou-o em minhas mãos, dizendo:

— O que você está vendo?

— Um relógio de ouro, com mostrador e ponteiros — respondi.

Em seguida, mamãe abriu a tampa traseira do relógio e repetiu a pergunta:

— E agora, o que está vendo?

— Ora, mamãe, aí dentro parece haver centenas de rodinhas e parafusos.

Mamãe me surpreendia, pois aquilo nada tinha a ver com o motivo do meu aborrecimento. Entretanto, calmamente, ela prosseguiu:

— Este relógio, tão necessário ao seu pai e tão bonito, seria absolutamente inútil se nele faltasse qualquer parte, mesmo a mais insignificante das rodinhas ou o menor dos parafusos.

Nós nos entreolhamos, e, no seu olhar calmo e amoroso, eu compreendi, sem que ela precisasse dizer mais nada. Essa pequena lição tem me ajudado muito a ser mais feliz na vida. Aprendi, com a máquina daquele relógio, quão essenciais são, mesmo, os deveres mais ingratos e difíceis, que nos cabem a todos. Não importa que sejamos o mais ínfimo parafuso ou a mais ignorada rodinha, desde que o trabalho, em conjunto, seja para o bem de todos. E percebi, também, que, se o esforço tiver êxito, o que menos importa são os aplausos exteriores. O que vale mesmo é a paz de espírito e a alegria pelo objetivo alcançado.

LEGRAND (Coord.). Vários autores. Criando filhos. Belo Horizonte: Soler, 2006.

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