Edição 09

Lendo e aprendendo

Sobre os personagens…

A ética lobatiana é a do humano, a da preservação dos valores humanos historicamente fundamentais. O respeito a esses valores é essencial na interpretação do relacionamento entre as personagens do Sítio, por mais estrambóticas e piramidais que sejam as incursões do grupo no âmbito do maravilhoso.

Quando se fala em ética, volta-se ao problema do Marquês de Rabicó. Marquês malgré lui, por imposição de Emília, que se recusava a casar-se com ele, sem que o suíno fosse portador de um título nobiliárquico. Qual a ética de Rabicó? Lobato não era irrealista. Um porco é um porco. Mesmo numa história em que um sabugo de milho se torna um sábio e até mesmo um rinoceronte não fica atrás.

Rabicó é um outro aspecto da ética. É a demonstração de que se pode viver de acordo com sua própria natureza, desatento ou desobediente a imposições que não se coadunam com o que há de mais íntimo e essencial no âmago de cada um. Rabicó, dessa forma, expressa sua independência. E, com isso, dá também o seu recado.

Emília, ao contrário, ambiciosa, empenha-se ao máximo em conseguir o que quer. Revela-se na persistência, na perseguição tenaz do objetivo, no não se afastar da meta traçada, no induzir pessoas, no fazer amigos em função do fim colimado e, por fim, de qualquer forma, alcançado.

Pode-se argüir que, algumas vezes, ela pula a cerca das conveniências e não age com absoluta retidão de caráter. Ainda aí intervém o realismo e o amor à verdade de Lobato. Ele não deseja fornecer um retrato falso da realidade. A crítica aos exageros, faltas, erros ou injustiças de Emília chega prontamente, na voz de Narizinho, Pedrinho, Dona Benta. Mas Lobato não pode esconder que o jogo sujo faz parte do jogo global que empurra muitos para a frente.

Lobato assistiu ao grande surto industrial que mobilizou e mobiliza o maior centro econômico do País. Coma sua acuidade crítica, experiência, tradição familiar, viu, sentiu, compreendeu como se fazem os sucessos e como os objetivos são alcançados no mundo da política, da administração, dos negócios, das empresas.

O piccolo mondo de Emília tinha muito a ensinar, num contexto dessa espécie. Assim se delineia o grande quadro, a grande lição de vida, sem “moralismo”, com humor e sem crueldade.

Emília é, naturalmente, o centro do sistema planetário do Sítio, a partir de sua criação e principalmente a partir do momento em que conquistou o poder da fala. Embora Dona Benta tenha autoridade familiar, o peso da idade, a influência do nível intelectual, a condição de proprietária do Sítio e a liderança da experiência mesclada com uma tolerância e uma bondade natural, vale a pena percorrer os momentos em que o papel de líder escapa das mãos de um para outro dos atores que encarnam o ambiente dramático do mundo lobatiano.

Emília compete em certas faltas de caráter com o Marquês de Rabicó. É capaz de com um simples rabisco e uma simples assinatura transformar a “Aritmética do Visconde” em “Aritmética da Emília”, sem remorso ou restrições mentais.

Lobato não teve medo de colocar defeitos graves em suas personagens infantis, enfrentando pedagogos e provando a eficácia de seus métodos.

As personagens femininas, portanto, igualam-se às masculinas, nas virtudes e nos defeitos. Ninguém é superior a ninguém. Todas são pessoas. Ou bichos humanizados.

Emília, por exemplo, não era bicho, mas boneca. Humanizou-se. O antropomorfismo na obra de Lobato corresponde a uma tendência natural que se observa ao longo da História da Humanidade. As civilizações dão formas humanas aos animais, às figuras que lhes causam espécie, curiosidade, respeito, medo, devoção. Remeta-se a questão aos antropólogos culturais e exija-se deles um aprofundamento da matéria, de resto bastante sugestiva no mundo de Lobato.

Veja-se Pedrinho. Tem bons sentimentos. É nobre, corajoso, arrisca-se. Mas é menino. É saudável. Quer divertir-se. Tem curiosidade insaciável. Vive uma vida normal de menino, até o ponto em que se pode considerar normal a presença constante do maravilhoso na existência simultaneamente pacata e tumultuada do Sítio de Dona Benta.

Em Caçadas de Pedrinho, o menino não é apenas a personagem central. Lidera a história. Mas lidera numa divisão com o Saci, em diversos episódios dramáticos. O mesmo se pode dizer com relação ao Tio Barnabé. E a própria onça, vítima da caçada, não deixa de ser líder em determinados momentos.

Como é natural, ao longo da obra de literatura infantil de Monteiro Lobato, as personagens principais vão cedendo o primeiro plano uns aos outros, num revezamento que coloca em evidência o caráter e a feição de cada um.

Evidentemente, Pedrinho se presta mais ao papel de caçador de onças e Narizinho ao de noiva do Príncipe Escamado. Assim, o rodízio se estabelece. O Visconde ensina Aritmética, Dona Benta geografia e Emília se apossa do País da Gramática.

O Tio Barnabé também é líder, especialmente diante de Pedrinho, quando é convocado a colocar sua experiência a serviço das travessuras ou “reinações” do neto de Dona Benta.

Que se pode dizer de Narizinho? Carinhosa com a avó, preocupada com Pedrinho e suas travessuras, embora sócia dele em muitas delas, comporta-se como pequena mãe com relação a Emília, irritando-se, principalmente, com as falhas de caráter da ex-boneca, que, aqui e ali, coloca seus interesses acima dos interesses de todos os outros membros da comunidade.

Narizinho lidera a descida ao Reino das Águas Claras. Mas lá, as personagens do Reino assumem, sucessivamente, papéis de tal relevo que, ao longo da dinâmica do processo, vão também assumindo uma posição de liderança.

O Reino das Águas Claras, tão profundo, afinal, como poderia ser profundo um riacho num sítio de proporções e dimensões relativas, espelha a possibilidade quase infinita de fabulação que pode ser gerada a partir da mente de uma menina imaginosa, inteligente, sonhadora, desejosa de viver as aventuras que as férias reais num sítio real não poderiam, de fato, proporcionar.

Narizinho tem um comportamento de mulher, que pode também interessar mais a fundo os psicólogos, os psicanalistas, toda a corte que hoje se debate entre Freud, Jung, Adler, Melanie Klein e tantos outros nomes, mais ou menos expressivos. Narizinho se casa (como toda menina se casa, em fantasia) com o Príncipe Escamado. Há uma inversão do mito da sereia. Não é o homem com a mulher-peixe. É a menina (mulher) com o peixe, ele próprio.

No capítulo dos casamentos, nem se mencione o episódio picaresco do casamento forçado entre Emília e o Marquês de Rabicó, que culminou com a fuga apressada e imprevista do noivo, por motivo de gula, leit-motiv da personagem.

Até que ponto os analistas veriam esses casamentos, tão naturais na mente infantil, entre seres humanos e animais, entre uma boneca humanizada e um suíno permanentemente faminto?

Nessa esfera de análises e possíveis interpretações, que dizer do pobre Visconde, simples sabugo de milho, permanentemente apavorado com a visão da Vaca Mocha, com medo de ser instantaneamente devorado? Por outras palavras, “comido”.

Essas questões são lançadas não tanto como uma provocação, mas porque é comum, hoje em dia, a prática das interpretações analíticas para as coisas mais simples ou aparentemente menos complicadas.

Menina simpática, bonita, inteligente, agradável, companheira, líder e liderada, de Pedrinho, conforme o caso, Narizinho é independente, autônoma, tem suas aventuras sozinha, como por exemplo, no episódio do Príncipe Escamado, no Reino das Águas Claras.

É a tutora de Emília, de cuja falta de educação se queixa tantas vezes. Emília tem ciúme de Narizinho, como uma irmã menor tem ciúme da irmã maior. Por quê? Porque ainda não pode fazer ou ainda não dispõe de todo o direito de fazer as coisas possíveis para a irmã mais velha. E também, muito interesseira, cobiça os pequenos objetos da menina.

Narizinho não é uma manifestação de submissão ao machismo. Ao contrário, toma iniciativas, age, impõe, toma resoluções que envolvem o comprometimento de outras personagens, como, por exemplo, o próprio Pedrinho, que é o pequeno homem do grupo familiar e mesmo de toda a comunidade do Sítio.

Narizinho contesta. Narizinho se afirma. Seria ela uma representante típica, um paradigma das meninas de seu tempo? Temos a impressão de que a maioria das meninas que leram os livros de Lobato invejaram

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